segunda-feira, 30 de junho de 2008

POR UMA AGENDA


POR UMA AGENDA
Gilvan Cavalcanti de Melo
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Das discussões travadas com alguns amigos em artigos ou em conversas sobre o papel da esquerda, sua função, agenda política, lutas, programa e visão de mundo no quarto ano do novo século, peguei um tema da controvérsia. Mas, antes me ocorreu uma dúvida: discutir um programa de governança ou a concepção de mundo de uma agenda política? Estou convencido que o diálogo que pretendo propor prioriza a segunda opção.

Inicio esta conversa partindo da premissa que os atores políticos contemporâneos, individuais e coletivos, identificam as origens da esquerda no século XIX e no ocidente europeu. O símbolo mais forte daquela época foi, sem dúvida alguma, o “Manifesto Comunista” de 1848, escrito por Marx e Engels. Naquele documento se anunciava ao mundo: “Um espectro ronda a Europa: o espectro do comunismo”. Os pesquisadores demonstram que data do mesmo período o aparecimento da influência no Brasil daquela idéia1. Considero, também, que os atores reconhecem que sua substância pode ser vista, analisada por quatro aspectos ou ângulos: a) se afirmou e se desenvolveu no âmbito do estado nacional; b) o trabalho tomado como valor primário, básico, principalmente, o industrial. Destacando-se não só como fator social, mas como elo espiritual de sua natureza; c) o socialismo real, forma de regulação estatal e burocrático da sociedade, a partir do qual o movimento comunista marcou sua essência, natureza no século XX; d) o estado do bem-estar a partir do qual a outra vertente da esquerda, a social democrática européia construiu, também, sua identidade.

Todo este cenário se modificou. Nenhum daqueles elementos existem mais ou permaneceram imutáveis. Julgo amenizada a divisão de 1914, a esquerda, com todos os seus matizes, mas, orgulhosa de sua tradição e zelosa dos valores que lhe deu identidade, é suficientemente inteligente e virtuosa, no esforço de pesquisa e de análise, para incorporar as novidades da vida e dialogar com os novos fenômenos. E a partir dessa investigação, desse processo, descobrir, criar uma renovada concepção estratégica para o mundo do século XXI. Aí me vem a evocação da antiga e dicotômica interrogação gramsciana: ela deve privilegiar a conquista de governo, mesmo sendo minoria na sociedade, ou construir uma direção ético-político, cultural, um ator reconhecido pelo conjunto da sociedade, uma hegemonia?

Pergunto-me qual o método que se pode utilizar na descoberta do novo? Penso que o melhor roteiro é seguir a pista dos quatros aspectos que expus no bloco inicial. Existem distintos ou diferentes elementos a serem considerados para se analisar os novos fenômenos. O primeiro e mais importante é o da mundialização. Vive-se um mundo único, interdependente, mercado unificado. Observada esta realidade há de se reconhecer uma pluralidade de alternativas.
Não existe fatalidade de caminho único. O desafio é saber como a esquerda poderá elaborar uma estratégia democrática para se adaptar a globalização. A aproximação, o acesso a uma possível solução é o multilateralismo e não o unilateralismo, presente nas relações políticas atuais. Assumindo esta opção, acredito que seja vital, imprescindível, essencial, discutir, polemizar, questionar o quadro das instituições internacionais vigentes. Um fato real, na circunstância, é que não existe multilateralismo sem instituições internacionais democráticas e fortes.

Acredito que é inconcebível, inviável um multilateralismo sem uma cooperação regional e uma política de integração. Em se pretendendo trabalhar por um sistema com esta característica, que seja sólido e eficaz, se deve fortalecer e desenvolver a construção política de integração regional. Neste quesito a nova direita e a renovada esquerda não pensam iguais. Para a primeira a política de integração regional tem como pressuposto o fundamentalismo do livre mercado.
Já para a segunda, a concepção de integração, creio, deverá ser a construção de uma nova substância política e institucional que incluam mercado único, moeda única, política macroeconômica convergente, políticas sociais, de segurança, relações exteriores e até uma constituição única. Nesta mesma lógica me inquietam outras indagações: a mundialização pode ser apenas mercado, economia? Ou exige uma estratégia para a globalização política, dos direitos, da democracia? Compreendo que o desafio básico, fundamental é: orientar este processo real de maneira democrática, cimentado sobre os valores e princípios como liberdade, igualdade e a dignidade humana.

Outro aspecto essencial, determinante, indispensável é a questão da transformação do trabalho. Parece-me evidente que se coloca, em primeiro lugar, a existência de uma premissa: a esquerda no mundo atual reafirma sua opção. O mundo do trabalho, não só industrial, mas de todos os trabalhos, é mais do que objeto, uma análise social e proposta de política econômica. É o elemento fundador da sua essência política e democrática. O trabalho é o espaço principal da consciência de si e dos próprios direitos sociais e políticos. Não posso negar e, ninguém com mínimo de conhecimento, poderá deixar de reconhecer que o trabalho sofreu uma grande modificação. Já existe, concretamente, a sociedade da flexibilização. Não só do trabalho. Também se flexibilizou a produção, o tempo e até a comunicação. Entendo que a esquerda, com a idéia de ser dirigente ético-político e vocação de governar, com cultura moderna, não pode usar como sua referência a atitude de contestação, oposição, impugnação em relação a flexibilização. Reconheço, é indiscutível a existência de uma questão, um problema, um risco, um perigo: como se evitar que a flexibilização se transforme em precariedade? As experiências concretas demonstram que se procura introduzir muita flexibilidade para garantir às empresas um ciclo produtivo de maior competitividade. É obvio que isto se transforma em condições de precariedade.
O grande desafio, a dificuldade a se resolver é como construir uma sociedade na qual se trabalhe e se viva de forma flexível e ao mesmo tempo cada cidadão tenha garantido a proteção social e seus direitos fundamentais. Nenhum ser humano, homem ou mulher, escolhe livremente ou tem vontade de viver, ter um modo de existência insuficiente, escasso, sem dignidade, precário. Esta é a demanda. Encontrar os atalhos, os caminhos, as estradas.

O terceiro elemento e, talvez, o mais emblemático que não posso subestimar é o que marcou a esquerda comunista: a revolução russa, o socialismo real. Lênin e seus companheiros fizeram a revolução de outubro de 1917 com as palavras de ordem liberdade, igualdade, fraternidade, justiça, paz e pão, em um país atrasado, isolado com imenso conglomerado de nacionalidades em distintos graus de desenvolvimento. Uma nação na qual se mesclavam elementos do capitalismo com remanescente do feudalismo. Pergunto: como poderia naquelas circunstâncias superar tantos obstáculos para ultrapassar etapas? Aquele projeto gigante foi neutralizado pelas condições concretas – a contradição entre os objetivos democráticos e socialistas e as circunstâncias de país atrasado e rapidamente invadido, isolado pelas potencias ocidentais. Em seguida os descaminhos, novas invasões, a segunda guerra mundial. Aquela revolução que mudou a face do mundo não pode ser vista como um erro ou como resultado de perspectivas catastróficas da vontade de poder dos bolcheviques. Este mundo não existe mais. É claro que deixou marcas e seqüelas.

Não posso deixar de registrar que o medo da revolução socialista mundial derivado de 1917 e sustentado pelo estado soviético também teve conseqüências e marcas visíveis. Inquietou, criou o temor às forças políticas ocidentais. De maneira inesperada ganharam força, impulso, interpelações pragmáticas e essas inspiraram as correções, os ajustamentos, as modificações na relação capital-trabalho: os programas sociais, o crescimento dos sindicatos e até o fortalecimento do papel dos parlamentos e da democracia representativa. A própria social-democracia não teria tido a mesma evolução, nem teria chegado ao governo em vários paises europeus com seu “Estado do Bem-Estar”.

Norberto Bobbio, falecido recentemente, apesar de nunca ter sido comunista e “nunca ter tido vontade de sê-lo”, mas era um interpelador e dialogava com os comunistas italianos sobre temas tais como liberdade e democracia. Andou se preocupando como preencher o vazio deixado pelo fim do “comunismo histórico”.
Também começou a pensar o problema do futuro do mundo sem o “campo socialista” e sem a URSS, rejeitando “a fúria com que se esquecem os erros de avaliação e previsão ou se penitencia por eles”. E convidava os atores políticos a um juízo mais reflexivo. Dizia: “qualquer juízo sobre o comunismo, filocomunismo e anticomunismo não é possível, e é inclusive eticamente incorreto, fora do contexto histórico em que aquelas paixões surgiram, aquelas convicções se formaram, aqueles juízos e pré-juízos tiveram origem”. E, finalmente, chamou a atenção com uma interrogação: “a democracia, devemos admitir, superou o desafio do comunismo histórico. Mas de que meios e idéias dispõe para enfrentar os mesmos problemas que deram origem ao desafio comunista?” A pergunta continua sem resposta.

Não se pode negar a importância do “Estado do Bem-Estar”. Foi uma grande conquista da experiência histórica, principalmente, para a social-democracia. Aquele movimento reformista civilizou e contaminou o capitalismo. É dele a política de pleno emprego, de nacionalizações e a construção de um estado social, em base nacional. Hoje, em quase todos paises europeus e outros continentes as forças da social-democracia viram erodir seu consenso, foram relegadas à oposição. Aqueles estados nacionais vivem uma crise estrutural e fiscal.

A época da globalização coloca outro problema, outro desafio: o que significa, na atual conjuntura mundial, lutar pela sociedade do “bem-estar”? Imagino que é trabalhar para construir uma estratégia que deve unificar duas dimensões que no passado recente quase sempre estiveram separadas: a exigência de modernização – que quer cada dia avançar um pouco mais – e a necessidade de garantir a todos os cidadãos seus direitos ao trabalho, a comida, a habitação, a saúde, educação e a democracia. Ambas as dimensões, dificilmente, seguem uma mesma direção. O pensamento conservador propõe uma estratégia que as separam. Apresenta uma opção de modernização que sacrifica os direitos. Por outro lado, historicamente, o pensamento da esquerda tradicional, privilegiou a conquista ou obtenção de direitos. A modernização pertencia a outros e não assumia em sua totalidade como própria. Defendo que uma esquerda que pretenda ser hegemônica na “sociedade civil” e dirigir a “sociedade política” deve prever como objetivo unir as duas dimensões: a modernização da sociedade, o desenvolvimento econômico e tecnológico, da infra-estrutura social, agregados aos avanços culturais e ao mesmo tempo garantir os direitos fundamentais da vida dos indivíduos. Estes são os novos desafios que a esquerda tem diante de si. Esta é a nova agenda política sobre a qual é necessário discutir, dialogar para construir uma nova estratégia política.


Rio, 04/02/2004.


1 A revista “O Progresso” editada em Recife de 1846 a 1848 por Antônio Pedro de Figueiredo publicou artigo em 28 de agosto de 1848 em solidariedade com os operários revoltosos de junho de 1848, na França, com o seguinte juízo: “Nem se deve deduzir do que fica exposto que os insurgentes de junho, e nós também, pretendamos revolver totalmente a sociedade para reorganizá-la; bem sabemos que estas revoluções radicais são obra do tempo, e apenas meia dúzia de exaltados podem conceber a esperança de realizá-las imediatamente; mas o que pretendiam os revolucionários de junho; o que nós também pretendemos, é que o governo, como representante da sociedade inteira, intervenha nos fenômenos da produção, distribuição e consumo, para regulá-los e substituir pouco a pouco uma ordem fraternal ao desgraçado estado de guerra que ora reina nestas importantes manifestações da atividade humana. Os nossos votos hão de ser realizados”.
Citação de Vamireh Chacon - História das Idéias Socialistas no Brasil – Editora Civilização Brasileira, Rio de Janeiro – 1965, pág. 27.

* Gilvan Cavalcanti de Melo, pernambucano, 68 anos, esteve exilado no Chile e Cuba. É membro do Diretório Estadual/RJ e do Diretório Nacional do Partido Popular Socialista (PPS).

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