domingo, 16 de novembro de 2008

A escola do avesso


José de Souza Martins*
DEU EM O ESTADO DE S. PAULO

Depredação de estabelecimento estadual de ensino em São Paulo expõe crise de autoridades

Na polêmica sobre o sentido das palavras que entreteve com o ovo Humpty Dumpty, Alice questionou-o em relação à tese de que podemos dar às palavras o sentido que bem entendermos. Para ela a questão é que as palavras têm o sentido que têm. Humpty Dumpty não se deu por achado e tachou: “A questão é quem deve ser o mestre”, isto é, quem deve mandar e decidir o que as palavras significam. Alice do outro Lado do Espelho, de Lewis Carroll, é a melhor fabulação sobre a sociedade do absurdo e as grandes inversões de sentido da sociedade contemporânea. Uma sociedade que atravessou o espelho da realidade e tudo passa a existir ao contrário e a significar o oposto do que deveria significar. Tanto que, quanto mais se caminha, mais longe se fica do lugar ao qual se quer chegar. Essa obra de Carroll veio-me à cabeça quando li o noticiário sobre a depredação da Escola Estadual Amadeu Amaral, no bairro do Belenzinho, em São Paulo.

Na Escola Amadeu Amaral uma parte dos alunos falou a linguagem da desordem, outra parte falou a da ordem, os docentes e a direção perderam-se na linguagem do medo e da omissão, a polícia extraviou-se na estranha repressão de motim no que motim não era, falta de recursos pedagógicos para interromper a bagunça. Várias linguagens desencontradas entre si, cada qual incompreensível no código da outra. Nessa anormal sociedade dos avessos, faltou ali levar em conta a tese de Humpty Dumpty: cadê o mestre?

Os alunos dessa escola não sabem quem ele é. Um pequeno grupo de alunos se intitula Primeiro Comando da Escola, o que já indica o modelo colhido na pedagogia da criminalidade, amplamente difundida pela cultura do espetáculo. Em reiterados atos de violência faltou autoridade ao corpo docente intimidado. As chamadas devidas providências não foram tomadas, o medo dos docentes indultou os alunos e a indisciplina cresceu. Em diferentes pesquisas, centenas de escolas do Estado têm relatado episódios de violência, que incluem violência verbal, vandalismo, assalto à mão armada, violência sexual e até assassinatos. Não só alunos ameaçam e atacam professores, mas há também casos de pais agredindo professores. Já não se trata de espontâneos episódios de violência, mas de uma cultura da violência, com padrões e regras. Uma violência padronizada mobiliza nas respostas ocorrências fora da compreensão dos envolvidos, cada vez mais freqüentes, o que é fatal numa instituição com marcas evidentes de obsolescência.

O histórico esvaziamento da autoridade do professor e a demissão da família como co-responsável pela educação contribui para a perda de legitimidade da escola como instituição auxiliar na socialização das novas gerações. Além disso, a difusão de uma cultura de direitos individuais acima das obrigações sociais contribui para confundir os jovens, e mesmo seus pais, em relação à civilidade própria do direito como contrapartida do dever.

O magistério não tem o menor sentido senão baseado numa relação de autoridade que une o destino de quem sabe e ensina ao destino de quem não sabe e aprende. A relação professor-aluno não é nem pode ser uma relação de dominação, mas é uma relação desigual. Se os valores em que se funda essa criativa desigualdade pedagógica não são reconhecidos por uma das partes, o sistema inteiro desaba. O magistério só frutifica se alunos e professores, funcionários e famílias de alunos formarem o que Ecléa Bosi, em relação a outro tema, chamou de comunidade de destino. Quase tudo que se faz em relação à educação hoje em dia, sobretudo na escola, está no geral longe disso. A escola se burocratizou, os salários afetaram a própria auto-estima dos professores, uma mentalidade proletária ocupou na vida do professor o lugar da idéia do ensino como missão civilizadora. Alunos e professores deixaram de ser sujeitos e se tornaram simples e passivos objetos de relações e concepções coisificadas, num jogo que compreendem cada vez menos.

Os acontecimentos da Escola Amadeu Amaral alertam para o conjunto de problemáticos desencontros de que resultaram e dos pretextos por meio dos quais se expressaram. Uma aluna de 18 anos, do socialmente estável bairro do Belenzinho, insurgiu-se contra o exibicionismo sexual de uma aluna de 15 anos, recém-chegada, moradora em outro bairro, no Brás, um bairro que nas últimas décadas passou por grandes mudanças e de certo modo se enquadra no que Lewis Mumford define como áreas de deterioração social. A mais velha passou a atuar como agente de vigilantismo em relação à mais nova, usurpando a autoridade dos docentes e da diretora da escola. Não confiou neles para apresentar suas inquietações morais. Um problema no caso é justamente decifrar as causas e o sentido dessa quebra de confiança.

Do outro lado, a aluna mais jovem, temendo a agressão de suas colegas, trancou-se numa sala desativada do prédio e lá passou a noite. Sua mãe protestou dizendo que a filha tinha brigado e apanhado na escola e a direção não a avisara. No entanto, essa mãe aparentemente não estranhou que a filha menor de idade não tenha voltado para casa e tenha passado a noite fora nem tomou as providências policiais que se espera num caso assim para que a moça fosse localizada. Portanto, uma crise de autoridade que não se limita à escola. No comportamento da aluna mais velha, agindo por conta própria, mas também na relutância dos docentes e da direção da escola em tomar as providências cabíveis em relação a agressões, sem dúvida crise de autoridade no interior da escola. No comportamento da aluna e na complacência de sua mãe, crise de autoridade fora da escola.

Um grande número de escolas brasileiras precisa de uma pedagogia de emergência baseada no pressuposto de que esta sociedade se tornou uma paradigmática sociedade dos avessos. Nela os ritos e procedimentos dos tempos da ordem e do progresso nem sempre funcionam, lidos e interpretados na significação contrária do sentido declarado. Isso vai da escola do bairro do Belenzinho ao poder em Brasília.

*José de Souza Martins é professor titular de sociologia da Faculdade de Filosofia da USP e autor, entre outros títulos, de A Aparição do Demônio na Fábrica (Editora 34)

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