sexta-feira, 19 de dezembro de 2025

O bolsonarismo e o sequestro da política. Marco Aurélio Ruediger

Folha de S. Paulo

Com a morte de Olavo de Carvalho e a ausência de Paulo Guedes, mergulha-se no discurso messiânico; o personagem se desespera, pois se esvazia

Lideranças da extrema direita protocolarmente lhe prestam solidariedade, mas já precificaram sua importância residual decrescente

Em "Da Brevidade da Vida", Sêneca criticava as pessoas que vivem ocupadíssimas, que correm de um lado para o outro, respondem a mil demandas, mas nada fazem do que realmente importa, pois o que fazem não permanece. Há uma dinâmica peculiar ao Brasil que se assemelha e sequestra a política substantiva.

Aqui, invariavelmente, temas cruciais soterram uns aos outros em sequência. Como exemplo, numa semana começamos prevendo que o assunto dominante seria a COP30, com suas expectativas e frustrações; passamos para o Banco Master dois dias após, tema que provavelmente retornará; em seguida, houve a queda de tarifas; por fim, a indicação ao STF. Porém, depois, de forma surpreendente, veio o caso da tornozeleira de Bolsonaro.

Foram mais de 1,3 milhão de posts e mais de 28 milhões de interações desse último lance, em menos de 24 horas, galvanizando por um ato medíocre a atenção pública. Esse episódio sobrepassou pela bizarrice temas importantes, os quais também já se atropelavam.

sociedade em rede, os incentivos a uma hipercirculação de informações são inevitáveis. Mas facilmente a atenção pode ser sequestrada, manipulada e direcionada. Há uma "instagramização" irreal do real, e que leva a política a ser vazia, operando déficits crescentes de insatisfação pública. Com as redes acentua-se também a polarização, as inverdades e a insegurança. O bolsonarismo incide justamente aí.

Refiro-me aqui não ao personagem, mas a um arco que é guarda-chuva de correntes do campo ultraconservador, associadas a grupos de interesse específicos, que se articulam política e conceitualmente. Esse arco busca criar uma dinâmica institucionalmente confrontacional, com a mobilização hiperacelerada da sua rede de apoio digital, a partir de fatos e factoides. Como campo é distinto do centro político, que é mais sutil, pragmático, pendular e institucionalista.

No bolsonarismo, que é espetáculo puro, as instituições são retratadas como capturadas ou proponentes de uma pauta antípoda a costumes. São conspiratórias e cerceadoras da liberdade. Uma versão local do "deep state". Nele a interpretação da liberdade é um sofisma que ameaça a própria liberdade. Para enfrentamento de uma realidade movediça, onde o modo de produção transita do material para o imaterial, gestando uma nova dinâmica social incerta, recruta-se um discurso moralista, unitário e fundamentalista visando alcear eleitores.

Com o desaparecimento de Olavo de Carvalho e a ausência de Paulo Guedes, o bolsonarismo mergulha crescentemente no discurso messiânico. O personagem se desespera, pois se esvazia. O 8 de Janeiro é derivado primeiro dessa dinâmica sob derrota. As manifestações e conspiração internacional sua derivada segunda, e o caso da tornozeleira sua terceira.

Paradoxalmente, pelo excesso de espetáculo e contradições, Bolsonaro como personagem tornou-se prisioneiro de um estoque imagético que, se antes potente, hoje subtrai prestígio. Ainda assim é capaz de sequestrar a política como vimos, pela vitimização, e obstacularizar o campo da oposição em encontrar uma outra nominata a tempo para 2026. Deverá manter uma expressão eleitoral que determine a outro competidor sua possibilidade de ir ou não ao segundo turno, mas sem o protagonismo de outrora.

Lideranças da extrema direita protocolarmente lhe prestam solidariedade, mas já precificaram sua importância residual decrescente. O campo de disputa na oposição se abre aos poucos, mas ainda não o suficiente. A pauta da anistia galvaniza e empobrece o repertório da oposição. Nesse contexto, o tempo joga a favor de um novo mandato de Lula, que tem recebido dos estertores do bolsonarismo elementos discursivos pivotais.

O país necessita do resgate da política em versão atualizada. Reformas essenciais e sempre adiadas terão espaço? O gasto público será qualificado? A economia do imaterial será objeto de estratégia? O futuro do trabalho sob a IA e a robótica serão considerados? A questão de Sêneca permanece: o sábio faz menos, mas faz o que importa.

 

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