terça-feira, 18 de novembro de 2008

Desmistificando Obama


Merval Pereira
DEU EM O GLOBO


NOVA YORK. Se havia alguma dúvida de que a vitória de Barack Obama nos Estados Unidos não tem nada a ver com a de Lula no Brasil ou a de outros governos da América Latina, como Evo Morales na Bolívia ou Hugo Chávez na Venezuela, como o próprio Lula imagina numa tosca visão histórica, essa dúvida ficou superada pela primeira entrevista de Obama como presidente eleito. Ao contrário do auto-endeusamento de Lula, e da constante propaganda que ele e seus companheiros regionais fazem de suas origens humildes, que supostamente justificariam todos os desmandos e lhes dariam poderes reparatórios das injustiças históricas, se há alguém interessado em desmistificar sua própria figura, evitando o endeusamento que muitas vezes dominou o noticiário da campanha presidencial, é o próprio Barack Obama.


Diante das dificuldades que tem pela frente, ele tratou de recolocar sua eleição histórica no rol dos fatos políticos inerentes à democracia americana, e não no de vitórias pessoais ou de grupos.

A entrevista ao programa "60 Minutos" da CBS, se não teve novidades políticas relevantes, mas apenas reiterações de posições políticas já conhecidas -, como a de restaurar a estatura moral dos Estados Unidos fechando a prisão de Guantánamo e assegurando que não se tortura mais como política oficial - ou de medidas econômicas, como não se preocupar nos dois primeiros anos com os gastos públicos, para garantir que a economia se reequilibre, trouxe um retrato pessoal de Barack Obama que dá uma boa indicação de sua qualidade de líder nesse momento tão nebuloso do mundo.


A começar pelo fato de que ele não valoriza em benefício próprio sua posição de primeiro negro a ser eleito presidente dos Estados Unidos. Não fez isso durante toda campanha presidencial e continua na mesma postura de colocar-se como um presidente eleito por suas virtudes, e não pelo que simboliza na superação da discriminação racial.

Perguntado diretamente por um repórter, Obama admitiu que pôde sentir um sentimento de emoção que cruzou o país, sintetizado na face de sua sogra, que "criou uma filha na Chicago segregada dos anos 50 para hoje vê-la tornar-se a primeira-dama dos Estados Unidos".

Obama classificou sua eleição como um sinal do enorme progresso alcançado, "um gesto de decência e generosidade" da sociedade americana, mas ressaltou que entrou na disputa na presunção, confirmada segundo ele, de que o eleitorado iria escolher baseado apenas na percepção sobre sua capacidade de liderar o país.

Michelle Obama disse também que, ao ver o retrato do marido na televisão como sendo o presidente eleito, disse a ele: "Você é o 44º presidente dos Estados Unidos. Que (grande) país é esse".

Os Obama confirmam assim que não estão dispostos a viver como símbolos da ascensão social e política dos negros nos Estados Unidos, o que nos leva ao segundo ponto de destaque da entrevista, que foi a clareza com que colocou as dificuldades que o país tem pela frente e a impossibilidade de resolver as coisas num piscar de olhos, ou pela pura vontade política.

"O povo americano não espera milagres", disse Obama, mas sim um trabalho árduo, uma clareza de intenções, um senso comum na abordagem dos problemas que restaure a relação de confiança entre o público e o governo.

Para enfrentar as enormes dificuldades que terá pela frente, o presidente eleito Barack Obama deixou claro que não hesitará em buscar ajuda até mesmo nas hostes adversárias, confirmando que seu gabinete terá pelo menos um republicano.

Ele confirmou que anda lendo muito sobre o governo Lincoln e se inspirará, nesse caso, em Abraham Lincoln, que o repórter lembrou ter levado uma série de adversários para seu governo, atitude que Obama considerou "sábia".

Também o governo de Franklin Delano Roosevelt tem sido objeto de estudo por parte de Barack Obama, especialmente os primeiros cem dias, numa indicação de que considera que algumas medidas de emergência terão que ser usadas.

O que mais o impressiona, revelou, é a atmosfera de confiança que o presidente Roosevelt conseguiu imprimir num país castigado pela crise econômica desde 1929. Embora tenha ressaltado que as crises têm diferenças entre si, e por isso mesmo não pretende recriar, como foi especulado, agências de estímulo à economia do tipo das criadas por FDR, o presidente eleito ressaltou que tomaria medidas para revitalizar a economia, "sejam de Roosevelt ou de Ronald Reagan", desde que funcionem na atualidade.

A comparação com Roosevelt leva inevitavelmente à comparação de George Bush com Hoover, o antecessor de FDR. Bush, que se consolidou no posto de talvez o pior presidente dos Estados Unidos pela quebra do sistema financeiro internacional, tomou o lugar de Herbert Hoover, que, um ano depois de ter sido eleito, teve que comandar um país quebrado financeiramente pelo crash de 1929 da Bolsa de Valores de Nova York.

Entregou ao seu sucessor Franklin Roosevelt um país em recessão, da qual só saiu muitos anos e vários planos econômicos depois. O que assusta os republicanos é que nos cinqüenta anos seguintes a 1933, o partido só conseguiu eleger dois presidentes, e só teve a maioria no Congresso em 4 anos.

O democrata Franklin Delano Roosevelt foi eleito nada menos que quatro mandatos seguidos, e um sucesso de Obama pode significar um novo ostracismo republicano.

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