O Globo
Enquanto o STF conclui a punição aos
golpistas de 8 de janeiro, o Congresso corre para reabrir o ciclo histórico de
impunidade
O Supremo Tribunal Federal encerrou na terça-feira o julgamento dos conspiradores que tentaram acabar com a democracia brasileira. Neste último núcleo está o general Mário Fernandes, aquele que imprimiu o plano de assassinato de autoridades dentro do Palácio do Planalto. No mesmo momento em que o STF está concluindo este trabalho, no Congresso avançou rapidamente a votação do projeto que quer transformar tudo em pizza. O ano de 2025 entrava para a história como aquele em que, pela primeira vez, o Brasil puniu golpistas, mas o PL que reduz as penas e anistia os criminosos ameaça fazer o país repetir o passado.
Às vezes se tem a impressão de que o Brasil
vive em duas realidades. Estamos no país que quer acabar com a impunidade de
quem atenta contra a democracia, e estamos também no país que considera este um
crime menor e, portanto, passível de redução de penas e até, quem sabe, de
anistia. Moramos no país que colocou na prisão um ex-presidente, os generais e
coronéis que o ajudaram na tentativa de golpe de Estado. E estamos no país que
faz acordo político para tirá-los da prisão o mais rapidamente possível.
Não houve qualquer tentativa de disfarce dos
políticos. Eles não se importaram quando centenas de brasileiros foram
condenados pelos atentados de 8 de janeiro, no ataque físico às sedes dos Três
Poderes. Quando eram esses condenados, anônimos em sua maioria, o sistema
político nada fez. Mas foi só chegar aos organizadores do golpe de Estado que
tudo começou a mudar.
Com
o nome de PL da Dosimetria, a Câmara dos Deputados e o Senado aprovaram em
tempo recorde essa semianistia. Ela muda a lei de execuções penais.
Muda até a lei —unificando dois crimes diferentes — que foi aprovada no governo
passado e sancionada pelo próprio Jair Bolsonaro, então presidente.
O que o Brasil fez ao longo de toda a sua
história, foi perdoar golpistas e em seguida enfrentar outra tentativa de
golpe, perdoar golpistas e ter que passar por longa ditadura. Desta vez, o país
acaba de condenar, dentro do devido processo legal, com amplo direito de defesa,
29 integrantes da cúpula do golpe. Dois foram absolvidos, o general Estevam
Cals Theophilo Gaspar De Oliveira e um delegado da Polícia Federal Fernando
Oliveira.
O trabalho, na verdade, ainda nem acabou.
Falta julgar os financiadores do golpe. Até agora a Primeira Turma condenou 810
pessoas, 395 por crimes mais graves, e 415 por crimes menos graves. Houve, ao
todo, 14 absolvições. Além disso, 564 pessoas que estavam nos ataques aos
Poderes, no 8 de janeiro, fizeram acordos de não persecução penal por serem
autores de infrações menores. A maior parte desse grupo que participou de um
crime de multidão fez acordo, está livre, ou cumpriu pena. Mas quando eles
estavam no banco dos réus ou sendo levados para a prisão, os políticos da
direita e do centrão não se mobilizaram. A mudança de atitude veio quando se
chegou à cúpula e se pegou os verdadeiros culpados.
Entrevistei ontem no meu programa na
GloboNews os cientistas políticos Carolina Botelho e Christian Lynch. Ambos
acham que o Brasil continua prisioneiro do mesmo roteiro de ameaça às
instituições. “Não é um diálogo que a gente parou de ter uma vez que foi eleito
um presidente democrata. Não. A gente continua sob esse tiroteio não
democrático, e por isso essa pauta volta”, diz Carolina. Christian acha que o
Brasil já vive a tensão pré-eleitoral: “Tem um momento em que não vale mais a
dinâmica da normalidade democrática constitucional. Vale mais aquilo que cada
ator quer mostrar ao seu eleitor”.
O ato de o Congresso desfazer o trabalho que
o STF está concluindo faz da democracia brasileira uma espécie de Penélope
macabra. Foi penoso tecer a barreira aos golpes de Estado. Foi preciso primeiro
resistir durante quatro anos aos atentados diários do ex-presidente da
República às instituições, depois foi necessário vencer o ataque frontal à
democracia. Em seguida o país investigou, interrogou, denunciou, processou,
julgou e condenou os golpistas. Agora o Congresso está desfazendo o que foi
tecido tão arduamente. Isso nos mantém no mesmo estado de ameaça golpista.
Se eles tivessem vencido não haveria o devido
processo legal. Não haveria qualquer garantia. Ninguém no Congresso pode alegar
desconhecimento do que acontece com o país e seu povo quando a democracia é
abolida. É esse risco que eles trazem de volta.

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