domingo, 21 de setembro de 2008

Hora do chimpanzé


Alberto Dines
DEU NO JORNAL DO COMMERCIO (PE)

O apocalipse adora disfarçar-se, fingir que o pior já passou. Os sinais de otimismo dessa sexta-feira são mais preocupantes do que as evidências de hecatombe do último fim de semana. Se o processo econômico tem algo de humano, antropomórfico, pode-se dizer que a euforia é mais letal do que o ceticismo.

A bolha que começou estourar em fevereiro de 2007 e continuou rolando por mais 17 meses foi fabricada pelo "mix" euforia-irresponsabilidade que reeditou em setembro de 2008 a quinta-feira negra de 24 de outubro de 1929.

O jornalista-banqueiro Alcides Amaral, ex-presidente do Citibank teve a coragem de colocar o dedo na ferida nesta quinta-feira num contundente artigo no Valor Econômico. Enquanto sofisticados analistas escondiam-se atrás da esfarrapada desculpa da falha sistêmica - que não explica coisa alguma - Amaral apontou com precisão as falhas humanas que provocaram o tsunami.

A mais importante situa-se na área da detecção. O Senhor Mercado -criatura-divindade inventada por exaltados idólatras - atribuiu-se a responsabilidade de criar os seus próprios radares e todos acreditaram nas suas avaliações. A ninguém ocorreu colocar sob suspeita não apenas os ratings, mas a própria credibilidade enquanto agências autônomas. Sustentadas pelo mercado financeiro jamais seriam suficientemente estridentes para avisar que o sistema corria o risco de desabar.

E aqui Alcides Amaral chega à outra das brutais falhas humanas que causaram o maior rombo na economia mundial desde o crash de 1929: a "filosofia do bônus". Ao invés de pagar polpudos salários o mercado adotou o sistema de bônus para recompensar os mágicos capazes de produzir exuberâncias em rapidíssimos lances. Balanços anuais aptos a indicar políticas sustentáveis foram trocados pelos balancetes mensais ou trimestrais onde o que importa são "resultados" imediatos. Um grupo de golden boys ficou milionário da noite para o dia enquanto milhões de tomadores de empréstimos e certamente seus descendentes estão condenados à inadimplência.

O jornalista Nicholas Kristof, do New York Times, aponta números estarrecedores: nos tempos da estabilidade, presidentes de empresas financeiras ganhavam salários de 30 a 40 vezes o salário de um funcionário médio. Ao longo do turbilhão especulativo que deveria terminar agora, o salário dos presidentes das grandes companhias cotadas em bolsa passou a ser 344 vezes maior do que o dos trabalhadores médios. Richard Fuld, que continua presidente do Lehman Brothers, botou no bolso, entre 1993 e 2007, quase meio bilhão de dólares. O jornalista fez as contas: 17 mil dólares por hora para jogar pela janela uma instituição de 164 anos construída em cima de rígidas noções de pudor e respeitabilidade.

O perigo representado pela quase euforia desta sexta-feira está no poder deletério da roleta. Pequenos curativos nos tremendos rombos só servirão para maquiar a situação e enfraquecer a determinação de substituir o irresponsável laissez-faire em vigor pela disposição de regulamentar o mercado e torná-lo confiável. Sobretudo para convertê-lo numa instituição a serviço da sociedade e não mais a serviço dos interesses de um bando de adolescentes de todas as idades, igualmente delirantes.

O nome do jogo agora é credibilidade. O diagnóstico de falha sistêmica é insuficiente porque o problema é anterior, conceitual. O sistema capitalista não está em discussão, não existe outro para substituí-lo. O que se tornou imperioso é a sua readaptação a um mundo policêntrico, necessariamente equilibrado, minimamente equitativo.

Não há mais lugar para corsários. Os mecanismos do Estado de Direito devem funcionar em todas as esferas, o império da lei deve valer para todos, depositantes e depositários. O contribuinte não pode ser penalizado pela insanidade e vocação criminosa de alguns financistas que não têm mandato para cuidar do interesse público. Não é justo que a poupança de uma família japonesa seja torrada para bancar o dominó consumista nos subúrbios americanos. Ou que projetos de desenvolvimento nacional sejam comprometidos pela inclinação perdulária daqueles que se apoderaram dos canais de circulação de riqueza.

A noção de perigo coletivo é indispensável para criar uma disposição efetiva de mutualismo. Isso pressupõe a aposentadoria dos tradicionais totens de Wall Street. Hora de mandar para o zoológico o urso deprimido, símbolo da baixa e o seu rival, o touro indomável, efígie das altas. Antes que todos se convertam em dinossauros e desapareçam, melhor convocar um chimpanzé, para coçar a cabeça e pensar.

» Alberto Dines é jornalista

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