segunda-feira, 30 de junho de 2008

NOSSA HERANÇA

NOSSA HERANÇA
Gilvan Cavalcanti de Melo[i]

Comemora-se em abril sessenta e um anos da morte de Antônio Gramsci. Simultaneamente diversas homenagens estão programadas para lembrar os 150 anos da publicação do Manifesto Comunista, redigido pelo fundador da filosofia da praxis. Nestes tempos de renúncias, será legítimo destacar Gramsci pela sua enorme contribuição ao pensamento político moderno. Com certeza a melhor forma de ressaltar sua figura e originalidade será atribuir-lhe o mesmo mérito com o qual se referiu a Marx no artigo escrito em 1918, pôr ocasião do seu centenário de nascimento: não escreveu uma doutrinazinha, não é um messias que tenha legado um punhado de parábolas grávidas de imperativos categóricos....Iniciava o ensaio fazendo duas perguntas e dava uma resposta contundente: Seremos marxistas? Existirão marxistas? Tolice, só tu és imortal (Gerratana 1992).

Após o fim do socialismo real se fala e se escreve muito sobre a morte da filosofia de Marx. Seria bom relembrar uma leitura que o intelectual e militante político italiano fazia dela: A filosofia da praxis pressupõe todo este passado cultural, o Renascimento e a Reforma, a filosofia alemã e a Revolução Francesa, o calvinismo e a economia clássica inglesa, o liberalismo laico e o historicismo; em suma, o que está na base de toda a concepção moderna da vida.
A filosofia da praxis é o coroamento de todo este movimento de reforma intelectual e moral, dialetizado no contraste entre cultura popular e alta cultura. Ela corresponde ao nexo Reforma protestante mais Revolução Francesa: Trata-se de uma filosofia que é também uma política e de uma política que também é uma filosofia (Gramsci 1978). Continuando as melhores tradições deste pensamento, poderíamos sugerir que o novo paradigma contemporâneo dessa filosofia pressupõe todo aquele coroamento e os atuais princípios inspiradores da Perestroika; aspectos do pensamento antropológico e sociológico da Igreja pós-conciliar; a busca de novas idéias integradoras que, desde o início dos anos oitenta, ocupam as principais social-democracias européias(o europismo socialista e o eco-socialismo); o novo pensamento político dos grupos dirigentes mais avançados do Terceiro Mundo; as tradições políticas inspiradas na não violência; as concepções do socialismo como desenvolvimento integral da democracia; a visão nova da constituição e do desenvolvimento do gênero humano inspirada no pensamento da diferença sexual; as novas idéias de progresso fundadas na consciência do limite, e no conceito do desenvolvimento sustentável.(Vacca 1996).

Avocando essa herança e buscando voltar radicalmente a atenção para o presente tal como é, se se quer transformá-lo (Gramsci 1992), podemos vislumbrar as mudanças ocorridas no capitalismo. Que cenário é este? É complexo, de possibilidades variadas ,algumas vezes divergentes, dinâmico, entremeado de tendências opostas e contradições agudas É marcado por transformações sociais fundamentais, revoluções tecnológicas e cientificas, extremamente abrangentes. Problemas globais cada vez mais sérios e mudanças radicais quanto à informação.
Convivem, lado a lado, as mais fantásticas possibilidades de desenvolvimento, progresso e a pobreza mais abjeta. Abriga grandes campos de tensão. É um mundo da multipolaridades, da crise do Estado-Nação e da soberania. Este panorama tem a ver com o tema da extinção do Estado (Marx 1978) na perspectiva da construção da supranacionalidade. É um mundo da interdependência, está exposto a maior risco e aberto a diversas alternativas. Por isto é fundamental estabelecer um diálogo com as forças sociais e políticas fundamentais procurando discutir as invariâncias e não só as mutações, reatar os nós das relações entre o velho e o novo, fazer a leitura do passado à luz das imagens que do presente estão se formando (Vacca 1996), centralizado na questão da democracia, confrontando-o com uma nova realidade: sociedades neocorporativas; sistema das relações internacionais; normativismo ético; método dicotômico; individualismo metodológico.

Qual é o núcleo da discussão proposta? O valor fundamental da democracia dos modernos tem como centro o indivíduo. Mas isto não implica que o único modo de analisar a realidade (econômica, social e histórica) seja considerá-la como inesgotável fluxo de ações individuais a serem classificadas, com base em nossa escolha de valor, com objetivo de ordená-la. Este tema pode ser sustentado com dispositivo teórico diferente do liberal-democrático clássico, que utiliza o método dicotômico, e do individualismo metodológico pensando enquadrar a história na oposição conceitual entre democracia/totalitarismo; indivíduo/estado; indivíduo/sociedade;público/privado; Estado/sociedade civil; estrutura/superestrutura; democracia/autocracia; ser/dever ser.; descrição/prescrição
Esta teoria política neopositivista resolve-se na classificação, e ,portanto, na tipologia das formas de governo historicamente existente, construídas com base na determinação daquilo que as une e daquilo que as diferencia, numa operação similar ao botânico e ao zoólogo os quais classificam plantas e animais.

Para Gramsci toda reflexão sobre a democracia poderia ser considerada do ângulo dos problemas do indivíduo. Mas, o indivíduo isolado, solitário e voltado para o privado não pode ser o sujeito que sustenta o processo democrático e assegura sua expressão. Democracia sem sujeito? O tema de fundo é explorar as condições com que se pode fazer avançar o projeto da democracia ininterrupta ou progressiva e indicar os sujeitos históricos, não indivíduos soberanos, capazes de promover a difusão daquele processo. Qual o critério da construção da nova subjetividade e dos sujeitos políticos? Esta construção se dará no campo da hegemonia e esta luta terá como palco o território nacional. O desenvolvimento histórico nacional é, portanto, o paradigma que preside a constituição dos sujeitos políticos. O tema diz respeito à vida dos Estados e à função dos partidos. É possível pensar a história apenas como história nacional? As análises das situações das relações de força não podem decorrer apenas do Estado-Nação. Na sociedade contemporânea a história é história mundial e a constituição dos sujeitos políticos tem na nação o terreno decisivo, mas está condicionada pelo desenvolvimento do mercado, isto é, combinação entre o elemento nacional e internacional.

Para Gramsci o conceito de hegemonia foi construído como uma hipótese teórico-política de reunificação de um mundo objetivo, extremamente múltiplo, diferenciado, estratificado. Tem a forma de um projeto da vontade subjetiva, estando ausente qualquer necessidade ou determinismo. É sempre parcial e conflitiva, estando fora qualquer visão totalitária. O fundamento da teoria da hegemonia só pode ser o princípio da integração do agir político em uma visão unitária e solidária do desenvolvimento do gênero humano: o princípio da Interdependência.
Isto pressupõe a existência da democracia representativa e sua reforma (reformismo forte). A extensão da democracia a todo o âmbito da vida social dissolve a estrutura hierárquica autoritária do Estado. Liberalismo extremo e simultaneamente a sua destruição (Gramsci 1978)

Referências bibliográficas


Gerratana, Valentino – Revista Presença nº 17, 1992
Gramsci, Antônio – Concepção Dialética da História – Civilização Brasileira, 3ª ed.,1978
_____________ – Maquiável a Política e o Estado Moderno – Civiliz. Brasileira, 3ª ed.,1978
Marx, Carlos – Lutas de Classe na França – Cátedra, ed., 1986
Vacca, Giuseppe – Pensar o Mundo Novo: Rumo a Democracia do Século XXI – Ática, 1996


[i] Membro efetivo do Diretório Nacional e da Executiva do Estadual do PPS no Rio de Janeiro

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