segunda-feira, 22 de setembro de 2008

O labirinto latino-americano


José de Souza Martlns*
DEU EM O ESTADO DE S. PAULO / ALIÁS
Publicado em 21/9/2008

À falta de uma utopia fundadora da identidade nacional, a Bolívia unificou-se à força e importou o colonialismo.


É velha história a de que a Bolí­via é um país inviável. Produto histórico de uma colagem políti­ca que atendeu a conveniências geopolíticas e de ocasião no mo­mento das independências lati­no-americanas, acabou juntan­do o que não se juntava anão ser pela exploração econômica, pe­Ia opressão social e pela domina­ção política; Não é o único caso de países gestados por artifícios vários, tanto aqui na América Latina quanto na Europa, na Ásia e na África. O discurso so­bre a inviabilidade boliviana tem a sua dose de malícia inte­resseira. Se as enormes diferen­ças lingüísticas, culturais e étni­cas, tão características da Bolí­via, fossem obstáculos à afirma­ção de um país, a Suíça não exis­tiria. No entanto, existe, é prós­pêra e sólida, reunindo harmoni­camente povos de quatro dife­rentes línguas e várias religiões. A diferença é que os suíços com­partilham o credo republicano da comunhão política que unifica no respeito à diversidade.

Muitos países ditos inviáveis o são porque não encontraram a referência unificadora, a uto­pia fundadora de uma identida­de nacional e da premissa de que o todo antecede os interes­ses das partes e das facções. Acabaram perdendo-se na uni­ficação forçada das ditaduras explícitas ou dissimuladas, meio de realimentar as formas de dominação e exploração eco­nômica que transferiu para den­tro o colonialismo de fora. O de­senvolvimento econômico difí­cil dos países latino-america­nos tem sido feito à custa da inte­riorização dos vínculos de domi­nação colonial, no chamado co­lonialismo interno, que cimen­tou com base no desenvolvimen­to desigual as unidades nacio­nais _ a prosperidade de umas regiões em detrimento de ou­tras. Portanto, desigualdades que só podem ser superadas por meio de pactos e não por meio de conflitos.

Nas décadas recentes, a dinâ­mica da civilização contra a bar­bárie, já em si equivocada, deu lugar a uma nova polarização, cujo equívoco não é menor: a do socialismo contra o capitalis­mo. Polarização que não leva em conta as muitas limitações históricas e insufIciências da América Latina, onde o capita­lismo é, quando muito, um resí­duo mal realizado desse modelo de economia e de sociedade. O próprio Marx tinha sérias dúvi­das sobre a possibilidade do sal­to para o socialismo em socieda­des de capitalismo precário.

Não obstante, o socialismo de classe média que se dissemi­nou na América Latina ignorou tanto a teoria como a realidade regional. O limite trágico dessa orientação foi a revolução foquista e desenraizada de Che Guevara na Bolívia. Mas o fo­quismo continua sendo a orien­tação dominante das idéias e da prática de esquerda nos diferen­tes países da América Latina, no pressuposto de que os po­bres precisam de quem os liber­te, já que incapazes de liberta­rem-se a si mesmos e de perse­guirem causas próprias.

O socialismo não encontrou na América Latina o teórico que pudesse interpretá-Ia na pers­pectiva dos anseios e carências de mudança emancipadora e libertadora das populações des­validas, no marco do que são e não no marco do que não ,são. Ao contrário, o elitista socialismo latino-americano contribuiu pa­ra acentuar a conflitividade das nacionalidades inconclusas, quando muito tornando-se ins­trumento da nova barbárie representada por diferentes apo­­ios, como o socialismo boliva­riano, de Hugo Chávez, na Vene­zuela, o socialismo cocaleiro, de Evo Morales, na Bolívia, o socia­lismo místico dos sandinistas, na Nicarágua, e do PT e do lulis­mo, no Brasil. São designações que evidenciam a ausência dos fundamentos sociais apropria­dos para gestação de uma visão social da América Latina que se­ja universalista e includente, que norteie a busca de emanci­pação como momento do pro­cesso de confirmação das nacio­nalidades e de emancipação de todos e não só de alguns.

O que se passa na Bolívia e em outros países latino-ameri­canos é a disseminação da ideo­logia da revanche, como se fos­se equivalente de socialismo e revolução. Não o é. A mística da vingança histórica não liberta nem revoluciona. É a mera fan­tasia da insurgência dos oprimidos por séculos de iniqüidades, que poderiam, finalmente, re­fundar o Novo Mundo e refun­dar as raças, em que os índios se tornariam um fictício índio genérico, inventado pelo bran­co. Os mestiços e os negros se purificariam na ficção de um retorno a identidades que expres­sam despeitos brancos de hoje. Os brancos, enfim, se negariam historicamente e se liberta­riam deixando de ser o que são, imitando quem não são. Uma absoluta negação da diversida­de própria do mundo moderno e da democracia necessária à coexistência dos diferentes.

A América Latina tem opres­sões e conflitos sociais e étnicos consolidados, o que torna o ce­nário político da região muito complicado. A ascensão políti­ca recente de governantes oriundos das populações po­bres, como o proletário Lula, no Brasil, o mulato Chávez na Ve­nezuela e o índio Evo, na Bolí­via, altera o cenário profunda­mente. Lula, oriundo da elite operária bem paga do ABC, se compôs com o poder dominan­te e se distanciou de seus com­promissos de origem. Chávez ascendeu por dentro da institui­ção militar e, portanto, por den­tro de um estamento residual da velha e elitista sociedade ve­nezuelana, que foi incapaz de promover a democracia e a dis­tribuição de renda. Evo, mesti­ço, ascendeu na economia mar­ginal da coca e do atraso que ela representa. O socialismo de dis­curso apenas grudou neles em busca de uma alternativa de po­der sem de fato enraizar-se, inje­tando o sucedâneo do conflito de cIasses nos respectivos popu­lismos. Na falta de inserção polí­tica no historicamente possí­vel, a popularidade desses go­vernantes apenas confirma que Evo se perde no isolamento, Chávez no confinamento da gra­vata e do palavrão e Lula na soli­dão palaciana e na bajulação da corte.

Perdem-se também as oposições, incapazes de pensar saídas políticas que não sejam mera cópia de modelos de paí­ses que não somos, porque não conseguem decifrar o clamor político da nova humanidade que na América Latina pede a palavra e pede o poder.

* José de Souza Martins é professor de Sociologia na Faculdade de Filosofia da USP e autor de A Sociabilidade do Homem Simples (Contexto)

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