Sensatez deve prevalecer no PL da Dosimetria
Por O Globo
Qualquer anistia seria inaceitável. Senadores
devem fechar brechas abertas pelos deputados no texto
A Câmara dos Deputados aprovou na semana
passada o Projeto de Lei (PL) da Dosimetria, que altera o cálculo de penas para
crimes contra o Estado Democrático de Direito e, na prática, abre caminho à
redução do tempo de permanência na prisão do ex-presidente Jair
Bolsonaro e dos demais condenados por tentativa de golpe de Estado e
pelos ataques do 8 de Janeiro. A aprovação do PL, numa sessão que se estendeu
pela madrugada, se deu por larga margem de votos (291 a 148).
Eram legítimas as críticas às penas aplicadas a alguns dos condenados pelo 8 de Janeiro, demasiadamente severas. Isso ficou patente no caso da cabeleireira Débora Rodrigues dos Santos, sentenciada a 14 anos de prisão por ter pichado a estátua na frente do Supremo Tribunal Federal (STF) — hoje ela está em prisão domiciliar. Mas é essencial que mentores, financiadores e organizadores, mesmo com penas menos severas, respondam pelos crimes graves que cometeram com punição proporcional à gravidade de seus atos. Seria inaceitável qualquer forma de anistia. Funcionaria como incentivo ao golpismo e seria uma afronta à Constituição. Por isso é necessário desde já repudiar os devaneios que rondam o Senado — para onde o projeto foi encaminhado — com o objetivo espúrio de anistiar os condenados, livrando-os de qualquer tipo de punição.
Pelas estimativas do deputado Paulinho da
Força (Solidariedade-SP), relator do PL, Bolsonaro — desde novembro, preso na
Superintendência da Polícia Federal, em Brasília — poderia cumprir apenas dois
anos e três meses em regime fechado. O cálculo se baseia na unificação das
penas pelos crimes de abolição do Estado Democrático de Direito e tentativa de
golpe de Estado e na retomada da progressão de regime depois do cumprimento de
um sexto da pena. Ainda segundo o relator, a pena total de 27 anos e três meses
poderia cair para cerca de 21 anos. A aplicação das novas regras dependeria da
avaliação dos ministros do Supremo e não ocorreria de forma automática.
Outros pontos no PL da Dosimetria merecem
atenção dos senadores. Como
mostrou reportagem do GLOBO, o projeto pode beneficiar condenados por
certos tipos de crime que não envolvem atos contra a democracia ou o Estado
Democrático de Direito. Juristas e integrantes do Ministério Público argumentam
que o texto permite progressão de regime mais célere a condenados por crimes
como coação no curso do processo, atentados contra meios de transporte, à
soberania ou contra a segurança de serviços de utilidade pública. Os senadores
precisam corrigir essas falhas.
No Senado, o PL deve ser relatado pelo
senador Espiridião Amin (PP-SC), que já disse defender a inclusão da anistia na
proposta. É fundamental rechaçar tal retrocesso e trabalhar para fechar as
demais brechas do texto. Seria uma lástima se elas beneficiassem criminosos que
nada têm a ver com o escopo do projeto. Especialmente neste momento, em que a
sociedade, indignada com a inércia diante da violência, clama por mais justiça,
enquanto o país discute mudanças na legislação para tornar as penas contra o
crime organizado mais severas. Deve prevalecer a sensatez.
Privatizações mostram que, quando ideologia
sai de cena, país avança
Por O Globo
Gestão petista já fez 22 leilões de rodovias,
13 aeroportos regionais e se prepara para relicitar o Galeão no Rio
É de bom augúrio que um governo
ideologicamente avesso a privatizações continue a recorrer ao setor privado
para melhorar a indigente infraestrutura brasileira,
setor fundamental para o desenvolvimento. Ao menos no que diz respeito a
rodovias e aeroportos, pontos nevrálgicos dos transportes, a gestão petista tem
mantido programas de concessão das administrações anteriores.
No episódio mais recente, o governo repactuou
o contrato de concessão da Rodovia Fernão Dias (BR-381), que liga São Paulo a
Belo Horizonte cortando 33 cidades. O leilão foi vencido pela Motiva (ex-CCR),
que superou a Arteris, atual concessionária. Foi o quarto certame para otimizar
contratos, e o primeiro em que a atual gestora não levou. A Fernão Dias deverá
receber R$ 9,5 bilhões em investimentos, mais R$ 5,4 bilhões em custos
operacionais ao longo da concessão. A estrada é um dos principais corredores
logísticos do país e registra cerca de 250 mil veículos por dia. O ministro dos
Transportes, Renan Filho,
disse que ela receberá melhorias na pavimentação e novos acessos às cidades,
entre outras intervenções. O atual governo já fez 22 leilões de rodovias e
prevê mais 14 para 2026.
O mesmo ímpeto tem contribuído para a
privatização dos aeroportos. Em novembro, a GRU Airport, dona da concessão de
Guarulhos, em São Paulo, venceu o leilão de 12 terminais regionais, enquanto a
alemã Fraport, que administra os aeroportos de Fortaleza e Porto Alegre,
arrematou o de Jericoacoara (CE). O investimento previsto nesses locais é
estimado em R$ 730 milhões. A intenção é conectá-los à malha nacional e
fomentar o desenvolvimento das cidades.
Não menos importante será a licitação do
Aeroporto Internacional Tom Jobim/Galeão, no Rio, que experimenta recuperação
depois de longo esvaziamento decorrente de problemas no contrato e de
desequilíbrio na coordenação com o terminal doméstico Santos Dumont. Na
quinta-feira, a Agência Nacional de Aviação Civil (Anac) aprovou o edital do
leilão simplificado que ocorrerá em março, com lance mínimo de R$ 932,8
milhões. A intenção é corrigir problemas financeiros do contrato. O governo
torce para que a atual concessionária RIOGaleão continue operando o aeroporto.
Quando a resistência ideológica sai de cena, o país avança. Para qualquer brasileiro que circula em rodovias administradas pelo governo federal, fica claro que o Estado não tem condições de mantê-las. É verdade que nem todas são passíveis de concessão à iniciativa privada, pois algumas não são atraentes financeiramente. Mas as que são viáveis devem ser transferidas. Ao menos no setor de infraestrutura, o governo tem se rendido ao óbvio: rodovias e aeroportos melhoram significativamente quando administrados por concessionárias privadas. Se tivesse adotado a mesma atitude diante dos Correios, certamente a empresa não atravessaria crise tão grave, e o contribuinte não teria de arcar com bilhões em mais uma tentativa desesperada de salvá-la.
Obstáculos econômicos e políticos à queda dos
juros
Por Folha de S. Paulo
Copom mantém Selic em 15%; inflação, recusa
de Lula em ajustar contas públicas e eleição geram incertezas
Caso os candidatos à Presidência não mostrem
planos críveis de contenção da dívida pública, maior será o risco de
turbulência financeira
O Banco Central estima
que a inflação acumulada
em 12 meses cairá até 3,2% —muito perto da meta oficial de 3%— em algum momento
do segundo trimestre de 2027, momento que por ora é o horizonte relevante da
política monetária, quando deve ser mais intenso o efeito da alta dos juros.
A projeção consta do comunicado em que o BC
divulgou sua decisão
de manter sua taxa, a Selic, em sufocantes 15% ao ano. Embora o IPCA
pareça rumar para patamares confortáveis, as perspectivas de o país voltar a
conviver com juros civilizados ainda estão nubladas por obstáculos econômicos e
políticos.
Pelas projeções mais consensuais de analistas
de mercado, coletadas em pesquisa do BC, deve haver redução até agressiva da
Selic em 2026 —o que, em tese, coincide com a conveniência governista em ano
eleitoral. Seriam cinco cortes de 0,5 ponto percentual, a partir da segunda
reunião do Comitê de Política Monetária (Copom),
em março, e mais um de 0,25 em dezembro.
Nesse cenário, a próxima administração do
país assumirá em 2027 com juros de 12,25% anuais. Note-se que essa ainda será
uma taxa muito elevadíssima, incompatível com crescimento sustentável e
contaminada por problemas fiscais e incertezas diversas.
As expectativas do mercado para a evolução da
inflação são menos otimistas que as do BC, apontando para um índice de 3,8% ao
final de 2027. As medidas da inflação nos serviços, mais resistente, ainda
ficam em torno de 6% anuais, algumas em alta, ante um IPCA de 4,4% acumulado
nos 12 meses até novembro.
Ou seja, alguns indicadores centrais para a
política monetária ainda estão fora do lugar. Talvez por isso o comunicado da
última reunião do Copom não tenha dado indícios claros de início do ciclo de
reduções dos juros.
Por enquanto, segundo o próprio comando do
BC, faltariam as condições necessárias para o começo do afrouxamento monetário.
Ademais, há questões políticas que podem vir a ser consideradas empecilhos no
caminho para taxas de juros mais baixas.
Após as eleições presidenciais,
o vencedor, qualquer que seja ele, terá de enfrentar uma situação orçamentária
dificílima, que vai requerer medidas imediatas.
O resultado do pleito será decisivo para a
formação das expectativas a respeito do destino econômico imediato do país. A
esse respeito, restam evidentes sinais de que a reeleição de Luiz Inácio Lula da
Silva (PT)
afetaria preços essenciais, como a taxa de câmbio —ao
menos até este momento, em que o petista não demonstra
nenhuma preocupação com o ajuste das contas públicas.
Caso os candidatos mais competitivos não
apresentem planos críveis de contenção de déficits e da dívida, maior será o
risco de turbulência financeira. A não ser que expectativas e inflação corrente
apontem clara tendência de queda, a hipótese de tensão no mercado pode fazer
com que o BC venha a ser mais cauteloso.
Enxugando gelo nos Correios, com aval do
contribuinte
Por Folha de S. Paulo
Empréstimo à estatal cai de R$ 20 bi para R$
12 bi, mas operação ainda depende da garantia do Tesouro
Existia uma alternativa viável: o plano de
privatização elaborado pelo BNDES; acredite quem quiser no projeto de ajuste
prometido
Diante do risco iminente de colapso dos Correios,
com prejuízo acumulado de R$ 6,1 bilhões nos primeiros nove meses deste 2025, o
governo Luiz Inácio Lula da
Silva (PT)
corre contra o tempo de para viabilizar um
empréstimo de R$ 12 bilhões de um consórcio de bancos à empresa
estatal.
Cinco instituições —Banco do Brasil, Caixa,
Bradesco, Itaú e Santander— acabam de apresentar proposta com juros entre 115%
e 120% do CDI (até 18% ao ano atualmente). A operação, na prática, fica na
conta do contribuinte, pois contará com garantia da União em caso de calote.
O pleito inicial dos defensores dos Correios
no governo era obter R$ 20 bilhões, mas a primeira proposta recebida, com taxas
elevadas (cerca de 136% do CDI), foi recusada
pelo Tesouro Nacional. O valor foi então reduzido para viabilizar o
acordo, em troca de um plano de reestruturação e cortes de custos.
Tudo isso era previsível desde o início do
terceiro mandato de Lula. A resistência ideológica e corporativista da gestão
petista ao modelo de eficiência privada, aliada à má qualidade da gestão da
estatal, confirmou o desastre.
Após ter obtido lucro em anos anteriores, em
2023 os Correios registraram prejuízo de R$ 597 milhões. Em 2024, o rombo mais
que quadruplicou e chegou a R$ 2,6 bilhões, impulsionado por queda de receitas
(especialmente encomendas internacionais), aumento de despesas com custeio e
perdas judiciais.
Neste ano, a crise anunciada explodiu:
prejuízo de R$ 1,7 bilhão no primeiro trimestre, R$ 4,3 bilhões no semestre e
R$ 6,1 bilhões até setembro —uma sequência de trimestres ruinosos que expõe
ineficiência crônica.
Na teoria, o empréstimo de R$ 12 bilhões será
usado para bancar um projeto de reestruturação tardio e insuficiente. Com a
contrapartida da garantia, a estatal deverá submeter ao governo um plano de
reequilíbrio, com prestação de contas semestral.
Parâmetros divulgados incluem um novo
programa de demissão voluntária para até 15 mil empregados e reformulação de
cargos, salários e benefícios, além de corte de agências deficitárias. Acredite
quem quiser.
Existia uma alternativa viável —o plano de privatização do negócio de entregas e logística, com concessão dos serviços postais universais preservando sua natureza pública, elaborado pelo BNDES no governo passado. Em vez disso, Lula prefere enterrar dinheiro público em um negócio inviável que, de mais estratégico, serve de cabide de emprego para apaniguados do partido.
Força, ministro Fachin
Por O Estado de S. Paulo
O Brasil precisa apoiar o presidente do STF,
Edson Fachin, em sua tentativa de estabelecer um código de ética para o
Supremo, porque, como era previsível, não está sendo fácil
O presidente do Supremo Tribunal Federal
(STF), Edson Fachin, propôs um código de ética para ministros. A reação dos
colegas, entre a indiferença e a irritação, não poderia ser mais eloquente,
razão pela qual, segundo se relata em Brasília, Fachin está isolado no Supremo.
Diante disso, este jornal manifesta total apoio à iniciativa de Fachin – e
concita o Brasil a fazer o mesmo. Se o presidente do Supremo está isolado na
Corte, deve ficar claro para seus pares que o País está com ele.
Suprema ironia: o tribunal que alterna seus
dias entre promover cruzadas moralizantes e reescrever leis e a própria
Constituição recusa-se a redigir um punhado de regras para si mesmo.
Paradoxal, mas consequente: regulamentos
elementares de decoro e transparência, que regem as cortes de democracias
civilizadas, ameaçam a rotina de privilégios, permissividade e jurisdições
alternativas no Brasil – viagens bancadas por empresários com processos na
Corte; jantares de lobby travestidos de “seminários”; palestras remuneradas por
grupos de interesse; camarotes e jatinhos emprestados; parentes operando como
cambistas processuais; sociedades comerciais de ministros; comentários
políticos na grande mídia; apadrinhamento de indicações na Justiça; costuras
com caciques parlamentares. No mundo real isso se chama conflito de interesses;
no STF é “agenda institucional”.
A Corte é hoje a reserva amoral da Nação. Os
ministros tornaram inaplicáveis a si mesmos as resoluções do Conselho Nacional
de Justiça, a Lei Orgânica da Magistratura Nacional e seu Código de Ética.
Declararam-se imunes a impedimentos por suspeição, limitações a atividades
empresariais ou à obrigação de se manifestar somente nos autos.
Quando o topo cultiva a indústria do lobby
judicial, o empreendedorismo togado, o nepotismo de alta performance, o
ativismo ideológico, a guerra santa contra a transparência, por que um
desembargador se daria ao trabalho de dizer “não”? Juízes e promotores observam
e concluem: a ética é adereço opcional. O STF deveria ser o vértice da integridade
republicana. Converteu-se no epicentro da degradação. A confiança pública na
Corte segue em queda livre. Tribunais vivem de autoridade simbólica – e ela se
desintegra quando seus membros parecem personagens de uma crônica de costumes,
não guardiões da lei.
O caso do Banco Master é um microcosmo nesse
universo promíscuo. Seu controlador, Daniel Vorcaro, investigado por uma
coleção de fraudes, patrocinou encontros exclusivos dos ministros com políticos
e empresários e celebrou contratos multimilionários com seus parentes. Quando
sua situação criminal se agravou, uma petição nebulosa aterrissou no gabinete
de Dias Toffoli, que já confraternizou com ele e advogados do banco. O
inquérito foi trancado sob sigilo e descansa em paz.
Se o Estado não controla sua cúpula judicial,
como resistirá à infiltração do crime organizado? “Esse país já teve presidente
preso, deputado preso, governador preso”, alertou o senador Alessandro Vieira,
“mas ainda não teve ministros dos tribunais superiores – e me parece que esse
momento se avizinha”.
A crise ética não decorre de pecadilhos
individuais. É estrutural. Nasce da fusão entre poder ilimitado e
autorregulação indulgente. O personalismo monocrático contaminou a vida
judicial. A autoimunidade é reforçada por uma blindagem ativa contra qualquer
controle externo: rechaço a auditorias independentes, resistência a mecanismos
parlamentares de responsabilização, hermenêuticas criativas que convertem
prerrogativas em salvo-condutos. O STF tornou-se juiz – e não raro cúmplice – de
si mesmo. Quebrou a bússola moral e a jogou fora.
O código proposto por Fachin não é panaceia,
mas seria um bom começo. Ele não limitaria a liberdade da Corte, só a
libertinagem de seus ministros. O STF vive a maior crise moral de sua história.
E não porque é desmoralizado por “extremistas de direita”, mas porque seus
membros normalizaram comportamentos que em jurisdições civilizadas são
incompatíveis com a toga. Um tribunal que confunde independência com licença,
prerrogativa com privilégio e autoridade com impunidade não conseguiria
defender a Constituição – nem que quisesse.
A hora mais escura da aliança atlântica
Por O Estado de S. Paulo
Em entrevista, Trump deixa explícito que a
Europa, antes parceira vital dos EUA, passou a ser obstáculo cultural, político
e identitário, visão que converge com a da Rússia de Putin
A entrevista de Donald Trump à revista Politico foi a
exposição mais franca até agora de sua doutrina para a Europa. Ao insinuar que
a vitória da Rússia contra a Ucrânia é questão de tempo, exigir eleições
ucranianas sob bombardeio e tratar aliados históricos como fardos, o presidente
americano rompeu publicamente com o pilar que sustentou a ordem ocidental desde
1945. A reação de Moscou à sua Estratégia de Segurança Nacional – “amplamente
consistente com nossa visão” – apenas confirmou o essencial: não há equívoco,
há alinhamento. Pela primeira vez desde a 2.ª Guerra, a estratégia americana
evita classificar a Rússia como ameaça. Esse silêncio diz tudo.
Na Casa Branca comandada por Trump, a Europa
deixa de ser parceira vital e passa a ser obstáculo cultural, político e
identitário. A Ucrânia deixa de ser fronteira avançada da liberdade e passa a
ser um terreno negociável. Já a Rússia deixa de ser o agressor central do eixo
atlântico para tornar-se elemento de “estabilidade estratégica”. Nada disso é
isolacionismo. É reorientação: a substituição da ordem liberal multilateralista
pela geopolítica das esferas de influência – exatamente a lógica que levou às grandes
guerras e que as democracias ocidentais passaram oito décadas tentando superar.
O impacto mais imediato recai sobre Kiev.
Pressionada a aceitar eleições que exigem garantias inexistentes e instada a
ceder posições estratégicas no Donbas, a Ucrânia vê ruir a premissa básica de
qualquer negociação: não ser forçada à capitulação. A exigência de retirar-se
da linha de contenção degradaria a própria capacidade de o país sobreviver. A
Europa oferece solidariedade e discursos elevados, mas não armas e recursos na
escala necessária. A discrepância entre a retórica europeia e a realidade
militar é hoje tão evidente quanto perigosa.
Os riscos para a própria Europa são imensos.
Pela primeira vez desde a criação da Otan, Washington não se vê como âncora da
segurança intercontinental, mas como árbitro distante entre um bloco
“decadente” e um autocrata determinado. A nova estratégia americana, ao
retratar o continente como ameaça à “civilização ocidental”, ecoa com precisão
a narrativa russa sobre a decadência europeia e legitima movimentos que visam a
enfraquecer Bruxelas. Isso ocorre justamente quando generais europeus alertam
que o prazo para uma dissuasão crível contra Moscou se encerra em três ou
quatro anos – e quando as capacidades críticas para esse esforço continuam
concentradas nos EUA.
A erosão da aliança transatlântica não é
acidente, mas escolha. Ela reabre a porta para o mundo pré-1945: um continente
exposto a potências revisionistas e à velha tentação de acomodar autocratas em
nome de uma paz ilusória. A ordem de Helsinque, que consagrou a inviolabilidade
das fronteiras, só cai quando o fiador de última instância decide que tais
fronteiras são negociáveis. O Ocidente venceu a guerra fria porque manteve
coesão moral e estratégica; perde agora porque abandona a primeira e hesita na
segunda. A ordem liberal não implode por ataques frontais, mas desmorona por
renúncias silenciosas.
É esse o risco estrutural que emerge da
entrevista de Trump. A segurança europeia deixa de ser interesse vital dos EUA,
a defesa da democracia liberal deixa de ser fundamento de sua política externa
e a fronteira civilizatória do Ocidente – hoje traçada nas trincheiras
ucranianas – torna-se objeto de barganha. Quando Washington e Moscou convergem
na leitura estratégica da Europa, o problema não é diplomático: é histórico.
O Estratégia de Segurança Nacional de Trump
documentou o nascimento dessa doutrina. Sua entrevista explicita suas
consequências. Se a Europa não reagir – rearmando-se, unificando-se e
abandonando a fantasia de que Washington sempre estará lá –, verá seu destino
decidido por terceiros. Alianças não morrem em guerras; morrem antes delas,
quando os aliados deixam de acreditar na sua razão de ser. A entrevista de
Trump é essa advertência. A Europa ainda tem tempo para ouvi-la. Mas ele é
curto.
A punição ao devedor contumaz
Por O Estado de S. Paulo
Projeto de lei é finalmente aprovado, depois
de inexplicável tramitação de oito anos
Oito anos de tramitação é um prazo excessivo
para qualquer matéria no Congresso Nacional, ainda mais para aquelas que não
embutem mudanças constitucionais e não representam uma ampla e complexa reforma
estrutural. Por isso, não há justificativa plausível para tamanha demora na
aprovação do projeto que cria e tipifica a figura do devedor contumaz,
conhecido desde priscas eras como sonegador de impostos, que agora fica sujeito
a punições mais rigorosas.
Nas aprovações recentes no Senado e na
Câmara, depois de longa e inexplicável resistência em pautar a votação do
projeto, os parlamentares apenas cumpriram o seu papel de zelar pela ordem
econômica e pelo bem-estar da sociedade. E o fizeram, ressalte-se, encurralados
por operações da Polícia Federal, do Fisco e de Ministérios Públicos Estaduais
que não deixaram dúvidas sobre a estratégia de negócios das gangues travestidas
de grupos empresariais.
Os chamados devedores contumazes estão
ligados não apenas à sonegação, mas também à lavagem de dinheiro, ao conluio
com o crime organizado e, por vezes, ao tráfico de armas e drogas. São bandidos
e como tais devem ser tratados. Diante das múltiplas evidências escancaradas
pelas investigações, que desmantelaram fraudes bilionárias tendo como fachada
empresas legalmente constituídas com a finalidade de escamotear a atividade
criminosa, não houve pressão lobista capaz de manter o projeto engavetado.
A relutância do Legislativo em deliberar
sobre a proposta expôs não o cuidado dos parlamentares em debater o projeto à
exaustão, o que seria uma atitude meritória, ainda que seja difícil comprar a
tese de que a instituição do Código de Defesa do Contribuinte seja matéria
intrincada a ponto de consumir tanto tempo. Na verdade, o prazo de permanência
na gaveta expressou a total falta de prioridade da medida para os
parlamentares, seja qual for motivo, apesar de representar um passo importante
na recuperação de dívidas estimadas em cerca de R$ 200 bilhões em setores como
o de combustíveis, bebidas e cigarros, entre outros.
O projeto, enviado à sanção presidencial, prevê
a baixa do CNPJ de empresas identificadas como devedoras contumazes – em âmbito
federal, com dívida injustificada superior a R$ 15 milhões e correspondente a
mais de 100% do seu patrimônio; nos níveis estadual e municipal, quem tem
dívidas tributárias por pelo menos quatro períodos de apuração consecutivos ou
seis alternados no prazo de 12 meses sem justificativa.
É importante que as pessoas físicas associadas a esses CNPJs sejam também responsabilizadas e exemplarmente punidas para estancar a contaminação da bandidagem que se espalhou por diversos setores econômicos, chegou ao mercado financeiro e serve de elo entre o crime organizado e a economia formal. Como levantou a Receita Federal na Operação Carbono Oculto, a facção criminosa Primeiro Comando da Capital (PCC) usava mais de mil postos de combustíveis em dez Estados e controlava 40 fundos de investimentos para lavar dinheiro. Isso, além de crime, é um escárnio com as instituições e o poder constituído.
Planejamento na malha rodoviária
Por Correio Braziliense
A mobilidade eficiente exige ações do poder
público e do cidadão pela garantia do respeito à vida e pelo desenvolvimento
socioeconômico
No Brasil, as estradas são a principal
alternativa de deslocamento por demandas de trabalho e de lazer. Com uma das
maiores malhas rodoviárias do mundo — cerca de 1,7 milhão de quilômetros
de estradas, segundo dados do Departamento Nacional de Infraestrutura de
Transportes (DNIT) —, esse vasto conjunto é fundamental para a circulação de
pessoas e de cargas, inclusive o escoamento da produção até os portos. Nesta
época, com as celebrações de fim de ano e as férias escolares, o movimento é
intensificado devido ao aquecimento da economia e às viagens de descanso,
escancarando questões que há décadas permeiam o sistema.
O aumento de fluxo no asfalto escancara a
falta de segurança e manutenção, além de comprovar que a imprudência segue ao
lado de muitos motoristas — problemas que o país ainda não conseguiu
deixar para trás. Os obstáculos começam na própria constituição das rodovias,
já que, do total da extensão nacional, a grande maioria não é pavimentada. As
condições precárias espalham prejuízos e provocam mortes em números
preocupantes.
A imprudência também segue ao lado dessa
realidade de perdas, e a parte que compete aos motoristas precisa ser
considerada. Se na rota há diversas armadilhas, quem está ao volante precisa
adotar medidas para minimizar os riscos. Fazer a revisão do veículo, dirigir
com cautela, respeitar as regras e as sinalizações — como limite de velocidade —
e planejar o trajeto são responsabilidades que não podem ser negligenciadas.
Aos governos e órgãos responsáveis pelas
estradas, a tarefa é enorme e não está em dia. A fiscalização e as verbas
destinadas às melhorias são insuficientes diante do tamanho das estatísticas. A
melhoria da infraestrutura é um processo que requer constância e recursos. Por
sua vez, as concessões à iniciativa privada precisam ser conduzidas e
monitoradas pelas autoridades com todo o rigor possível.
A realidade é que a malha rodoviária impõe
elevados custos econômicos e logísticos ao Brasil. A grandeza territorial e a
predominância do transporte rodoviário exigem investimentos contínuos em
manutenção e ampliação das estradas. Sem isso, as consequências são o alto
custo do frete, o consumo elevado de combustível e o desgaste maior dos
veículos. A falta de conservação ainda compromete a segurança viária.
Outro desafio é aprimorar a integração com demais modais, que permanece limitada. Como resultado, a dependência excessiva das rodovias reduz a competitividade da economia. Superar esses desafios exige planejamento de longo prazo. Investimentos equilibrados e políticas públicas consistentes são essenciais para a sustentabilidade da malha rodoviária brasileira. Esforços nunca são demais para que o país cumpra o caminho correto e conquiste uma rede rodoviária que deixe de ser sinônimo de perigo para a população e que atinja o potencial que o mercado necessita. A mobilidade eficiente exige ações do poder público e do cidadão pela garantia do respeito à vida e pelo desenvolvimento socioeconômico. Superar os problemas vai exigir planejamento de longo prazo. O Brasil não pode seguir sem políticas públicas consistentes e capazes de assegurar a eficiência e a sustentabilidade da sua malha rodoviária.
Pobreza cai, mas romper a cadeia requer
igualar oportunidades
Por Valor Econômico
Os mais "poderosos equalizadores" de oportunidades são a educação e a saúde
A pobreza e a extrema pobreza caíram no
Brasil entre 2023 e 2024, na primeira metade do terceiro mandato do presidente
Lula. Saíram da pobreza 8,6 milhões de pessoas, com corte de 4,2 pontos
percentuais (de 27% para 23,1%), e 1,6 milhão deixaram a miséria, com
diminuição de 4,4% para 3,5%. São fatos positivos, mas tão instáveis quanto os
rumos da política econômica brasileira, que é o que define a distribuição de
renda e a riqueza da nação. O Mapa da Desigualdade, elaborado com supervisão do
economista Thomas Piketty, mostrou para o mesmo período que tanto uma quanto
outra continuam horríveis no Brasil e, o que é pior, cresceram entre 2014 e
2024. O país continua um dos mais desiguais do mundo.
Ainda que Lula tenha colocado o combate à
pobreza no centro de suas políticas desde que assumiu a Presidência em 2003, as
orientações econômicas de seus governos não foram consistentes para eliminar o
sobe-e-desce da pobreza, nem permitiram vislumbrar um crescimento sustentável o
suficiente para romper com essas oscilações. A redução das duas camadas de
pobreza observada nos três primeiros governos do PT tomou rumo contrário no
segundo mandato de Dilma, como efeito de sua política econômica desastrosa, que
levou à maior recessão da história republicana. A situação só melhorou após a
pandemia, depois que o Auxílio Brasil, no governo de Jair Bolsonaro, mais que
duplicou os aportes do Bolsa Família - e progrediu com o incremento no retorno
de Lula e do Bolsa Família em 2023, já a um custo de 4 vezes (1,6% do PIB) o
original.
Mesmo após a bem-vinda queda, o número de
pobres e miseráveis continua alto e demonstra que por mais que programas
sociais façam a diferença, e fazem muita, não são por si só capazes de produzir
mudanças permanentes no perfil de renda.
Hoje há no Brasil 56,2 milhões de habitantes
pobres e miseráveis, ou 26,6% da população, percentual que foi de 41,3% em
2012, no primeiro mandato de Dilma. Curiosamente, ao verificar o que
aconteceria com a pobreza sem os programas sociais, constata-se também a
redução da proporção de pobres, embora cinco pontos percentuais acima ao longo
da curva. Em 2024, a diferença entre um e outro foi de 23,1% e 28,7%. O
declínio ocorre em ambos os critérios a partir de 2021, o que ratifica o fato
de que o crescimento a partir daí foi um grande antídoto contra a pobreza,
embora bem menos potente contra a extrema pobreza. A maior redução entre 2023 e
2024 na pobreza foi no Nordeste, região que concentra o mais sólido apoio
eleitoral ao presidente Lula: caiu de 47,2% para 39,4%.
O IBGE comparou as estatísticas de pobreza e
desigualdade de rendimentos com as dos 40 países da OCDE, que agrupa os mais
ricos do mundo. O Brasil foi o que registrou a maior proporção de trabalhadores
pobres entre eles (16,7%), seguindo outro critério de medição dos rendimentos.
No país, 20% das pessoas com maior renda ganhavam 11 vezes mais que as 20% de
menor renda em 2022. O país apresentou a segunda maior desigualdade entre as
nações da OCDE, atrás apenas da Costa Rica (12,3 vezes) e superando Chile (10,1
vezes) e México (7,8 vezes).
Ter um trabalho não significa, como se
poderia imaginar, o abandono da pobreza. Dos assalariados brasileiros, 12
milhões de pessoas (ou 11,9% do total) tinham rendimento per capita médio que
as classificava como pobres, mesmo os que possuíam carteira assinada (6,7%). A
pobreza foi mais acentuada (29,3%) entre os trabalhadores na agropecuária, o
que contrasta com a pujança e a evolução tecnológica do setor. A pobreza foi a
mais baixa entre os que trabalham para os governos, saúde e serviços sociais
(4,6%).
Os números do IBGE não contam toda a
história, e a pior parte vem do Mapa da Desigualdade de 2025, em que as
estatísticas incluem a riqueza, que engloba todas as rendas (financeiras,
patrimônio herdado etc) e não apenas salários. Pelo levantamento, o Brasil não
só é um dos países mais desiguais do mundo, o que já se sabia, como essa
desigualdade cresceu entre 2014-2024. No caso da renda, os 10% no topo da
pirâmide ganham o equivalente a 59% da renda nacional, enquanto os 50% da base
da pirâmide, apenas 9%. A concentração da riqueza consegue ser ainda maior. Os
10% mais ricos detêm 70% e o 1% mais rico, um terço do total. A diferença da
renda recebida pelos 10% no topo e os 50% na base aumentou no período de 53 vezes
para 63 vezes.
O aumento da concentração não é um fenômeno
brasileiro, mas global. Os 10% mais ricos abarcam 75% de toda a riqueza mundial
e apenas 56 mil pessoas, os super-ricos, têm mais recursos que metade da
humanidade. As políticas sociais são peças básicas para ajudar a reverter essa
situação, mas precisam ser complementadas por outras que impulsionem o
crescimento contínuo, não os voos de galinha frequentes no Brasil, e o aumento
da produtividade, estagnada há quase 4 décadas no país. Para romper a cadeia é
vital igualar as oportunidades, recomenda o documento, que conclui que "os
mais poderosos equalizadores de oportunidades são a educação e a saúde".
Essa é uma orientação que deveria ser seguida à risca por todos os governantes
brasileiros, independentemente de suas ideologias.

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