Correio Braziliense
As eleições no Chile simbolizam o esgotamento
de um ciclo da esquerda latino-americana, que não traduziu vitória eleitoral em
hegemonia social e avanço econômico
Os chilenos vão às urnas hoje para escolher
seu novo presidente. À noite saberemos quem ganhou as eleições, se Jeannette
Jara — militante comunista, representante das esquerdas — ou José Antônio Kast
— líder extremista do Partido Republicano, candidato das direitas. O presidente
do Chile, Gabriel Boric, encerra um ciclo político no qual governos de
centro-esquerda e centro-direita, desde a redemocratização, se alternaram no
poder. Nada será como antes no Chile.
O fracasso do governo Boric expressa o esgotamento de um projeto pautado pela promessa de renovação geracional e moral, que se perdeu entre maximalismos identitários, incapacidade de construir maiorias sociais estáveis e uma leitura equivocada das prioridades chilenas após o chamado "estalido social", que durou de 2019 a 2021. Ao fim de quatro anos, Boric entrega um país mais inseguro, politicamente fragmentado e desconfiado do Estado, sem ter conseguido converter seu capital simbólico renovador em governabilidade efetiva.
A aprovação presidencial oscilou em torno de
30% durante quase todo o mandato, enquanto a rejeição se manteve próxima de
60%. Não era apenas fadiga política, mas frustração social com um governo que
prometeu transformações estruturais e entregou conflitos, ambiguidades e uma
agenda dissociada das preocupações centrais da população: segurança, migração e
custo de vida. A rejeição contundente da proposta de nova Constituição, em
setembro de 2022 — 62% contra 38% — foi o ponto de inflexão do ciclo.
Nesse ambiente, a candidatura de Jeannette
Jara, apoiada por Boric, já nasceu isolada. Embora tenha se consolidado como
figura popular no Ministério do Trabalho e vencido amplamente as primárias da
esquerda, pesou sua condição de herdeira direta de um governo impopular.
Militante histórica do Partido Comunista, ela jamais conseguiu se desvincular
da imagem de continuidade. Resultado: a esquerda chilena chega às urnas com
enorme dificuldade de reconquistar as classes populares, que migraram para
opções de direita radical ou populistas.
A ascensão de José Antonio Kast ocupa esse
vazio. Longe de ser um fenômeno episódico, ele representa a consolidação
de uma direita ideológica, disciplinada e conectada internacionalmente. Encarna
no Chile uma onda de extrema-direita cada vez mais robusta no mundo. Do apoio
explícito ao regime de Augusto Pinochet à liderança do Partido Republicano,
Kast ocupava as margens do sistema político chileno. Em 2021, foi derrotado
graças à mobilização do voto feminino e jovem. Em 2025, moderou a forma,
silenciou sobre temas morais mais explosivos e concentrou o discurso em
segurança, crescimento econômico e controle migratório.
Doutrina Monroe
A eventual vitória de Kast insere o Chile no
contexto mais amplo de ascensão da direita no Cone Sul. A Argentina de Javier Milei, o Paraguai conservador, a
alternância uruguaia e o provável realinhamento chileno desenham um novo
cenário político regional, marcado pela crítica ao Estado, pela centralidade da
ordem e pela rejeição às agendas progressistas associadas ao identitarismo. E
pela promessa de eficiência, autoridade e ruptura com as elites protagonistas
da redemocratização desses países.
Esse rearranjo regional faz parte do xadrez
geopolítico mundial. A disputa estratégica entre Estados Unidos, China e Rússia reconfigurou as prioridades
de Washington para a América Latina. A antiga retórica da promoção da
democracia foi substituída por uma lógica mais crua de segurança hemisférica,
na qual estabilidade, previsibilidade e alinhamento estratégico se sobrepõem a
considerações ideológicas clássicas. Ganha centralidade a nova formulação
operacional da Doutrina Monroe, revitalizada pelo nacionalismo trumpista.
A estratégia de Trump, compartilhada pelo
establishment republicano, parte do princípio de que a América do Sul voltou a
ser um espaço crítico de disputa de poder. O objetivo é conter a expansão da
influência chinesa, especialmente em áreas estratégicas como infraestrutura,
energia, minerais críticos e telecomunicações, e bloquear a presença russa,
associada a cooperação militar, desinformação e apoio a regimes autoritários.
A crise venezuelana ocupa papel central nesse
tabuleiro. Para Washington, o colapso do regime de Nicolás Maduro funciona como
um alerta e como justificativa para uma política mais dura no continente. A
Venezuela é vista como plataforma de projeção de interesses russos, chineses e
iranianos na América do Sul. Líderes como Milei, Nayib Bukele e,
potencialmente, Kast se tornam parceiros da estratégia trumpista.
O Brasil, sob o governo Lula, encontra-se
relativamente isolado nesse cenário. A política externa do presidente, baseada
na autonomia estratégica, no fortalecimento do Sul Global e no diálogo com
China e Rússia, contrasta com o novo eixo conservador do Cone Sul e com a
agenda de Washington. Além disso, a postura brasileira diante da Venezuela —
cautelosa, ambígua e diplomática — reforça a percepção de desalinhamento em um
momento de endurecimento geopolítico.
O fracasso do governo Boric simboliza o esgotamento de um ciclo da esquerda latino-americana, que não traduziu vitória eleitoral em hegemonia social, subestimou a centralidade da segurança e foi atropelada pela mudança profunda no contexto geopolítico global, no qual o Cone Sul se realinha à nova Doutrina Monroe e à estratégia trumpista de contenção da China e da Rússia. Com menor capacidade de projeção de poder regional, o Brasil está sendo isolado.

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