segunda-feira, 22 de setembro de 2008

Política, identidade e programas


Fábio Wanderley Reis
DEU NO VALOR ECONÔMICO


Um dos efeitos das oscilações recentes nos números revelados pelas pesquisas sobre a eleição presidencial nos Estados Unidos foi a ansiedade entre os apoiadores de Barack Obama pela perda da liderança nas últimas semanas (liderança que agora parece ter sido recuperada). Em artigo de 11 de setembro no site "progressista" BuzzFlash, George Lakoff, professor de ciência cognitiva e de linguística na Universidade da Califórnia (Berkeley), traz conselhos à campanha de Obama.

Além de certos aspectos técnicos, considerados secundários, sobre como "enquadrar" apropriadamente os temas, o ponto focal do texto é o contraste, na decisão de voto dos eleitores, entre o papel dos programas ou "issues" em discussão (a economia, o Iraque etc.), de um lado, e, de outro, o de traços pessoais de cada candidato que podem ser resumidos na capacidade de induzir o eleitor a confiar nele e identificar-se com ele: este segundo aspecto seria o que importa para conquistar os votos. Obama, que teria vencido as prévias valendo-se de sua riqueza de recursos nesse aspecto (enquanto Hillary Clinton se concentrava nos "issues", como Al Gore e John Kerry em anteriores eleições perdidas), estaria ultimamente se voltando, também ele, para aborrecidos discursos sobre questões específicas de políticas a serem executadas - efeito que teria sido agravado pelo impacto das características pessoais de Sarah Palin e a insegurança trazida à campanha de Obama. Em vez de apostar numa "teoria iluminista da razão" e na possibilidade de conquistar o eleitor pelo esforço de persuasão a respeito dos problemas, seria preciso contar com "a razão real" - as pessoas pensam, diz Lakoff, em termos de "narrativas culturais, estereótipos, enquadramentos e metáforas".

A questão de políticas ou "issues" versus identidade no processo eleitoral, com suas ramificações quanto à racionalidade do eleitor, é um velho problema da sociologia política. Sua relevância para o Brasil é patente, mostrando-se talvez de modo especialmente intenso no Brasil de Lula na Presidência, em que volta e meia os analistas se indagam a respeito das razões da "blindagem" do presidente e dos níveis inéditos de aprovação obtidos (e é possível observar, naturalmente, que, ainda que Lula possa singularizar-se por sua biografia e traços pessoais a ela ligados, o forte apoio do eleitorado distingue vários outros titulares de cargos executivos eletivos, como a cena eleitoral do momento revela em casos como os de Beto Richa, Aécio Neves, Fernando Pimentel e outros). Se é possível apontar nos Estados Unidos uma "razão real" em atuação que seria na verdade pouco racional em sentido mais exigente, que esperar no Brasil, marcado pela desigualdade e pelo acesso muito mais precário à educação e aos recursos intelectuais correlatos?

Mas há algumas ponderações cruciais a serem feitas contra certa simplificação envolvida nas ênfases de Lakoff. Este reconhece o caráter perfeitamente racional de que você, como eleitor, não dispondo de conhecimento ou informações que lhe permitam avaliar a situação e seus desdobramentos (obviamente do ponto de vista dos seus próprios interesses ou objetivos de qualquer natureza, embora isso não esteja explícito no texto de Lakoff), indague se o candidato compartilha seus valores, se ele é veraz, se se liga efetivamente a você, se merece que você confie nele e se identifique com ele. Ora, o mecanismo em que a identificação permite ao eleitor "economizar informação", ou agir politicamente mesmo com informação precária, pode ser visto como o próprio fundamento da política, levando à operação dos vínculos de solidariedade de que depende a agregação de múltiplos interesses ou objetivos individuais ou particulares e eventualmente sua busca eficaz por coletividades de alguma amplitude. Os partidos como objeto de identificação e lealdade são um exemplo óbvio - e representam, cumpre notar, um importante passo à frente em relação ao "personalismo" das recomendações de Lakoff, salientando o processo de construção institucional que a democracia requer. Se encontro razões, na orientação geral ou na atuação de um partido, para confiar nele e me identificar com ele, estarei dispensado de depender a cada passo de figuras cujas singularidades pessoais atraiam minha simpatia (ainda que seja desejável, mesmo institucionalmente, a ocasional revitalização carismática). E não há como escapar de que essa "orientação geral" do partido tenha a ver com "issues", ou com as políticas que adota e põe em prática.

Isso redunda em que, reconhecido que a identificação pode ser racional, não há razão para deixar de reconhecer que ela pode apresentar graus diversos de racionalidade, de acordo com o volume de informações em que se funda e na postura mais ou menos sofisticada ou judiciosa no processamento da informação. Assim, apesar das generalizações "cognitivistas" de Lakoff, existe, evidentemente, a possibilidade de distinguir tipos diversos de eleitor (ou de agente político em geral): de um lado, o eleitor informado e lúcido, capaz, por exemplo, de ser fiel a objetivos maiores ou de mais longo prazo (ou mesmo a certo ideal de vida ou princípio moral, vale dizer, a certa identidade que, no melhor dos casos, ele próprio escolhe em ampla medida); de outro, o eleitor desinformado e algo míope, passível de ser manipulado quer em razão de suas carências e premências materiais, quer por meio de imagens difusas em que se pode apelar, justamente, a identidades definidas de maneira mais ou menos tosca em termos de "branco", "patriota", "negro", "pobre", "descamisado" etc. É claro que nesse eixo giram as diferenças entre coisas como clientelismo, populismo e atividade político-partidária de menor ou maior consistência e qualidade. Em suma, melhor ou pior política ou democracia.

Fábio Wanderley Reis é cientista político e professor emérito da Universidade Federal de Minas Gerais. Escreve às segundas-feiras

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