Correio Braziliense
Entre a esperança democrática e o
recrudescimento autoritário, vivemos a urgência de proteger direitos e
responsabilizar quem atenta contra a democracia
No último 10 de dezembro, quando o mundo celebrou os 77 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos, fomos novamente lembrados da necessidade de reafirmar o pacto ético surgido após a Segunda Guerra Mundial. Em 2025, porém, essa data tornou-se alerta. A promessa universal dos direitos humanos é erodida diariamente, internacionalmente e no Brasil, onde forças autoritárias tentam reconstruir um projeto baseado na violência, na mentira, na impunidade, no saque ao bem público e na destruição de direitos.
O ano de 2025 expôs essa encruzilhada. A
extrema-direita avançou globalmente, corroendo instituições, desacreditando a
imprensa, normalizando a violência política e disseminando desinformação em
escala industrial. Como advertiu Hannah Arendt, regimes autoritários prosperam
quando constroem realidades nas quais os fatos deixam de significar algo —
terreno que se tentou adubar no Brasil e em outros países. Ao mesmo tempo,
houve resistência: democracias à beira de rupturas frearam retrocessos.
O Brasil ocupou lugar decisivo. Apesar de
pressões, reorganizou políticas públicas, recuperou presença internacional,
enfrentou a fome e reafirmou compromissos com a democracia. Generais foram
presos pela primeira vez desde a redemocratização; um ex-presidente foi
responsabilizado criminalmente; o STF manteve a centralidade do Estado Democrático
de Direito. Houve mobilização social e fortalecimento institucional.
Esses avanços convivem com contradições. A
crise atual deriva da impunidade da transição pós-ditadura e da recusa
histórica em enfrentar raízes coloniais e escravocratas da desigualdade racial
e da violência institucional. Como disse Milton Santos, vivemos num sistema que
universaliza vulnerabilidades e transforma populações em descartáveis. No plano
político, assistimos à desdemocratização, na qual rituais democráticos
permanecem, mas perdem substância ética.
A tentativa de golpe de 8 de janeiro de 2023
expressou um projeto que busca corroer as bases da convivência democrática. Ele
prospera em sociedades que confundem justiça com vingança e evitam revisitar
pactos que impediram o país de responsabilizar torturadores da ditadura.
Por isso, a responsabilização de Bolsonaro e
de seus articuladores civis e militares é indispensável. A discussão sobre
reinterpretar a Lei da Anistia pertence ao campo democrático e aos compromissos
do Brasil com tratados internacionais de direitos humanos.
O Instituto Vladimir Herzog tem contribuído
de forma decisiva. Atuamos como amicus curiae na ADPF 320, que discute a necessidade
de reinterpretar a Lei da Anistia à luz da Constituição e da Corte
Interamericana. Essa incidência toca feridas históricas. O absurdo de golpistas
pedirem anistia revela o quanto a democracia ainda é tratada como concessão,
não como direito coletivo.
Também alertamos para a urgência de retomar
caminhos da Comissão Nacional da Verdade. Nosso levantamento sobre suas
recomendações evidencia a ausência de mecanismos robustos para garantir
memória, verdade, justiça e reformas que impeçam a repetição de graves
violações.
Esses debates serão centrais em 2026. Mais do
que preservar instituições e defender a democracia, é imprescindível que se
mostre qual tipo de democracia queremos. Isso significa impulsionar direitos
humanos, cultura e educação como pilares de um país que não aceita retrocessos,
mas que avança.
O Instituto defende que não basta manter o
que temos: precisamos construir algo melhor, mais sólido e verdadeiramente
transformador.
Renovar o Congresso será tarefa decisiva. Não
votar em quem defende tortura; promove racismo, homofobia, misoginia, xenofobia
ou perseguição religiosa; ataca jornalistas, artistas, educadores e defensores
de direitos humanos; pactua com milícias; afronta a Constituição. Trata-se de
responsabilidade democrática elementar, compatível com a tradição brasileira.
No cenário internacional, o Brasil terá
responsabilidades ampliadas. Num mundo marcado por deslocamentos forçados,
guerras prolongadas, violações massivas e colapso do multilateralismo, o país
pode recuperar sua tradição diplomática de defesa do diálogo e da paz,
reafirmando a centralidade da Declaração Universal.
O Instituto Vladimir Herzog concluiu a
campanha 50 anos por Vlado, lembrando um jornalista que enfrentou tortura e
censura com a firmeza de quem sabia que a democracia é projeto permanente. Sua
memória nos convoca à coragem cívica e à disposição de enfrentar injustiças.
Por tudo isso, 2026 será um ano-encruzilhada.
As forças autoritárias seguem organizadas, mas há energia democrática vibrante:
educadores, artistas, jornalistas, povos tradicionais, lideranças comunitárias,
juventudes e defensores de direitos humanos insistem que a esperança é
possível.
Que os 77 anos da Declaração Universal dos
Direitos Humanos nos lembrem que nenhum direito está garantido para sempre e
sirvam como chamado à responsabilidade. O Brasil pode afirmar-se como liderança
democrática global se fortalecer instituições, responsabilizar golpistas,
proteger vidas e renovar o pacto civilizatório que nos trouxe até aqui. Só
assim poderemos, de forma consciente e coletiva, colocar a dignidade humana no
centro do nosso futuro.
*Diretor-executivo do Instituto Vladimir Herzog. Foi Secretário Especial de Direitos Humanos do governo federal

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