sexta-feira, 19 de dezembro de 2025

Marco temporal. Por José de Souza Martins

Valor Econômico

As leis que do assunto tratam no Brasil desconhecem a dimensão humana e a função humana dos conceitos

Cara fechada, de poucos amigos, o sujeito sentou-se ao meu lado, ocupando o lugar da janela para a longa viagem, de uns 650 km, por estrada de terra, entre Barra do Garças e São Félix do Araguaia, no Mato Grosso. A estrada, que eu já havia percorrido outras vezes, cruzava ampla região de pastagens, o pasto ressequido, pontilhado de troncos enegrecidos da antiga mata derrubada e queimada.

Depois de um bom tempo, senti-me encorajado a puxar conversa com o vizinho, sem êxito. Só consegui que me respondesse quando lhe perguntei se tinha fazenda da região. Resmungou, contrariado, que sim. Tentei saber mais alguma coisa, tipo de empreendimento, como fora formada a fazenda. Ele nem sabia dizer exatamente onde ela ficava. Estava indo para uma vaga localização para encontrar as terras que dizia serem suas.

Pelas indicações que me deu, provavelmente, a tal fazenda se localizava em terra indígena. Perguntei-lhe, então, se os índios permitiriam que abrisse a fazenda em suas terras.

Finalmente, me encarou. Olhos arregalados e indignado, falou-me furioso: “E índio tem algum querer?”.

Como fazem os brancos agora no questionamento dos direitos dos indígenas a sua terra ancestral.

Naquela mesma viagem de pesquisa, já em São Félix do Araguaia, eu caminhava pela rua principal, da beira-rio, quando vi um senhor, um índio karajá, que caminhava cabisbaixo. Um garoto, de uns dez anos, começou a debochar dele, apontando-lhe o dedo e dando gargalhadas. Perguntei ao menino por que estava fazendo aqui. Expliquei-lhe que o índio é gente como nós.

“Como eu, não. Ele é gentio, e eu sou cristão.”

Ecos longínquo dos tempos da Conquista e do trabalho missionário mais antigo, de quando os conquistadores não reconheciam nos nativos a condição de gente.

Não obstante, os próprios indígenas se identificam por nomes tribais que querem dizer gente. Como os Suruí-Paíter, de Rondônia. Os xavante, que foram quase dizimados por doenças de brancos, cujas terras foram em grande parte por eles griladas.

Aracy Lopes da Silva, etnóloga da USP, especializada na cultura desse, ouvira-lhes as dúvidas a respeito da classificação dos brancos. Nas culturas indígenas tudo está classificado e tem um nome. Nada existe sem se traduzir numa palavra que diga classificatoriamente que é no mundo.

Os humanos são humanos, gente. Quem difere e contraria a condição humana precisa ser localizado nesse amplo e totalizador sistema de conhecimento. Os xavante já tinham uma certeza: os brancos não são gente.

Tendiam a classificá-los como parentes da onça, o animal que mata para comer mais do que precisa e abandona os restos de suas vítimas na mata. O branco é da família dos predadores.

Não por acaso, o cacique dos Paíter-suruí, no primeiro contato, dirigiu-se ao “cacique” da Funai nestes termos: “Branco, eu te amanso”.

O branco é destrutivo não só no sentido de matar os índios, como fizeram com o adolescente Oréia, Paíter, que se apaixonara por uma adolescente branca, apaixonada por ele, filha de colonos que acabavam de migrar para Rondônia. Uma tragédia shakespeariana na selva. Brancos são, comparativamente aos índios, ignorantes

Todo o debate jurídico e legislativo que está em andamento agora para legalizar o açambarcamento das terras indígenas pela economia latifundista e pela mineração predatória se baseia em categorias da economia capitalista, mas não das da economia tribal.

A relação da economia capitalista com a terra é a da renda da terra e não do uso. Na economia indígena, a relação é com o que em nossa língua oficial e coisificadora se pode definir como território, ecologicamente definido, mediação de amplo sentido na reprodução da sociedade, das relações sociais, da mentalidade, das necessidades, enfim, reprodução da vida.

As leis que do assunto tratam no Brasil, e mais agora nesta era de egoísmo, usurpações, assassinatos, desconhecem a dimensão humana e a função humana dos conceitos. Desconhecem que o território indígena não quer dizer o conceitual do direito do branco. Quer dizer o inconceitual da humanidade dos seres humanos, quer dizer a vida. Nem quer dizer a vida de cada um, mas a de todos, da teia de parentesco, dos valores que permitem os vínculos e interditam o incesto em concepção muito mais ampla e restritiva do que a nossa.

As sociedades indígenas não são sociedades econômicas. Economia é uma categoria de brancos, que só tem sentido nos bancos e nas bolsas de valores. Mas não tem nenhum sentido na vida propriamente dita.

Os brancos é que formam uma associação econômica de indivíduos unidos pelo egoísmo e nesse sentido destituídos do que é propriamente vida. O marco temporal é indevida demarcação do direito à vida. É uma pena de morte.

 

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