domingo, 16 de novembro de 2008

Devaneios republicanos

Renato Lessa*
DEU EM O ESTADO DE S. PAULO /ALIÁS

Na trilha das suspeições, esconde-se a utopia da ‘prisão generalizada’ que tudo vai depurar

Corria o ano de 1996 e dois professores de direito norte-americanos - Frank Anechiarico (então no Hamilton College) e James Jacobs (idem na New York University) - publicaram um livro notável. Trata-se de The Pursuit of Absolute Integrity: How Corruption Control Makes Government Ineffective, editado pela Universidade de Chicago. No livro, os dois autores chamam a atenção para o fato de que durante o século 20 a cabeça dos reformadores institucionais esteve tomada pela visão de um corruption-free government, uma espécie de governo ISO 9000 e não sei quanto em matéria de eliminação de qualquer indício de corrupção. Um dos efeitos dessa obsessão teria sido uma reorientação de foco pela qual leis e prioridades de governo concentram-se mais no controle dos ocupantes de cargos do que naquilo que governos ordinária e supostamente devem fazer: governar.

O livro segue uma deliciosa inclinação cética e sustenta, para ir ao ponto, o seguinte argumento: o projeto contemporâneo de uma república corruption-free implica a adesão a formas de controle disciplinar que acabam por alimentar e exacerbar patologias burocráticas e inviabilizar reformas fundamentais na administração pública. O espírito de investigação suplanta a criatividade e disposição para a inovação. Adeptos de crenças utilitaristas podem bem dizer: é mais vantajoso, para fins de recompensa pública, perseguir malfeitores supostos ou reais e denunciá-los com ímpeto e estardalhaço do que propor inovações legislativas e administrativas.

Anechiarico e Jacobs exumam em seu texto um belo ensaio do jurista Bayess Manning, publicado em 1964 no Federal Bar Journal, publicação oficial do equivalente da OAB naquelas plagas. No ensaio, Manning - então deão da Stanford Law School - falou da presença de um “potlatch da pureza” em operação naquele país, uma obsessão por assepsia nos costumes e nas almas que teria feito com que o vocabulário da política se adaptasse estilisticamente à semântica de um drama moral.

Sounds familiar, certo? Em parte. Na verdade, há, pelo menos, uma importante diferença. Os juristas mencionados tiveram como campo de observação uma experiência cultural fundada na crença na presunção de inocência. Por mais que os “pais fundadores” norte-americanos - James Madison à frente de todos - sustentassem que os homens não são anjos e, portanto, o governo é necessário, havia neles uma crença básica de que a natureza humana, mesmo falível, merece o benefício da dúvida. É isso que constitui a rationale da presunção de inocência. Para voltar aos dois autores, com um pouco mais de ênfase: eles indicam exageros, absurdos e patologias presentes em políticas de controle dos gestores da coisa pública, nos limites de uma cultura de presunção de inocência que, procedimentos legais cumpridos à risca, acaba por constituir um limite à fúria punitiva e investigativa.

Agora, o que dizer de ânimos puristas semelhantes, ou ainda mais dilatados, em contextos nos quais as ficções nacionais mais fundamentais estão assentadas na desconfiança? Uma das características mais salientes da vida brasileira pós-ditadura tem sido a presença asfixiante de narrativas sobre a experiência do País nas quais metáforas do direito penal e uma perspectiva de suspeita têm papel preponderante. Baseados na observação sagaz de que os liberticidas que nos governaram até 1985 não podem ser excluídos do rol dos suspeitos usuais de danos à coisa pública, alguns otimistas julgam que a centralidade adquirida pelo denuncismo a partir de fins dos anos 80 resultou da liberdade de imprensa. Com efeito, isso parece constituir parte da resposta. Mas não elimina o fato de que a atmosfera da república exala desconfiança e a sensação de que, por vezes, estamos metidos em um mistifório de sicários.

O imenso e recente sarilho que envolve o STF, a Abin, a Polícia Federal, em torno da chamada Operação Satiagraha - há poesia e humanismo místico na coisa, então não? - reencena e dá vida a essa tradição. O suspeito original é preso por um delegado federal, tido como suspeito, a pedido de um juiz, também ele suspeito e desqualificado pelo presidente do STF. Há quem diga que o ânimo punitivo da chefia da Polícia Federal sobre o delegado suspeito de ter exagerado no tratamento do suspeito original é muito... suspeito. Não quero ser tomado por blasfemo, mas há até quem estranhe a presteza do presidente do STF na concessão de dois habeas-corpus ao suspeito original. Suspeita-se, ainda, que os advogados do primeiro suspeito estejam entupindo a vara do juiz suspeito com dezenas de petições, para que este enlouqueça ou pare de tomar atitudes suspeitas. (Antes de terminar o parágrafo, o releio e vejo que omiti a menção ao comportamento suspeito dos agentes da Abin e de seus chefes no imbróglio.)

Uma república de paranóicos? Nem tanto, pois é forçoso reconhecer que há imensa plausibilidade nas histórias que sustentam as suspeitas. Este é o ponto: cada uma dessas suspeitas constitui um fragmento de uma interpretação a respeito do que é o País, um experimento suspeito a ser investigado.

Em outros termos, trata-se de uma imagem do País como entidade opaca a si mesma. Como um depositório de enigmas que só podem ser elucidados pela lógica da investigação policial e da desconfiança promovida à política pública. Como não ver aí a produtividade de uma crença de que o País só terá de si uma imagem esclarecida a respeito do que é e poderá ser, se os “culpados” forem encontrados e presos? É claro, essa utopia da prisão final e generalizada de todos os malfeitores não poderá interromper a tara investigativa: há que investigar os juízes que os condenaram, os carcereiros, os advogados de defesa e, se calhar, os que se calam e não estão nem aí para isso, pois disso tudo, quem sabe, pode germinar uma nova geração de inimigos da coisa pública.

Como a malta ignara percebe tudo isto? Suspeito que ela esteja desenvolvendo uma atitude cognitiva e existencial de forte complexidade, uma espécie de mescla de confusão e credulidade absoluta, temperada com uma descrença dotada de tinturas cínicas e fatalistas. Confusão, pelos pormenores sombrios e sofisticados dos enredos e pelo abismo investigativo sem fundo, posto que incapaz do esclarecimento final: afinal, quem são os bons, nessa história toda? Credulidade, posto que à desorientação original sobrevém a certeza de que tudo que está sendo dito é verdadeiro, mesmo quando os fragmentos do drama se contradizem. Em outros termos, trata-se de um fideísmo da desconfiança: não entendo o que se passa, só sei - i. e., tenho a certeza de - que todos são, no mínimo, uns aldrabões. Por fim, a mescla entre cinismo e fatalidade e, por vezes, uma revolta ressentida por não desfrutar dos benefícios dos suspeitos.

Ainda assim, há otimistas. Boas almas crêem na existência de um processo de depuração de hábitos predatórios e republicidas. Conheço algumas que já se dispuseram à imolação pelo advento da sociedade sem classes e, hoje, não contém sua admiração pela Polícia Federal. Torço, mais uma vez, para que estejam certas, mas o travo cético acaba por escapar: afinal, qual o estado da arte de uma república na qual a polícia é tida como a principal guardiã do interesse público e responsável pelo esclarecimento de nossos mais fundos enigmas?

*Professor-titular de Filosofia Política do Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (Universidade Candido Mendes) e da Universidade Federal Fluminense e presidente do Instituto Ciência Hoje

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