terça-feira, 5 de agosto de 2008

DEU NA FOLHA DE S. PAULO /+MAIS!


O QUE PENSA A CHINA?
REVOLUÇÃO SILENCIOSA
Marcos Flamínio Peres

Editor do MAIS!

Combinando ajuda econômica e política autoritária, China se torna novo modelo para países em desenvol-vimento na Ásia e África e ameaça expansão da democracia ocidentalO "soft power" chinês prega uma escalada silenciosa do país em direção a uma maior presença global, mas sem confrontar os EUA

A China não quer assombrar o mundo apenas com seu crescimento econômico exorbitante ou com um número inédito de medalhas, que pode fazê-la derrotar os EUA nos Jogos Olímpicos que têm início nesta sexta-feira.

Ela quer mais: quer dominar as mentes e formar a opinião de boa parte das pessoas. Sua principal arma é uma intelligentsia cultivada nas melhores universidades do Ocidente e que agora desenvolve novas estratégias políticas e econômicas nas centenas de centros de pesquisa espalhados pelo leste do país, de Pequim a Xangai.

No cerne desse "projeto de dominação" reside o conceito de "mundo muralhado", que combina ajuda econômica a países em desenvolvimento -baseado em um capitalismo de Estado- com um regime de partido único.

A conseqüência mais temível disso é que a China está se impondo às populações de Burma, Zimbábue, Sudão, Argélia, Angola etc. como um modelo econômico e político a ser louvado e seguido.

Essa tese desconcertante, que bate de frente com as hipóteses de que a China adotaria a democracia liberal à medida que crescesse economicamente, é tratada no livro "What Does China Think?" ["O Que Pensa a China?", ed. Fourth Estate, 224 págs., 8,99, R$ 28], que tem sido destaque em publicações prestigiosas como as inglesas "Prospect" e "Financial Times".

Escrita por Mark Leonard, diretor-executivo do Conselho Europeu de Relações Exteriores -um "think tank" com sede em Londres e bancado pelo megainvestidor George Soros-, a obra reúne sua experiência em visitas ao país como professor convidado da Academia Chinesa de Ciências Sociais (leia texto ao lado).Localizada em Pequim, a ACCS sozinha concentra 50 centros de produção acadêmica, com 4.000 pesquisadores trabalhando em tempo integral em cerca de 260 disciplinas.

Em instituições como essas foi formulado o que Leonard chama de "soft power" [poder suave] -uma escalada silenciosa do país em direção a uma maior presença global, mas cuidando para não confrontar a única superpotência que restou da Guerra Fria.

Polarização ideológica

Assim, abdica de investir maciçamente em suas Forças Armadas -como fizeram os EUA- e constrói a imagem de país amistoso e interessado na paz mundial. E, paralelamente, usando toda a força de seu PIB, constrói relações diplomáticas e econômicas privilegiadas com regimes autoritários.

Esse imperialismo "suave" que a China pratica nas relações externas decorre diretamente do embate de duas linhas ideológicas cada vez mais presentes no debate interno do Partido Comunista -as quais Leonard chama de Nova Direita e Nova Esquerda.

Para ele, essa divisão reproduz fielmente no campo intelectual a polarização econômica entre as Províncias interiores do oeste -empobrecidas- e as Províncias costeiras do leste -consideradas as vitrinas do capitalismo chinês.

A primeira linha defende a radicalização dos experimentos neoliberais dos últimos 30 anos, como aumento da participação de capital privado nas estatais e desapropriação de vastas áreas particulares para instalação de plantas industriais.Seus principais nomes, os "neocons" Zhang Weiying ou Yan Xuetong (leia entrevista nesta pág.), temem tanto o fantasma da Revolução Cultural de Mao Tsé-tung quanto o caos que se instalou na União Soviética após a abertura realizada por Mikhail Gorbatchov nos anos 1980.

Clamam também por uma maior militarização do país, de modo a evitar um aumento da tendência separatista de Taiwan. As cidades de Xangai e, sobretudo, Shenzen -uma vila de pescadores que se tornou em poucas décadas umas das metrópoles do país (veja mapa na pág. 6)- despontam como símbolos da Nova Direita.

A segunda vertente ideológica, formada por nomes como Cui Zhiyuan e Wang Shaoguang, é mais crítica das desigualdades sociais e da devastação ambiental provocadas pelo crescimento desenfreado.

Novo modelo

Os experimentos "democráticos" propostos pelos membros da Nova Esquerda -chamados de "ditadura deliberativa"- se baseiam em consultas públicas sobre a eleição de delegados para o PC ou ainda a destinação de verbas municipais. Suas cidades laboratórios, como Pingchang e Chongqing, estão esvaziadas de capital e população devido à atraente exuberância do leste do país.

Se a primeira linha foi absolutamente hegemônica durante as gestões de Deng Xiaoping (artífice da reforma econômica a partir de 1978) e Jiang Zemin (1993-2003) -quando a China se tornou a potência que é hoje-, a Nova Esquerda obtém cada vez mais espaço dentro do governo do presidente Hu Jintao e do premiê Wen Jiabao.

Contrastes sociais gritantes, devastação ambiental e pressão da opinião pública internacional têm levado o governo, influenciado pelas estrelas da Nova Esquerda, a considerar alterações moderadas.

De qualquer modo, é essa rica e multifacetada estatura intelectual da China de hoje que lhe permite conceber a ambiciosa estratégia do "soft power". Como lembra Mark Leonard, é inevitável a expansão do grande Império do Centro em direção às fontes energéticas e alimentares de África e Ásia.

E, pela primeira vez desde o fim da Segunda Guerra, haverá um modelo alternativo aos da Europa e dos EUA -e, provavelmente, não nos padrões daquilo que o Ocidente costuma entender por democracia.

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