segunda-feira, 3 de novembro de 2008

De segredos, marcas e eficiência


Fábio Wanderley Reis
DEU NO VALOR ECONÔMICO


Num volume do século XIX sobre "A Constituição Inglesa", Walter Bagehot reavalia o sistema de governo britânico de maneira que tem sido retomada recentemente. Ele destaca o que chama um "segredo eficiente": enquanto a teoria tradicional, "como consta de todos os livros" (incluído, celebremente, "O Espírito das Leis", de Montesquieu), via o mérito do sistema inglês na separação entre os Poderes Legislativo e Executivo, o "segredo" seria que, na verdade, o que se tem é a fusão completa dos dois Poderes, com o Gabinete como elo decisivo entre eles - e como fator de "eficiência", em contraste com o caráter cerimonial e "dignificado" dos aspectos destacados na visão tradicional.

Naturalmente, este é um ponto relevante da distinção entre os sistemas parlamentarista e presidencialista de governo. Contra certo senso comum em que o presidencialismo surge como o sistema de chefe de Executivo "forte", por ser escolhido diretamente pelos eleitores e não responder perante o parlamento, a fusão parlamentarista redunda em que, especialmente na versão de governo de Gabinete, o chefe do Executivo seja por definição o líder do partido em controle do parlamento, o que evita as dificuldades do "governo dividido" a que se expõe o presidencialismo e em princípio contribui para a eficiência administrativa.

Mas um dos aspectos com relação aos quais Bagehot tem sido retomado é o da eficiência em termos eleitorais e suas relações com a natureza e a dinâmica dos partidos. A evolução que resulta no "segredo eficiente" tem como componente importante o fortalecimento dos partidos, numa dinâmica em que o político interessado em reeleger-se (ou eleger-se) para o parlamento, em vez de ter de empenhar-se em prestar serviços a interesses particularistas e clientelas locais (e competir nisso com seus próprios companheiros de partido), é induzido a valer-se da "marca" trazida pelo partido e a identificar-se com ela. E no confronto das "marcas" partidárias passaríamos a ter alternativas significativas de políticas públicas definidas por referência a categorias amplas e de alcance tendencialmente nacional. Há um claro sentido, assim, em que "eficiência" (eleitoral, mas também supostamente administrativa em consequência) vem a equivaler a um modelo de política "ideológica".

Pode-se encontrar, na literatura corrente, certo recurso abusivo à fórmula do "segredo eficiente". É o caso de M. S. Shugart e J. M. Carey, que, no volume "Presidents and Assemblies", de 1992, usam a expressão "segredo ineficiente" de modo que, além de tornar difícil perceber onde está o segredo, leva eficiência e ineficiência na verdade a se confundirem. Mas o abuso mesmo não deixa de relacionar-se com as complicações reais que cercam o assunto, pois trata-se de designar, a propósito de determinados sistemas presidencialistas, a combinação de práticas eleitorais clientelistas e barganhas pragmáticas no nível do poder legislativo, de um lado, com, de outro lado, a formação de coalizões mais amplas, eventualmente representando alternativas autênticas em termos de políticas, no nível das disputas pela Presidência da República. O Chile anterior à intensificação da polarização política no final dos anos 1950 seria o exemplo por excelência, e o aspecto a ser destacado é o de que a "ineficiência" (ou o "fisiologismo" nosso conhecido) do Legislativo seria um fator favorável à estabilidade do sistema - que, com a polarização, termina mais tarde radicalmente comprometida.

A questão decisiva acaba girando em torno da velha questão de ideologia e pragmatismo e de como combiná-los, e ela é de evidente relevância na política brasileira de agora (embora de maneira menos dramática, ainda bem, do que algum tempo atrás). Acabamos de sair de eleições que permitem a leitura de vitória do PMDB, com sua "marca" tênue e seus caciques regionais pragmáticos prontos à barganha: haverá nisso algo de bom, nas circunstâncias atuais da vida político-partidária brasileira? Há uma maneira de ver as coisas que poderia pretender dar resposta positiva à pergunta por se tratar de eleições municipais. Mas a discussão poderia estender-se no rumo das interpretações da eleição em que se festejou o caráter "racional" da postura do eleitor, tido como atento ao que teria a ganhar ou perder pessoalmente com o acesso à prefeitura de um candidato ou outro. Pondo de lado as complicações que a definição de racionalidade pode envolver, é fácil assinalar como essa postura poderia eventualmente ser contrastada com outra semelhante, a que teríamos na eleição presidencial com o eleitor prestando atenção aos seus ganhos com o programa Bolsa Família - sem falar da decisão de voto pelo eleitor com base em imagens em que esteja envolvida uma identidade popular: populismo, manipulação? Em todo caso, não há como negar que podemos ter aí quando nada a raiz de um processo de fixação de alternativas de política em torno de "marcas" nítidas, ainda que a "ideologia" envolvida possa deixar a desejar quanto ao conteúdo de informação ou uma suposta "racionalidade" correlata.

Ainda um par de perguntas, a serem deixadas no ar. Em primeiro lugar, como avaliar, do ponto de vista de "eficiência" agregadora versus clientelas locais e interesses particularistas, uma iniciativa como o orçamento participativo do PT, ou como fazer dele um instrumento de representação universalista? Em segundo lugar, como distinguir, à parte a liderança pessoal de um Lula ou alianças pragmaticamente convenientes, entre a "marca" pessedebista e a "marca" petista? Não serão melhores, em termos tanto de eficiência eleitoral quanto administrativa, os prospectos de uma "marca" socialdemocrática que o PT traz nas práticas de governo e o PSDB reclama até no nome?

Fábio Wanderley Reis é cientista político e professor emérito da Universidade Federal de Minas Gerais. Escreve às segundas-feiras

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