segunda-feira, 8 de dezembro de 2008

Instituições e estouvamento


Fábio Wanderley Reis
DEU NO VALOR ECONÔMICO


Dias atrás, em entrevista, o presidente da Capes, Jorge Guimarães, fez declarações de alguma repercussão sobre a concessão de bolsas de doutorado em economia no exterior. Segundo ele, nossos doutorandos se viriam formando segundo um modelo "que faliu o mundo" e que se teria mostrado "totalmente anticientífico, para dizer o mínimo", donde a necessidade de reexame da política da Capes a respeito.

É fácil apontar o que isso pode conter de distorção. Apesar de que Jorge Guimarães fale de "perguntar à área de economia", pode haver, e houve, a leitura segundo a qual se trataria de uma agência estatal a dizer o que é boa ciência econômica, com base em avaliação discutível sobre o que ocorre em determinado momento em seu campo próprio de estudo. Mas o tema envolve a questão da relação entre o Estado, como representante da coletividade nacional e supostamente atento aos seus interesses gerais, e a comunidade dos que se dedicam à atividade científica em diversos campos.

No limite, há dois extremos negativos, o da imposição de diretrizes feita autoritariamente pelo Estado aos especialistas e o de um "tecnocratismo" em que os especialistas ou peritos, tomando como não problemáticos os fins a orientarem seu trabalho de pesquisa e ensino e baseando-se em sua qualificação especial quanto ao conhecimento "técnico" dos meios para a busca daqueles fins, reclamam autonomia nas decisões pertinentes. Se a questão é enquadrada pelo desiderato de uma sociedade e um Estado democráticos, a ponderação decisiva é a de que os fins da atividade científica, como quaisquer outros, podem, sim, surgir como problemáticos do ponto de vista da sociedade, e há um espaço legítimo para a política (e para os interesses que nela se dão, que os cientistas com frequência abominam) na fixação dos fins a serem perseguidos. A presunção tem de ser a de que são os cidadãos os melhores juízes dos seus interesses em qualquer área, e em última análise deve caber a eles, ou a seus representantes num Estado democraticamente constituído (sobretudo se são públicos os recursos de que dependem as atividades), as decisões sobre os fins: se necessário, que os peritos se expliquem quanto aos meios, ou quanto aos aspectos "técnicos" dos problemas. E que possa haver o equilíbrio apropriado entre sensibilidade e responsabilidade democráticas, de um lado, e, de outro, a autonomia necessária à prática científica.

O assunto apresenta pontos de contato com outro que tem dado muito mais pano para mangas, o do ativismo do Judiciário, que se vem tornando militante e, com seus prós e contras, complicando a definição da área de competência dos diferentes poderes e suas relações. Com a invocação de filósofos alemães, Gilmar Mendes tem falado de uma "representação argumentativa" da sociedade a ser exercida pelo STF, em contraste com a representação resultante do voto popular que se teria no Legislativo. Se lida como envolvendo a suposição de que não há "argumentação" no exercício da representação parlamentar, a posição pode ser acusada de arrogância e, também ela, de "tecnocratismo": seria esse o caso se prevalecesse a suposição de que o Judiciário, ou o STF, dispõe de uma competência "técnica" especial, a do conhecimento das leis, que lhe permitiria de alguma forma apreender e acomodar os próprios fins da coletividade e representá-los "virtualmente". Mas as coisas são confusas.

Para começar, é claro que o debate e a argumentação são parte importante do enfrentamento e das eventuais manobras que compõem a atividade parlamentar - e há até quem sustente, reivindicando perspectivas afins ao chamado "realismo legal", que o debate marcado pelo empenho de dar representação real aos interesses diversos, apesar (ou por causa) de distanciar-se da idealização do debate conduzido pelo "juiz imparcial" e supostamente orientado apenas pelos melhores argumentos, torna-se um debate melhor. Mas o realismo legal é ele mesmo equívoco, remetendo tanto a essa representação "estratégica" de interesses quanto à disposição por parte do juiz de ir "além" da letra da lei em prol de "valores" supostamente mais altos. Ele serve, assim, de fundamento ao próprio ativismo do Judiciário: não se trata apenas de colocar em prática a lei cujo conhecimento seria o apanágio do STF, mas também de sua reinterpretação e mudança pela corte na condição de "porta-voz do povo" e segundo valores que emergem da "interpretação ativa" da Constituição realizada cotidianamente por todo cidadão. Indo mais longe, a dinâmica de uma representação argumentativa passa, na verdade, de "virtual" a, em certo sentido, "real", e fatalmente precária como tal, ao valer-se de audiências públicas em que os "amigos da corte", definidos a critério do próprio órgão judicial, são chamados a manifestar-se.

Do ponto de vista de uma sociologia jurídica, não caberia negar o que há de justificado, em geral, no recurso a postulados realistas, que seriam, ademais, presumivelmente um requisito mesmo para a construção de normas e instituições melhores. Mas, assim como se mostram complicadas as relações entre sociedade, Estado e comunidade científica a que enviam as declarações do presidente da Capes, assim também é dificilmente aceitável que sejam as próprias cortes de Justiça, sem mais, a transformarem de maneira estouvada o princípio talvez saudável de um realismo sociologicamente informado (que, de partida, remete a disciplinas em que os juízes não têm por que pretender especial competência ou qualificação) em novas normas e procedimentos de duvidosas consequências para a segurança jurídica. É imperioso que, com as reformas que se façam necessárias, nosso Legislativo venha a reafirmar com vigor o seu papel.

Fábio Wanderley Reis é cientista político e professor emérito da Universidade Federal de Minas Gerais. Escreve às segundas-feiras

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