segunda-feira, 15 de dezembro de 2025

O que a mídia pensa | Editoriais / Opiniões

Sensatez deve prevalecer no PL da Dosimetria

Por O Globo

Qualquer anistia seria inaceitável. Senadores devem fechar brechas abertas pelos deputados no texto

A Câmara dos Deputados aprovou na semana passada o Projeto de Lei (PL) da Dosimetria, que altera o cálculo de penas para crimes contra o Estado Democrático de Direito e, na prática, abre caminho à redução do tempo de permanência na prisão do ex-presidente Jair Bolsonaro e dos demais condenados por tentativa de golpe de Estado e pelos ataques do 8 de Janeiro. A aprovação do PL, numa sessão que se estendeu pela madrugada, se deu por larga margem de votos (291 a 148).

Eram legítimas as críticas às penas aplicadas a alguns dos condenados pelo 8 de Janeiro, demasiadamente severas. Isso ficou patente no caso da cabeleireira Débora Rodrigues dos Santos, sentenciada a 14 anos de prisão por ter pichado a estátua na frente do Supremo Tribunal Federal (STF) — hoje ela está em prisão domiciliar. Mas é essencial que mentores, financiadores e organizadores, mesmo com penas menos severas, respondam pelos crimes graves que cometeram com punição proporcional à gravidade de seus atos. Seria inaceitável qualquer forma de anistia. Funcionaria como incentivo ao golpismo e seria uma afronta à Constituição. Por isso é necessário desde já repudiar os devaneios que rondam o Senado — para onde o projeto foi encaminhado — com o objetivo espúrio de anistiar os condenados, livrando-os de qualquer tipo de punição.

Pelas estimativas do deputado Paulinho da Força (Solidariedade-SP), relator do PL, Bolsonaro — desde novembro, preso na Superintendência da Polícia Federal, em Brasília — poderia cumprir apenas dois anos e três meses em regime fechado. O cálculo se baseia na unificação das penas pelos crimes de abolição do Estado Democrático de Direito e tentativa de golpe de Estado e na retomada da progressão de regime depois do cumprimento de um sexto da pena. Ainda segundo o relator, a pena total de 27 anos e três meses poderia cair para cerca de 21 anos. A aplicação das novas regras dependeria da avaliação dos ministros do Supremo e não ocorreria de forma automática.

Outros pontos no PL da Dosimetria merecem atenção dos senadores. Como mostrou reportagem do GLOBO, o projeto pode beneficiar condenados por certos tipos de crime que não envolvem atos contra a democracia ou o Estado Democrático de Direito. Juristas e integrantes do Ministério Público argumentam que o texto permite progressão de regime mais célere a condenados por crimes como coação no curso do processo, atentados contra meios de transporte, à soberania ou contra a segurança de serviços de utilidade pública. Os senadores precisam corrigir essas falhas.

No Senado, o PL deve ser relatado pelo senador Espiridião Amin (PP-SC), que já disse defender a inclusão da anistia na proposta. É fundamental rechaçar tal retrocesso e trabalhar para fechar as demais brechas do texto. Seria uma lástima se elas beneficiassem criminosos que nada têm a ver com o escopo do projeto. Especialmente neste momento, em que a sociedade, indignada com a inércia diante da violência, clama por mais justiça, enquanto o país discute mudanças na legislação para tornar as penas contra o crime organizado mais severas. Deve prevalecer a sensatez.

Privatizações mostram que, quando ideologia sai de cena, país avança

Por O Globo

Gestão petista já fez 22 leilões de rodovias, 13 aeroportos regionais e se prepara para relicitar o Galeão no Rio

É de bom augúrio que um governo ideologicamente avesso a privatizações continue a recorrer ao setor privado para melhorar a indigente infraestrutura brasileira, setor fundamental para o desenvolvimento. Ao menos no que diz respeito a rodovias e aeroportos, pontos nevrálgicos dos transportes, a gestão petista tem mantido programas de concessão das administrações anteriores.

No episódio mais recente, o governo repactuou o contrato de concessão da Rodovia Fernão Dias (BR-381), que liga São Paulo a Belo Horizonte cortando 33 cidades. O leilão foi vencido pela Motiva (ex-CCR), que superou a Arteris, atual concessionária. Foi o quarto certame para otimizar contratos, e o primeiro em que a atual gestora não levou. A Fernão Dias deverá receber R$ 9,5 bilhões em investimentos, mais R$ 5,4 bilhões em custos operacionais ao longo da concessão. A estrada é um dos principais corredores logísticos do país e registra cerca de 250 mil veículos por dia. O ministro dos Transportes, Renan Filho, disse que ela receberá melhorias na pavimentação e novos acessos às cidades, entre outras intervenções. O atual governo já fez 22 leilões de rodovias e prevê mais 14 para 2026.

O mesmo ímpeto tem contribuído para a privatização dos aeroportos. Em novembro, a GRU Airport, dona da concessão de Guarulhos, em São Paulo, venceu o leilão de 12 terminais regionais, enquanto a alemã Fraport, que administra os aeroportos de Fortaleza e Porto Alegre, arrematou o de Jericoacoara (CE). O investimento previsto nesses locais é estimado em R$ 730 milhões. A intenção é conectá-los à malha nacional e fomentar o desenvolvimento das cidades.

Não menos importante será a licitação do Aeroporto Internacional Tom Jobim/Galeão, no Rio, que experimenta recuperação depois de longo esvaziamento decorrente de problemas no contrato e de desequilíbrio na coordenação com o terminal doméstico Santos Dumont. Na quinta-feira, a Agência Nacional de Aviação Civil (Anac) aprovou o edital do leilão simplificado que ocorrerá em março, com lance mínimo de R$ 932,8 milhões. A intenção é corrigir problemas financeiros do contrato. O governo torce para que a atual concessionária RIOGaleão continue operando o aeroporto.

Quando a resistência ideológica sai de cena, o país avança. Para qualquer brasileiro que circula em rodovias administradas pelo governo federal, fica claro que o Estado não tem condições de mantê-las. É verdade que nem todas são passíveis de concessão à iniciativa privada, pois algumas não são atraentes financeiramente. Mas as que são viáveis devem ser transferidas. Ao menos no setor de infraestrutura, o governo tem se rendido ao óbvio: rodovias e aeroportos melhoram significativamente quando administrados por concessionárias privadas. Se tivesse adotado a mesma atitude diante dos Correios, certamente a empresa não atravessaria crise tão grave, e o contribuinte não teria de arcar com bilhões em mais uma tentativa desesperada de salvá-la.

Obstáculos econômicos e políticos à queda dos juros

Por Folha de S. Paulo

Copom mantém Selic em 15%; inflação, recusa de Lula em ajustar contas públicas e eleição geram incertezas

Caso os candidatos à Presidência não mostrem planos críveis de contenção da dívida pública, maior será o risco de turbulência financeira

Banco Central estima que a inflação acumulada em 12 meses cairá até 3,2% —muito perto da meta oficial de 3%— em algum momento do segundo trimestre de 2027, momento que por ora é o horizonte relevante da política monetária, quando deve ser mais intenso o efeito da alta dos juros.

A projeção consta do comunicado em que o BC divulgou sua decisão de manter sua taxa, a Selic, em sufocantes 15% ao ano. Embora o IPCA pareça rumar para patamares confortáveis, as perspectivas de o país voltar a conviver com juros civilizados ainda estão nubladas por obstáculos econômicos e políticos.

Pelas projeções mais consensuais de analistas de mercado, coletadas em pesquisa do BC, deve haver redução até agressiva da Selic em 2026 —o que, em tese, coincide com a conveniência governista em ano eleitoral. Seriam cinco cortes de 0,5 ponto percentual, a partir da segunda reunião do Comitê de Política Monetária (Copom), em março, e mais um de 0,25 em dezembro.

Nesse cenário, a próxima administração do país assumirá em 2027 com juros de 12,25% anuais. Note-se que essa ainda será uma taxa muito elevadíssima, incompatível com crescimento sustentável e contaminada por problemas fiscais e incertezas diversas.

As expectativas do mercado para a evolução da inflação são menos otimistas que as do BC, apontando para um índice de 3,8% ao final de 2027. As medidas da inflação nos serviços, mais resistente, ainda ficam em torno de 6% anuais, algumas em alta, ante um IPCA de 4,4% acumulado nos 12 meses até novembro.

Ou seja, alguns indicadores centrais para a política monetária ainda estão fora do lugar. Talvez por isso o comunicado da última reunião do Copom não tenha dado indícios claros de início do ciclo de reduções dos juros.

Por enquanto, segundo o próprio comando do BC, faltariam as condições necessárias para o começo do afrouxamento monetário. Ademais, há questões políticas que podem vir a ser consideradas empecilhos no caminho para taxas de juros mais baixas.

Após as eleições presidenciais, o vencedor, qualquer que seja ele, terá de enfrentar uma situação orçamentária dificílima, que vai requerer medidas imediatas.

O resultado do pleito será decisivo para a formação das expectativas a respeito do destino econômico imediato do país. A esse respeito, restam evidentes sinais de que a reeleição de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) afetaria preços essenciais, como a taxa de câmbio —ao menos até este momento, em que o petista não demonstra nenhuma preocupação com o ajuste das contas públicas.

Caso os candidatos mais competitivos não apresentem planos críveis de contenção de déficits e da dívida, maior será o risco de turbulência financeira. A não ser que expectativas e inflação corrente apontem clara tendência de queda, a hipótese de tensão no mercado pode fazer com que o BC venha a ser mais cauteloso.

Enxugando gelo nos Correios, com aval do contribuinte

Por Folha de S. Paulo

Empréstimo à estatal cai de R$ 20 bi para R$ 12 bi, mas operação ainda depende da garantia do Tesouro

Existia uma alternativa viável: o plano de privatização elaborado pelo BNDES; acredite quem quiser no projeto de ajuste prometido

Diante do risco iminente de colapso dos Correios, com prejuízo acumulado de R$ 6,1 bilhões nos primeiros nove meses deste 2025, o governo Luiz Inácio Lula da Silva (PT) corre contra o tempo de para viabilizar um empréstimo de R$ 12 bilhões de um consórcio de bancos à empresa estatal.

Cinco instituições —Banco do Brasil, Caixa, Bradesco, Itaú e Santander— acabam de apresentar proposta com juros entre 115% e 120% do CDI (até 18% ao ano atualmente). A operação, na prática, fica na conta do contribuinte, pois contará com garantia da União em caso de calote.

O pleito inicial dos defensores dos Correios no governo era obter R$ 20 bilhões, mas a primeira proposta recebida, com taxas elevadas (cerca de 136% do CDI), foi recusada pelo Tesouro Nacional. O valor foi então reduzido para viabilizar o acordo, em troca de um plano de reestruturação e cortes de custos.

Tudo isso era previsível desde o início do terceiro mandato de Lula. A resistência ideológica e corporativista da gestão petista ao modelo de eficiência privada, aliada à má qualidade da gestão da estatal, confirmou o desastre.

Após ter obtido lucro em anos anteriores, em 2023 os Correios registraram prejuízo de R$ 597 milhões. Em 2024, o rombo mais que quadruplicou e chegou a R$ 2,6 bilhões, impulsionado por queda de receitas (especialmente encomendas internacionais), aumento de despesas com custeio e perdas judiciais.

Neste ano, a crise anunciada explodiu: prejuízo de R$ 1,7 bilhão no primeiro trimestre, R$ 4,3 bilhões no semestre e R$ 6,1 bilhões até setembro —uma sequência de trimestres ruinosos que expõe ineficiência crônica.

Na teoria, o empréstimo de R$ 12 bilhões será usado para bancar um projeto de reestruturação tardio e insuficiente. Com a contrapartida da garantia, a estatal deverá submeter ao governo um plano de reequilíbrio, com prestação de contas semestral.

Parâmetros divulgados incluem um novo programa de demissão voluntária para até 15 mil empregados e reformulação de cargos, salários e benefícios, além de corte de agências deficitárias. Acredite quem quiser.

Existia uma alternativa viável —o plano de privatização do negócio de entregas e logística, com concessão dos serviços postais universais preservando sua natureza pública, elaborado pelo BNDES no governo passado. Em vez disso, Lula prefere enterrar dinheiro público em um negócio inviável que, de mais estratégico, serve de cabide de emprego para apaniguados do partido.

Força, ministro Fachin

Por O Estado de S. Paulo

O Brasil precisa apoiar o presidente do STF, Edson Fachin, em sua tentativa de estabelecer um código de ética para o Supremo, porque, como era previsível, não está sendo fácil

O presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Edson Fachin, propôs um código de ética para ministros. A reação dos colegas, entre a indiferença e a irritação, não poderia ser mais eloquente, razão pela qual, segundo se relata em Brasília, Fachin está isolado no Supremo. Diante disso, este jornal manifesta total apoio à iniciativa de Fachin – e concita o Brasil a fazer o mesmo. Se o presidente do Supremo está isolado na Corte, deve ficar claro para seus pares que o País está com ele.

Suprema ironia: o tribunal que alterna seus dias entre promover cruzadas moralizantes e reescrever leis e a própria Constituição recusa-se a redigir um punhado de regras para si mesmo.

Paradoxal, mas consequente: regulamentos elementares de decoro e transparência, que regem as cortes de democracias civilizadas, ameaçam a rotina de privilégios, permissividade e jurisdições alternativas no Brasil – viagens bancadas por empresários com processos na Corte; jantares de lobby travestidos de “seminários”; palestras remuneradas por grupos de interesse; camarotes e jatinhos emprestados; parentes operando como cambistas processuais; sociedades comerciais de ministros; comentários políticos na grande mídia; apadrinhamento de indicações na Justiça; costuras com caciques parlamentares. No mundo real isso se chama conflito de interesses; no STF é “agenda institucional”.

A Corte é hoje a reserva amoral da Nação. Os ministros tornaram inaplicáveis a si mesmos as resoluções do Conselho Nacional de Justiça, a Lei Orgânica da Magistratura Nacional e seu Código de Ética. Declararam-se imunes a impedimentos por suspeição, limitações a atividades empresariais ou à obrigação de se manifestar somente nos autos.

Quando o topo cultiva a indústria do lobby judicial, o empreendedorismo togado, o nepotismo de alta performance, o ativismo ideológico, a guerra santa contra a transparência, por que um desembargador se daria ao trabalho de dizer “não”? Juízes e promotores observam e concluem: a ética é adereço opcional. O STF deveria ser o vértice da integridade republicana. Converteu-se no epicentro da degradação. A confiança pública na Corte segue em queda livre. Tribunais vivem de autoridade simbólica – e ela se desintegra quando seus membros parecem personagens de uma crônica de costumes, não guardiões da lei.

O caso do Banco Master é um microcosmo nesse universo promíscuo. Seu controlador, Daniel Vorcaro, investigado por uma coleção de fraudes, patrocinou encontros exclusivos dos ministros com políticos e empresários e celebrou contratos multimilionários com seus parentes. Quando sua situação criminal se agravou, uma petição nebulosa aterrissou no gabinete de Dias Toffoli, que já confraternizou com ele e advogados do banco. O inquérito foi trancado sob sigilo e descansa em paz.

Se o Estado não controla sua cúpula judicial, como resistirá à infiltração do crime organizado? “Esse país já teve presidente preso, deputado preso, governador preso”, alertou o senador Alessandro Vieira, “mas ainda não teve ministros dos tribunais superiores – e me parece que esse momento se avizinha”.

A crise ética não decorre de pecadilhos individuais. É estrutural. Nasce da fusão entre poder ilimitado e autorregulação indulgente. O personalismo monocrático contaminou a vida judicial. A autoimunidade é reforçada por uma blindagem ativa contra qualquer controle externo: rechaço a auditorias independentes, resistência a mecanismos parlamentares de responsabilização, hermenêuticas criativas que convertem prerrogativas em salvo-condutos. O STF tornou-se juiz – e não raro cúmplice – de si mesmo. Quebrou a bússola moral e a jogou fora.

O código proposto por Fachin não é panaceia, mas seria um bom começo. Ele não limitaria a liberdade da Corte, só a libertinagem de seus ministros. O STF vive a maior crise moral de sua história. E não porque é desmoralizado por “extremistas de direita”, mas porque seus membros normalizaram comportamentos que em jurisdições civilizadas são incompatíveis com a toga. Um tribunal que confunde independência com licença, prerrogativa com privilégio e autoridade com impunidade não conseguiria defender a Constituição – nem que quisesse.

A hora mais escura da aliança atlântica

Por O Estado de S. Paulo

Em entrevista, Trump deixa explícito que a Europa, antes parceira vital dos EUA, passou a ser obstáculo cultural, político e identitário, visão que converge com a da Rússia de Putin

A entrevista de Donald Trump à revista Politico foi a exposição mais franca até agora de sua doutrina para a Europa. Ao insinuar que a vitória da Rússia contra a Ucrânia é questão de tempo, exigir eleições ucranianas sob bombardeio e tratar aliados históricos como fardos, o presidente americano rompeu publicamente com o pilar que sustentou a ordem ocidental desde 1945. A reação de Moscou à sua Estratégia de Segurança Nacional – “amplamente consistente com nossa visão” – apenas confirmou o essencial: não há equívoco, há alinhamento. Pela primeira vez desde a 2.ª Guerra, a estratégia americana evita classificar a Rússia como ameaça. Esse silêncio diz tudo.

Na Casa Branca comandada por Trump, a Europa deixa de ser parceira vital e passa a ser obstáculo cultural, político e identitário. A Ucrânia deixa de ser fronteira avançada da liberdade e passa a ser um terreno negociável. Já a Rússia deixa de ser o agressor central do eixo atlântico para tornar-se elemento de “estabilidade estratégica”. Nada disso é isolacionismo. É reorientação: a substituição da ordem liberal multilateralista pela geopolítica das esferas de influência – exatamente a lógica que levou às grandes guerras e que as democracias ocidentais passaram oito décadas tentando superar.

O impacto mais imediato recai sobre Kiev. Pressionada a aceitar eleições que exigem garantias inexistentes e instada a ceder posições estratégicas no Donbas, a Ucrânia vê ruir a premissa básica de qualquer negociação: não ser forçada à capitulação. A exigência de retirar-se da linha de contenção degradaria a própria capacidade de o país sobreviver. A Europa oferece solidariedade e discursos elevados, mas não armas e recursos na escala necessária. A discrepância entre a retórica europeia e a realidade militar é hoje tão evidente quanto perigosa.

Os riscos para a própria Europa são imensos. Pela primeira vez desde a criação da Otan, Washington não se vê como âncora da segurança intercontinental, mas como árbitro distante entre um bloco “decadente” e um autocrata determinado. A nova estratégia americana, ao retratar o continente como ameaça à “civilização ocidental”, ecoa com precisão a narrativa russa sobre a decadência europeia e legitima movimentos que visam a enfraquecer Bruxelas. Isso ocorre justamente quando generais europeus alertam que o prazo para uma dissuasão crível contra Moscou se encerra em três ou quatro anos – e quando as capacidades críticas para esse esforço continuam concentradas nos EUA.

A erosão da aliança transatlântica não é acidente, mas escolha. Ela reabre a porta para o mundo pré-1945: um continente exposto a potências revisionistas e à velha tentação de acomodar autocratas em nome de uma paz ilusória. A ordem de Helsinque, que consagrou a inviolabilidade das fronteiras, só cai quando o fiador de última instância decide que tais fronteiras são negociáveis. O Ocidente venceu a guerra fria porque manteve coesão moral e estratégica; perde agora porque abandona a primeira e hesita na segunda. A ordem liberal não implode por ataques frontais, mas desmorona por renúncias silenciosas.

É esse o risco estrutural que emerge da entrevista de Trump. A segurança europeia deixa de ser interesse vital dos EUA, a defesa da democracia liberal deixa de ser fundamento de sua política externa e a fronteira civilizatória do Ocidente – hoje traçada nas trincheiras ucranianas – torna-se objeto de barganha. Quando Washington e Moscou convergem na leitura estratégica da Europa, o problema não é diplomático: é histórico.

O Estratégia de Segurança Nacional de Trump documentou o nascimento dessa doutrina. Sua entrevista explicita suas consequências. Se a Europa não reagir – rearmando-se, unificando-se e abandonando a fantasia de que Washington sempre estará lá –, verá seu destino decidido por terceiros. Alianças não morrem em guerras; morrem antes delas, quando os aliados deixam de acreditar na sua razão de ser. A entrevista de Trump é essa advertência. A Europa ainda tem tempo para ouvi-la. Mas ele é curto.

A punição ao devedor contumaz

Por O Estado de S. Paulo

Projeto de lei é finalmente aprovado, depois de inexplicável tramitação de oito anos

Oito anos de tramitação é um prazo excessivo para qualquer matéria no Congresso Nacional, ainda mais para aquelas que não embutem mudanças constitucionais e não representam uma ampla e complexa reforma estrutural. Por isso, não há justificativa plausível para tamanha demora na aprovação do projeto que cria e tipifica a figura do devedor contumaz, conhecido desde priscas eras como sonegador de impostos, que agora fica sujeito a punições mais rigorosas.

Nas aprovações recentes no Senado e na Câmara, depois de longa e inexplicável resistência em pautar a votação do projeto, os parlamentares apenas cumpriram o seu papel de zelar pela ordem econômica e pelo bem-estar da sociedade. E o fizeram, ressalte-se, encurralados por operações da Polícia Federal, do Fisco e de Ministérios Públicos Estaduais que não deixaram dúvidas sobre a estratégia de negócios das gangues travestidas de grupos empresariais.

Os chamados devedores contumazes estão ligados não apenas à sonegação, mas também à lavagem de dinheiro, ao conluio com o crime organizado e, por vezes, ao tráfico de armas e drogas. São bandidos e como tais devem ser tratados. Diante das múltiplas evidências escancaradas pelas investigações, que desmantelaram fraudes bilionárias tendo como fachada empresas legalmente constituídas com a finalidade de escamotear a atividade criminosa, não houve pressão lobista capaz de manter o projeto engavetado.

A relutância do Legislativo em deliberar sobre a proposta expôs não o cuidado dos parlamentares em debater o projeto à exaustão, o que seria uma atitude meritória, ainda que seja difícil comprar a tese de que a instituição do Código de Defesa do Contribuinte seja matéria intrincada a ponto de consumir tanto tempo. Na verdade, o prazo de permanência na gaveta expressou a total falta de prioridade da medida para os parlamentares, seja qual for motivo, apesar de representar um passo importante na recuperação de dívidas estimadas em cerca de R$ 200 bilhões em setores como o de combustíveis, bebidas e cigarros, entre outros.

O projeto, enviado à sanção presidencial, prevê a baixa do CNPJ de empresas identificadas como devedoras contumazes – em âmbito federal, com dívida injustificada superior a R$ 15 milhões e correspondente a mais de 100% do seu patrimônio; nos níveis estadual e municipal, quem tem dívidas tributárias por pelo menos quatro períodos de apuração consecutivos ou seis alternados no prazo de 12 meses sem justificativa.

É importante que as pessoas físicas associadas a esses CNPJs sejam também responsabilizadas e exemplarmente punidas para estancar a contaminação da bandidagem que se espalhou por diversos setores econômicos, chegou ao mercado financeiro e serve de elo entre o crime organizado e a economia formal. Como levantou a Receita Federal na Operação Carbono Oculto, a facção criminosa Primeiro Comando da Capital (PCC) usava mais de mil postos de combustíveis em dez Estados e controlava 40 fundos de investimentos para lavar dinheiro. Isso, além de crime, é um escárnio com as instituições e o poder constituído.

Planejamento na malha rodoviária

Por Correio Braziliense

A mobilidade eficiente exige ações do poder público e do cidadão pela garantia do respeito à vida e pelo desenvolvimento socioeconômico

No Brasil, as estradas são a principal alternativa de deslocamento por demandas de trabalho e de lazer. Com uma das maiores malhas rodoviárias do mundo — cerca de 1,7 milhão de quilômetros de estradas, segundo dados do Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (DNIT) —, esse vasto conjunto é fundamental para a circulação de pessoas e de cargas, inclusive o escoamento da produção até os portos. Nesta época, com as celebrações de fim de ano e as férias escolares, o movimento é intensificado devido ao aquecimento da economia e às viagens de descanso, escancarando questões que há décadas permeiam o sistema.

O aumento de fluxo no asfalto escancara a falta de segurança e manutenção, além de comprovar que a imprudência segue ao lado de muitos motoristas — problemas que o país ainda não conseguiu deixar para trás. Os obstáculos começam na própria constituição das rodovias, já que, do total da extensão nacional, a grande maioria não é pavimentada. As condições precárias espalham prejuízos e provocam mortes em números preocupantes.

A imprudência também segue ao lado dessa realidade de perdas, e a parte que compete aos motoristas precisa ser considerada. Se na rota há diversas armadilhas, quem está ao volante precisa adotar medidas para minimizar os riscos. Fazer a revisão do veículo, dirigir com cautela, respeitar as regras e as sinalizações — como limite de velocidade — e planejar o trajeto são responsabilidades que não podem ser negligenciadas.

Aos governos e órgãos responsáveis pelas estradas, a tarefa é enorme e não está em dia. A fiscalização e as verbas destinadas às melhorias são insuficientes diante do tamanho das estatísticas. A melhoria da infraestrutura é um processo que requer constância e recursos. Por sua vez, as concessões à iniciativa privada precisam ser conduzidas e monitoradas pelas autoridades com todo o rigor possível.

A realidade é que a malha rodoviária impõe elevados custos econômicos e logísticos ao Brasil. A grandeza territorial e a predominância do transporte rodoviário exigem investimentos contínuos em manutenção e ampliação das estradas. Sem isso, as consequências são o alto custo do frete, o consumo elevado de combustível e o desgaste maior dos veículos. A falta de conservação ainda compromete a segurança viária.

Outro desafio é aprimorar a integração com demais modais, que permanece limitada. Como resultado, a dependência excessiva das rodovias reduz a competitividade da economia. Superar esses desafios exige planejamento de longo prazo. Investimentos equilibrados e políticas públicas consistentes são essenciais para a sustentabilidade da malha rodoviária brasileira. Esforços nunca são demais para que o país cumpra o caminho correto e conquiste uma rede rodoviária que deixe de ser sinônimo de perigo para a população e que atinja o potencial que o mercado necessita. A mobilidade eficiente exige ações do poder público e do cidadão pela garantia do respeito à vida e pelo desenvolvimento socioeconômico. Superar os problemas vai exigir planejamento de longo prazo. O Brasil não pode seguir sem políticas públicas consistentes e capazes de assegurar a eficiência e a sustentabilidade da sua malha rodoviária.

Pobreza cai, mas romper a cadeia requer igualar oportunidades

Por Valor Econômico

Os mais "poderosos equalizadores" de oportunidades são a educação e a saúde

A pobreza e a extrema pobreza caíram no Brasil entre 2023 e 2024, na primeira metade do terceiro mandato do presidente Lula. Saíram da pobreza 8,6 milhões de pessoas, com corte de 4,2 pontos percentuais (de 27% para 23,1%), e 1,6 milhão deixaram a miséria, com diminuição de 4,4% para 3,5%. São fatos positivos, mas tão instáveis quanto os rumos da política econômica brasileira, que é o que define a distribuição de renda e a riqueza da nação. O Mapa da Desigualdade, elaborado com supervisão do economista Thomas Piketty, mostrou para o mesmo período que tanto uma quanto outra continuam horríveis no Brasil e, o que é pior, cresceram entre 2014 e 2024. O país continua um dos mais desiguais do mundo.

Ainda que Lula tenha colocado o combate à pobreza no centro de suas políticas desde que assumiu a Presidência em 2003, as orientações econômicas de seus governos não foram consistentes para eliminar o sobe-e-desce da pobreza, nem permitiram vislumbrar um crescimento sustentável o suficiente para romper com essas oscilações. A redução das duas camadas de pobreza observada nos três primeiros governos do PT tomou rumo contrário no segundo mandato de Dilma, como efeito de sua política econômica desastrosa, que levou à maior recessão da história republicana. A situação só melhorou após a pandemia, depois que o Auxílio Brasil, no governo de Jair Bolsonaro, mais que duplicou os aportes do Bolsa Família - e progrediu com o incremento no retorno de Lula e do Bolsa Família em 2023, já a um custo de 4 vezes (1,6% do PIB) o original.

Mesmo após a bem-vinda queda, o número de pobres e miseráveis continua alto e demonstra que por mais que programas sociais façam a diferença, e fazem muita, não são por si só capazes de produzir mudanças permanentes no perfil de renda.

Hoje há no Brasil 56,2 milhões de habitantes pobres e miseráveis, ou 26,6% da população, percentual que foi de 41,3% em 2012, no primeiro mandato de Dilma. Curiosamente, ao verificar o que aconteceria com a pobreza sem os programas sociais, constata-se também a redução da proporção de pobres, embora cinco pontos percentuais acima ao longo da curva. Em 2024, a diferença entre um e outro foi de 23,1% e 28,7%. O declínio ocorre em ambos os critérios a partir de 2021, o que ratifica o fato de que o crescimento a partir daí foi um grande antídoto contra a pobreza, embora bem menos potente contra a extrema pobreza. A maior redução entre 2023 e 2024 na pobreza foi no Nordeste, região que concentra o mais sólido apoio eleitoral ao presidente Lula: caiu de 47,2% para 39,4%.

O IBGE comparou as estatísticas de pobreza e desigualdade de rendimentos com as dos 40 países da OCDE, que agrupa os mais ricos do mundo. O Brasil foi o que registrou a maior proporção de trabalhadores pobres entre eles (16,7%), seguindo outro critério de medição dos rendimentos. No país, 20% das pessoas com maior renda ganhavam 11 vezes mais que as 20% de menor renda em 2022. O país apresentou a segunda maior desigualdade entre as nações da OCDE, atrás apenas da Costa Rica (12,3 vezes) e superando Chile (10,1 vezes) e México (7,8 vezes).

Ter um trabalho não significa, como se poderia imaginar, o abandono da pobreza. Dos assalariados brasileiros, 12 milhões de pessoas (ou 11,9% do total) tinham rendimento per capita médio que as classificava como pobres, mesmo os que possuíam carteira assinada (6,7%). A pobreza foi mais acentuada (29,3%) entre os trabalhadores na agropecuária, o que contrasta com a pujança e a evolução tecnológica do setor. A pobreza foi a mais baixa entre os que trabalham para os governos, saúde e serviços sociais (4,6%).

Os números do IBGE não contam toda a história, e a pior parte vem do Mapa da Desigualdade de 2025, em que as estatísticas incluem a riqueza, que engloba todas as rendas (financeiras, patrimônio herdado etc) e não apenas salários. Pelo levantamento, o Brasil não só é um dos países mais desiguais do mundo, o que já se sabia, como essa desigualdade cresceu entre 2014-2024. No caso da renda, os 10% no topo da pirâmide ganham o equivalente a 59% da renda nacional, enquanto os 50% da base da pirâmide, apenas 9%. A concentração da riqueza consegue ser ainda maior. Os 10% mais ricos detêm 70% e o 1% mais rico, um terço do total. A diferença da renda recebida pelos 10% no topo e os 50% na base aumentou no período de 53 vezes para 63 vezes.

O aumento da concentração não é um fenômeno brasileiro, mas global. Os 10% mais ricos abarcam 75% de toda a riqueza mundial e apenas 56 mil pessoas, os super-ricos, têm mais recursos que metade da humanidade. As políticas sociais são peças básicas para ajudar a reverter essa situação, mas precisam ser complementadas por outras que impulsionem o crescimento contínuo, não os voos de galinha frequentes no Brasil, e o aumento da produtividade, estagnada há quase 4 décadas no país. Para romper a cadeia é vital igualar as oportunidades, recomenda o documento, que conclui que "os mais poderosos equalizadores de oportunidades são a educação e a saúde". Essa é uma orientação que deveria ser seguida à risca por todos os governantes brasileiros, independentemente de suas ideologias.

 

 

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