domingo, 14 de dezembro de 2025

País em transe. Por Merval Pereira

O Globo

Ministro do STF viajar de jatinho particular de empresário com advogado de banqueiro corrupto é uma versão moderna dos favores dos senhores de engenho.

O cineasta Glauber Rocha esteve presente na boca de repórteres, comentaristas e locutores na semana passada, quando a crise institucional estava em seu auge. Tratou-se de um lapsus linguae coletivo, erro acidental que altera o sentido do que se quer falar considerado pela psiquiatria expressão de pensamentos reprimidos. O objeto dos comentários era a cassação do deputado do Psol Glauber Braga, mas o ambiente político era o dos filmes do outro Glauber, que muitos anos antes, na década de 1960, mostrou nas telas em filmes como Deus e o Diabo na Terra do Sol ou Terra em Transe as trapaças dos deputados corruptos, dos empresários venais, dos donos de terras que exploram os trabalhadores, o mesmo panorama que, 65 anos depois, nos confronta hoje.

As noites brasilienses, onde as negociatas são feitas para aprovar ou derrotar propostas que surgem de reuniões secretas pela madrugada, acordos “com STF e tudo”, como dizia Romero Jucá, senador hoje lobista, que se tornará provavelmente parlamentar mais adiante, numa roda-viva constante que une as mesmas pessoas em torno de interesses comuns, embora separados por legendas que teoricamente defendem pontos de vistas ideológicos distintos.

Até mesmo o deputado glauberiano Glauber Braga, que representa muito bem um político radical de esquerda que se esgoela e dá chutes na bunda de militantes de direita, mas exige o mesmo tratamento leniente com que os militantes de direita foram tratados pelo presidente da Câmara quando ocuparam por dois dias a mesa diretora e não foram punidos. Glauber Braga, que criticou duramente os direitistas, fez a mesma coisa. Assumiu a cadeira da presidência e disse que de lá não sairia. Foi retirado brutalmente pela Polícia Legislativa, protegida pelo deputado Hugo Motta que mandou desligar a transmissão da TV Câmara e proibiu os jornalistas de entrarem no cenário dos abusos praticados.

Repetindo uma atitude tão vergonhosa e truculenta quanto ações policialescas da ditadura militar, que nem existia mais quando nasceu, em 1989. Esse comportamento antidemocrático deve ter vindo do berço, infiltrado no sangue oligárquico da criança que chegaria, anos mais tarde, à presidência da Câmara à base de conchavos e acordos que vão sendo cumpridos e descumpridos, assim como os personagens de Glauber Rocha desfilam insensatez e traições.

O ambiente político nacional é um terreno fértil para a mente inquieta e criativa de Glauber cineasta, que há 60 anos denunciava o Brasil arcaico que teimava em continuar enquanto, na realidade, o Brasil novo tentava surgir, com a Bossa Nova, o Cinema Novo, e toda a efervescência cultural que foi cortada violentamente pelo golpe militar de 1964. Hoje, continuamos nessa luta permanente entre o Brasil arcaico representado em maioria no Congresso, no Supremo, no empresariado.

Ministro do STF viajar de jatinho particular de empresário com advogado de banqueiro corrupto é uma versão moderna dos favores dos senhores de engenho; políticos propondo legislações que salvarão seus financiadores é uma tradição da Velha República que se multiplica no tempo; bancos estaduais como o de Brasília, e fundos de pensão de trabalhadores que investem em títulos podres são versões modernas de antigos golpes. O país, que já teve um futuro, agora regride para uma disputa medíocre entre tipos semelhantes de simulacros de salvadores da pátria, personagens glauberianos que saíram da tela para a realidade, ou da realidade para as telas, não importa a ordem dos fatores.

Roubo da previdência dos aposentados; roubo dos fundos de pensão, em repetição perversa do que aconteceu no petrolão; conchavos do baixo e do alto cleros para salvarem suas respectivas peles; contratos milionários de parentes de ministros do STF protegidos por sigilos decididos pelos próprios implicados, tudo faz com que regridamos para o estágio original da política que não leva em conta o futuro de país, mas o futuro pessoal de cada um dos implicados nas negociatas em jogo. Um país em transe, um filme de Glauber Rocha, uma chanchada da Atlantida.

 

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