sábado, 26 de julho de 2008

DEU EM O ESTADO DE S. PAULO


GRANDES E PEQUENOS PARTIDOS
Marco Aurélio Nogueira

Aberto formal e efetivamente o processo eleitoral, algumas antigas e já bastante discutidas questões voltam a intrigar analistas e eleitores. Como explicar a facilidade com que adversários incondicionais e muitas vezes furiosos no plano nacional se coligam em várias cidades do País, numa demonstração de elasticidade que beira a irresponsabilidade? Como entender que aliados históricos, afinadíssimos no combate ao governo federal, não consigam caminhar juntos em alguns municípios e cheguem mesmo, como ocorre em São Paulo com o PSDB e o DEM, a se converter em adversários e facilitar as coisas para candidatos de partidos contra os quais se batem por toda parte?

Partidos amigos no plano nacional se convertem em inimigos no plano municipal e emprestam apoio a chapas que não se coadunam com os propósitos proclamados nos estatutos e documentos partidários. A “esquerda” alia-se sem muito pejo com a “direita”, dando origem a blocos desprovidos de coerência profunda. As disputas regionais são mais fortes que as nacionais e praticamente proíbem que os candidatos se declarem fiéis ou leais ao que quer que seja. Não é por acaso que os políticos não lidam bem com a fidelidade partidária e vivem tentando flexibilizá-la ou burlá-la, quase sempre em nome de uma necessária dose de “liberdade de pensamento e ação” ou da alegação de que o quadro partidário é jovem demais para ser racionalmente estruturado. Muitos dos atritos entre o Poder Judiciário e a política passam por aí. Boa parte das decepções do cidadão, também.

Dado o caráter do federalismo brasileiro e do próprio regime presidencial instalado por aqui, as eleições municipais têm enorme valor estratégico. Desempenham papel determinante tanto na sustentação dos governos estaduais e federal quanto na dinâmica das eleições para governadores e presidente da República. Deste ponto de vista, 2008 é a ante-sala de 2010. E quase tudo o que é feito hoje tem um olho depositado no que será feito daqui a dois anos.

O eleitor tem motivos de sobra para se sentir perdido e ludibriado. Dada a incoerência com que se depara, é como estivesse abandonado pelos políticos e pelos partidos.

E o que dizer, então, da força que ganham as pequenas legendas? Muitas vezes, os grandes partidos, ou os candidatos mais fortes, entregam-se a uma luta insana para obter o apoio dos pequenos. Fazem de tudo para integrá-los a suas coalizões, prometendo-lhes mundos e fundos e os anunciando como fatores decisivos, verdadeiros fiéis da balança. Quase sempre a operação é feita simplesmente para prejudicar os adversários, na linha da máxima “o inimigo de meu inimigo é meu amigo”, ou seja, com o objetivo mais de atrapalhar que de somar ou agregar. É a sedução usada como mero artifício de campanha, sem muita sinceridade ou rigor.

São, evidentemente, operações legítimas, sancionadas por qualquer bom manual de estratégia política. É impossível criticar os partidos por desejarem mais apoio para suas chapas ou por pretenderem embaçar a vista e embaralhar os passos dos adversários. Apoios, em política, são como o sal da terra. Sempre têm alguma tradução prática e muito valor simbólico.

Coligações eleitorais pesam em termos contábeis. Fornecem aos partidos recursos de campanha, material de divulgação, minutos importantes na propaganda eleitoral, tribunas alternativas em certos setores, áreas ou regiões, além da possibilidade de ampliar os apoios pela via da multiplicação do número de candidatos comprometidos com o vértice da coligação.

Ao serem buscados e concretizados, os apoios funcionam como atestados de flexibilidade, desprendimento e largueza de visão, prova de que os candidatos não querem tudo, estão abertos a compartilhar os frutos da vitória desejada, como se desejassem demonstrar uma generosidade que a disputa pelo poder tende a ofuscar ou impedir. Há alianças que simbolizam um compromisso com o futuro, outras que espelham a nova face de um partido, outras ainda que são um esforço para revalidar identidades ou sugerir caminhos alternativos. Pode ser extraordinário, por exemplo, o efeito simbólico da inclusão no mesmo palanque de pessoas que pensam diferentemente ou de antigos adversários, figuras dotadas de carisma específico, heróis de batalhas passadas, ícones da nacionalidade.

Mas os grandes partidos não costumam ser muito generosos quando se trata de decidir quem ocupará a “cabeça da chapa”. Nestes casos, o desprendimento é bastante relativo, e muitas vezes não passa de dissimulação e jogo de cena.

Partidos são seres de duas almas: a conquista do poder e a organização dos interesses e opiniões. A primeira exige visão tática e estratégica, é fria e obstinada, não mede esforços para se completar. A segunda depende de cultura, ideologia, teoria social, empuxo programático, marcas de identidade. Alianças sem outro critério que não o de viabilizar o acesso ao poder, ainda que legítimas, não ajudam à alma substantiva dos partidos e podem até mesmo feri-la, apequená-la ou descaracterizá-la. Justificam-se no curto e médio prazos, mas podem ser letais no longo prazo se, por exemplo, chamuscarem a identidade e a coerência doutrinária dos partidos.

Não se trata de uma escolha de Sofia. As duas almas são indispensáveis para o partido político. Há momentos em que simplesmente não há como escolher, os fatos empurram as decisões. Mas o ideal seria sempre manter as almas em equilíbrio e integração, até para que uma possa moderar ou chamar às falas a outra.

O problema é que hoje, nestes tempos “líquidos”, consumistas e velozes em que vivemos, a alma programática e ideológica se encontra combalida, menosprezada e sem eixo para se sustentar. Com isso a volúpia pelo poder ganha completa independência e espalha sua lógica pelo sistema político e pelos mais diferentes circuitos sociais.

Marco Aurélio Nogueira, professor de Teoria Política da Unesp, é autor dos livros Em Defesa da Política (Senac, 2001) e Um Estado para a Sociedade Civil (Cortez, 2004).

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