terça-feira, 2 de setembro de 2008

O tema oculto


Merval Pereira
DEU EM O GLOBO


ST. PAUL, Minnesota. A cada pesquisa divulgada mostrando um virtual empate entre as candidaturas do republicano John McCain e do democrata Barack Obama, mesmo depois do grande discurso de Obama em Denver, acompanhado por cerca de 40 milhões de pessoas, e apesar da impopularidade do governo de George W. Bush, mais fica claro que o surgimento do primeiro negro candidato a presidente está dividindo a sociedade americana. O ex-presidente Jimmy Carter classificou a raça como "um tema subterrâneo" nestas eleições, que as pesquisas de opinião não detectarão com clareza porque, segundo ele, muitos "eleitores brancos têm preconceito contra negros, mas não admitem". A inexperiência de Obama fica sendo, então, uma desculpa que encobertaria a verdadeira razão para não votar nele.

O adiamento das atividades do primeiro dia da convenção, devido ao furacão Gustav, providencialmente tirou da agenda republicana a presença do presidente George W. Bush e seu vice Dick Cheney, em uma campanha que está tendo que fazer concessões à direita do partido para compensar o fato de McCain não ser considerado um "verdadeiro conservador".

Em contraposição, a campanha do democrata está claramente indo para a esquerda, em uma demonstração de que é ele quem dá a orientação básica, ao contrário do que aconteceu da última vez em que um democrata venceu uma eleição presidencial, em 1992.

A campanha de Bill Clinton foi toda baseada na crise econômica, e o tom daquela vez também foi liberal, mas não no sentido político americano, e sim no econômico.

Clinton defendeu e realizou um governo menos intervencionista e mais aberto ao exterior do que é tradição no Partido Democrata. Deu todo apoio político ao tratado de livre comércio negociado por seu antecessor, Bush pai, com o México, por exemplo. Mas só ganhou os votos da minoria dos democratas no Congresso, sendo que mais de 75% dos republicanos votaram a favor.

Este ano, a senadora Hillary Clinton ficou em posição difícil durante as primárias para apoiar o tratado com o México, aprovado na gestão de seu marido. Desta vez, Barack Obama, que foi considerado o senador mais "de esquerda" da última legislatura, está dando o tom liberal, levando o partido para um programa de maior intervenção do Estado na economia, para defender os mais pobres.

Em uma passagem de seu discurso de aceitação, Obama deixou clara essa diretriz ao dizer que não acreditava que McCain não se importe com o que acontece com o cidadão americano, que ele simplesmente "não entende", pois "há mais de duas décadas ele subscreve aquela filosofia republicana velha e desacreditada: dar mais e mais aos que têm mais e esperar que a prosperidade acabe filtrando para o resto da população. Em Washington, chamam a isso de Sociedade da Propriedade, mas o que isso realmente quer dizer é que você está sozinho, por conta própria. Está desempregado? Azar seu. Não tem seguro-saúde? O mercado resolverá o problema. Nasceu pobre? Erga-se sozinho, sem a ajuda de ninguém. Você está sozinho".

O liberalismo também se refere a questões morais, como o direito ao aborto e ao casamento dos homossexuais, e essa é outra batalha ideológica que se trava mais claramente a partir da escolha da governadora do Alasca, Sarah Palin, uma militante antiaborto que, além de ter tido um filho com Síndrome de Down por escolha, o exibiu na sua primeira aparição pública como vice escolhida por McCain, numa utilização política de seus princípios morais e religiosos.

Ela reforçará a base evangélica do candidato republicano, que não é considerado conservador o suficiente pelos seguidores de Mike Huckabee, a quem derrotou nas primárias. James C. Dobson, influente líder conservador cristão que havia anunciado que jamais votaria em McCain, voltou atrás com a escolha de Palin.

Mais difícil vai ser atrair os votos femininos apenas por ser uma mulher. Sarah Palin disse certa vez que seria contra o aborto mesmo no caso de uma filha sua ser estuprada, o que causa irritação nas feministas. Palin, que é defensora da abstinência antes do casamento, anunciou ontem que sua filha de 17 anos está grávida e se casará.

Nancy Keenan, a presidente da organização nacional de mulheres a favor do aborto, disse que essa atitude radical de Palin vai contra a maioria das mulheres. Ela ressalta que, mesmo em estados como Dakota do Sul, que proibiu o aborto em 2006, foi reconhecida a exceção em casos de incesto e estupro. Segundo ela, mulheres de tendências políticas variadas, não apenas democratas, mas republicanas e independentes, rejeitarão a candidatura de Palin.

Mas os planos dos republicanos são de mandar a candidata a vice em viagem para estados que não têm definição partidária, como Ohio e Pensilvânia, onde há um contingente grande de mulheres que votaram em Hillary Clinton nas primárias.

Esta, aliás, passará a ser uma característica dessa campanha: a busca de eleitores independentes e de mudança de votos entre republicanos e democratas. Durante a convenção democrata em Denver, havia um comitê republicano em grande atividade.

Também os democratas estão trabalhando forte em estados que não são de sua base eleitoral, especialmente alguns do Sul do país, considerados apoios certos para os republicanos, como a Geórgia, onde 90% dos eleitores são republicanos, ou a Carolina do Norte, onde cerca de 300 mil eleitores foram registrados.

É a tentativa dos democratas de atrair o maior número de novos eleitores e incentivá-los a irem às urnas em novembro, principalmente nos estados sulistas, onde o sentimento racista é mais arraigado.

PPS vai ao STF nesta terça contra decreto que dá "superpoder" à Abin, diz Jungmann


Valéria de Oliveira
DEU NO PORTAL DO PPS

"A artimanha usada pelo governo nesse decreto utiliza uma falsa aparênia de constitucionalidade para promover uma devassa em informações protegidas por inviolabilidade de sigilo", disse o deputado Raul Jungmann.



O deputado federal Raul Jungmann (PPS-PE) anunciou nesta segunda-feira que o PPS vai propor uma ADPF (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental) contra o decreto 6.540, de agosto deste ano, que permitiu à Abin acesso aos bancos de dados de vários órgãos públicos, entre eles Polícia Federal, Receita Federal, Estado Maior das Forças Armadas, Ministério da Fazenda e Banco Central. Segundo o deputado, que sugeriu a ação ao presidente do partido, Roberto Freire, “o decreto viola o direito à privacidade, à inviolabilidade da intimidade e do sigilo de dados, além de atentar contra devido processo legal, que são pilares da democracia moderna; dá veradeiros superpodes à Abin”.

A ação é dirigida ao presidente do STF (Supremo Tribunal Federal), ministro Gilmar Mendes, e deverá ser protocolada às 16h. Mendes teve uma ligação telefônica grampeada supostamente por agentes da agência de inteligência. O decreto, explica Jungmann, mantém funcionários de várias áreas do governo nos quadros da Abin, em caráter permanente, e dá a eles o direito de acessar, automaticamente, as bases de dados de seus órgãos de origem. “A Abin passou a ter o poder de promover verdadeiras devassas na vida dos cidadãos, esmagando direitos constitucionais e agindo sem nenhuma autorização judicial”, protestou Jungmann.

Devassa

O governo editou o decreto depois que o diretor da Abin, Paulo Lacerda, declarou, em depoimento à CPI (Comissão Parlamentar de Inquérito) que investiga escutas ilegais, que agentes da Abin haviam ajudado o delegado Protógenes Queiroz na Operação Satiagraha sem nenhuma autorização oficial. O texto tem a preocupação de incluir vários órgãos do governo federal no sistema brasileiro de inteligência. Os representantes, determina, exercem funções exclusivamente na agência.

O PPS vai pedir, conforme adiantou Jungmann, a sustação imediata, por meio de liminar, dos efeitos do decreto e também a decretação de sua inconstitucionalidade pelo plenário do STF. “A artimanha usada pelo governo nesse decreto utiliza uma falsa aparência de constitucionalidade para promover uma devassa em informações protegidas por inviolabilidade de sigilo”, disse Jungmann.

Estado de grampo


Sergio Bermudes
DEU EM O GLOBO

Imagine-se a surpresa, o espanto, o choque causados pela notícia da gravação de uma conversa telefônica entre o presidente dos Estados Unidos e um senador da Califórnia, ou do Papa e seu secretário de Estado, ou da Rainha da Inglaterra e o seu primeiro-ministro. As seqüelas da ditadura ainda recente, onde se ia, da tortura à morte, da cassação à aposentadoria compulsória, da invasão do domicílio à violação do sigilo de qualquer forma de correspondência, não podem, absolutamente, amortecer o impacto e a revolta com que precisa ser recebida a notícia da gravação da conversa do ministro Gilmar Mendes, presidente do Supremo Tribunal Federal do Brasil, com o senador da República Demóstenes Torres. Impõe-se a análise do episódio, não como fato isolado da vida política do país - mais um, entre tantos ilícitos diariamente cometidos pelas autoridades -, porém num contexto maior, que leva a indagar a quantas anda a tenra democracia brasileira, na sua essência e na sua existência.

Já no preâmbulo, a Constituição da República Federativa do Brasil apregoa a instituição de um estado democrático. No art. 1º, ela insiste na idéia, declarando que a República "constitui-se em estado democrático de direito". Prossegue a carta política, tratando, no art. 136, do estado de defesa, assecuratório da ordem pública e da paz social, seguido, se ineficaz, pelo estado de sítio, conforme o art. 137, I, da lei fundamental. Essas instituições visam a preservar a democracia, a prestigiá-la, desenvolvê-la e consolidá-la, num país cuja história se encontra pontilhada de períodos de exceção, caracterizados pela transgressão sistemática dos direitos fundamentais e da ordem jurídica. É exemplo disso o Estado Novo, de Getúlio Vargas, vestido com roupagens jurídicas pelo talento servil de Francisco Campos.

O conteúdo anódino da conversa do ministro Gilmar Mendes com o senador Demóstenes Torres é irrelevante. Não dissimula, de nenhum modo, um fato por si só gravíssimo porque implica a violação do sigilo de comunicação telefônica, assegurado pelo art. 5º, XII, da Constituição federal. Cresce, entretanto, de significado, quando denuncia, a cavaleiro de qualquer hesitação, a existência de um estado de grampo, para criar expressão do feitio da utilizada pelo constituinte de 1988 com os mais nobres propósitos. Instaurou-se esse estado, inimigo das instituições democráticas, dentro do Estado brasileiro, no âmbito do Poder Executivo, aparentemente sem a ciência e a conivência do presidente da República e do seu ministro da Justiça, à revelia deles, o que só agrava o problema porque mostra que, como órgão de informação, a Abin transformou-se numa autarquia incontrolável, de tal modo desvigiada que chega à ousadia de grampear o telefone do presidente do STF, levando a cogitar se o presidente da República não estaria também submetido a um controle do órgão que lhe está subordinado.

O Executivo não precisa aguardar uma provocação da Corte Suprema, para cumprir o compromisso do seu chefe e dos subordinados dele com a Constituição. Necessita compreender o alcance da anomalia, comprovada pela divulgação do diálogo, confirmado por seus interlocutores, de modo a afastar qualquer indagação sobre a autenticidade do texto, afinal publicado. Sabe-se que a tendência dos órgãos de informação é exceder-se na captação e acumulação de elementos de uso abrangente, mesmo contra as autoridades. Simples anedota, ou não, pode-se lembrar a atitude de Lyndon Johnson quando, assumindo a Presidência dos Estados Unidos, teve de decidir sobre a permanência de J. Edgar Hoover no comando do FBI, que ele controlou com mão de ferro, desde a sua nomeação pelo presidente Herbert Hoover e através dos governos de Roosevelt, Truman, Eisenhower e Kennedy: "melhor tê-lo dentro da tenda, fazendo pipi para fora, do que fora da tenda, fazendo pipi para dentro", decidiu o experiente e prático estadista. Mas é necessário conter os órgãos de informação para que ajam de acordo com a exigência constitucional da estrita legalidade, sem desvios nem exorbitâncias. A omissão do Executivo em punir, rapidamente, os agentes do ilícito e os responsáveis pelos órgãos transgressores será uma atitude de imperdoável conivência com uma situação comprometedora do estado democrático de direito.

Reconheça-se que não se pode debitar apenas ao presidente da República, a ministros dele e funcionários de escalões inferiores a implantação do estado de grampo. A culpa é também de todos nós que aceitamos conviver com o descalabro: da sociedade civil, que encara as interceptações com naturalidade e resignação; dos advogados e do Ministério Público que não reagem à brutalidade; dos parlamentares emudecidos; do próprio Judiciário, agora atacado e ofendido na pessoa do seu chefe, quando autoriza, pusilânime ou desatento, indiscriminadas medidas cuja natureza só por exceção se admitiriam. Devem-se, então, analisar, detidamente, os atos judiciais permissivos do afastamento da garantia constitucional, até para pensar-se em providências corretivas adequadas, como, por exemplo, a outorga de competência exclusiva aos presidentes dos tribunais para autorizar a quebra de sigilo, com a responsabilidade correspondente. A menos que se queira fazer o que autores franceses chamam "o jogo da avestruz", é indispensável e urgente se buscarem soluções que alforriem o Brasil do estado de grampo e do estado de pânico que desconvencem da existência do estado democrático de direito, do sonho da Constituição e do povo, em cujo nome ela foi outorgada.

SERGIO BERMUDES é advogado e professor da PUC/RJ.

Controle interno


Dora Kramer
DEU EM O ESTADO DE S. PAULO

Não se pode dizer com certeza quem fez as escutas ilegais no gabinete do presidente do Supremo Tribunal Federal, Gilmar Mendes, nem de quem partiu a ordem, muito menos é possível detectar com precisão o uso pretendido para o material.

Com as informações disponíveis tampouco se consegue afirmar com segurança se outros gabinetes das altas esferas da República foram mesmo grampeados por grupos de poderes paralelos dentro da Agência Brasileira de Inteligência (Abin) e da Polícia Federal, ou se isso é coisa de investigadores privados contratados por empreitada - conforme o cardápio de suspeitos elaborado pelo Palácio do Planalto.

Numa história desta, em que vale o preceito da presunção de culpa, não da inocência, todos são alvos de desconfiança. Inclusive o governo - aí entendido como o Poder Executivo.

Na verdade, o governo é o suspeito número um. Por uma questão de lógica: das quatro hipóteses, três guardam relação direta com a instância oficial e uma tem ligação indireta.

Se a ordem porventura partiu de repartições assemelhadas à Casa Civil ou ao Ministério da Fazenda, por exemplo, não seria novidade em matéria de uso do Estado para o manejo político/policial de adversários.

Da Casa Civil saiu um dossiê sobre as contas secretas da Presidência na gestão do presidente Fernando Henrique Cardoso e da Fazenda desconfia-se fortemente de que partiu a iniciativa de mandar invadir a conta de um correntista da Caixa Econômica Federal, testemunha das visitações do então ministro Antonio Palocci a uma casa de lobby e atividades adjacentes, no Lago Sul, em Brasília.

Em ambos os casos como agora, houve repúdios às práticas, seguidos de convocação da Polícia Federal para investigar “com rigor”, atordoamento, versões sobre a “irritação” - conforme o caso, “indignação” de Lula com o episódio, não obstante uma incomum economia de palavras por parte do presidente da República, o responsável maior pelo que se passa naqueles e em outras repartições da administração pública federal.

Mas, se como trata de suspeitar logo de início o Palácio, a urdidura teve origem em grupos de ação autônoma e pára-legal da Abin ou da PF, alivia um pouco, mas não melhora em nada a situação do governo.

A agência é diretamente ligada à Presidência e a Polícia Federal ao Ministério da Justiça. Se com cinco anos e meio de mandato o presidente Luiz Inácio da Silva não consegue dispor de gente de confiança que mantenha a ordem na casa e fala em perda de controle, francamente.

Se não é conseqüência do oposto - uma política de controle interno de informações - é resultado de uma oceânica indiferença a respeito de qualquer coisa que se passe longe de auditórios animados ao som de odes às maravilhas do óleo da mamona, à produção futura de biodiesel, às hipotéticas cifras do pré-sal e de auto-exaltações com objetivo preciso: ressaltar as qualidades do chefe do Executivo, em detrimento dos outros dois Poderes e de qualquer vislumbre de oposição.

Há muito nichos de desorganização no poder público, mas não é aceitável que grasse a balbúrdia hierárquica na agência encarregada de abastecer a Presidência de informações e na Polícia encarregada de revelar cotidianamente ao Brasil um governo voltado para o combate dos crimes “de cima”.

São setores estratégicos e, como tais, só se pode acreditar nas correntes versões sobre descontrole se a premissa for a do governo do cada um por si e tudo pelo amor de Deus.

Na quarta hipótese, as escutas ilegais estariam sendo feitas por agentes públicos a serviço de interesses privados, mediante contratações estranhas aos trâmites legais. Pensar nisso leva a conclusão semelhante à anterior: ao governo federal pouco se lhe dá o que se passa debaixo do próprio nariz, ao ponto de montarem-se balcões de negócios paralelos na Abin e na PF nas barbas do presidente da República.

Até agora, tudo o que o governo disse foram obviedades do gênero “escutas ilegais são uma violência aos direitos do cidadão”. Nada falou, por exemplo, a respeito de providências de antigas e repetidas suspeitas do presidente do STF sobre escutas em seu gabinete.

Nem uma palavra considerou adequado apresentar a respeito da afirmação do delegado da PF Protógenes Queiroz na CPI dos Grampos, dia 6 de agosto, confirmando o uso “informal” de agentes da Abin na Operação Satiagraha, para o serviço igualmente “informal” de escutas telefônicas.

Com boa vontade, admite-se que o governo possa estar mesmo indignado. Surpreso, jamais. Seria o único ente na República a se surpreender com informações a respeito de um dos temas centrais do debate nacional recentemente: o estado policialesco.

Temos, no entanto, mais que isso: a confrontação direta das cúpulas dos Poderes Legislativo e Judiciário sobre o presidente da República - algo inédito para Lula - e a confirmação de que, em nome de seu projeto de poder, o governo passa por cima das limitações legais aos atos do Poder.

O Estado não é policial, é frouxo


Clóvis Rossi
DEU NA FOLHA DE S. PAULO

SÃO PAULO - Dois presidentes, Gilmar Mendes, do STF, e Garibaldi Alves, do Senado, viram nos "grampos" em seus telefones um "estado policialesco".

É precisamente o contrário. Estado policialesco pressupõe um Estado forte, onipresente, hiperativo.

O que existe no Brasil é um Estado frouxo, inerme, ausente exatamente onde a sua presença é mais necessária.

Episódios como o dos "grampos" contra duas das mais altas autoridades da República, para não mencionar Gilberto Carvalho, o mais próximo assessor do presidente Lula, só demonstram o quanto o atual governo é omisso. Prova-o a seguinte frase do ministro da Justiça, Tarso Genro, falando precisamente sobre interceptações telefônicas: "Estamos chegando a um ponto em que temos de nos acostumar com o seguinte: falar no telefone com a presunção de que alguém está escutando".

Traduzindo: o chefe da Polícia Federal, em vez de se indignar -e agir em conseqüência, o que seria ainda mais relevante-, prefere conformar-se com a sua incompetência, impotência, inapetência ou tudo isso ao mesmo tempo para controlar atividades que desrespeitam o Estado de Direito. Fosse menos relapso, o ministro diria que tomaria todas as providências para que a arapongagem deixasse de ser tão disseminada e que os inocentes poderiam ter a "presunção" de que só são ouvidos pelos seus interlocutores.

Se seu chefe, o presidente da República, também fosse menos relapso, teria afastado o ministro no ato, para demonstrar que não compactuava com a omissão do subordinado. Como não o fez, é forçado a agir tardiamente, punindo o policial, Paulo Lacerda, que foi o símbolo de uma elogiada PF. Não há símbolo que resista no governo Lula. Cai um após o outro sempre que qualquer labareda chega perto do presidente.

Grampo no poder

Editorial
DEU NA FOLHA DE S. PAULO

Escuta no STF tem raiz na leniência do Executivo e do Legislativo, omissos diante da cultura policial incrustada no Estado

NÃO É de hoje que se espalha por Brasília a convicção de que as mais altas autoridades da República vêm sendo grampeadas. Reportagens são publicadas, varreduras dão em nada e ninguém sai responsabilizado.

Agora, há um fato: conversa do presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Gilmar Mendes, com o senador oposicionista Demóstenes Torres (DEM-GO) foi gravada, vazada e publicada.A comprovação chocante circulou com a revista "Veja", que aponta a Agência Brasileira de Inteligência (Abin) como responsável pela bisbilhotice. A agência era já a principal suspeita, ao lado da Polícia Federal, nas prováveis escutas realizadas no contexto da Operação Satiagraha, que levou à prisão de Daniel Dantas. Gilmar Mendes, por ter libertado o banqueiro, teria sido incluído na conta de "inimigo".

Além de ministros do STF, até alvos no Palácio do Planalto ou próximos do Executivo teriam caído na mira pelo menos do baixo clero dos órgãos de investigação. As cúpulas da Abin e da Polícia Federal sempre negaram as escutas. Voltam agora a refutar seu envolvimento, mas a verossimilhança da negativa encolhe a olhos vistos.

Existe, claro, a hipótese de que a escuta tenha sido realizada por terceiros. Há um cipoal de interesses envolvidos, tanto na espionagem quanto na sua divulgação. Só uma investigação enérgica poderia desenredar o emaranhado, mas as primeiras reações diante do incabível sugerem que não se descarta o teatro de praxe das providências cabíveis.Por um lado, fez bem o presidente da República de afastar a cúpula da Abin, depois de reunir-se com o chefe do Supremo. É o mínimo que lhe cabia fazer para tornar menos vaga a promessa de sempre, de investigação isenta (com a vigilância da Procuradoria Geral da República).

No Congresso, porém, o máximo que se conseguiu improvisar foi um depoimento, hoje, do ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional, general Jorge Felix, à CPI das Escutas Telefônicas Clandestinas. Já a "reunião de emergência" da Comissão Mista de Controle de Órgãos de Inteligência do Congresso ficou para o dia 9 (o órgão se reuniu pela última vez em 2005).

Está aí, na atitude leniente dos Poderes da República, a raiz do descontrole no aparelho policial e de segurança. Essa subcultura autoritária incrustada no Estado viceja à sombra dos interesses menores dos ocupantes dos cargos mais altos, useiros e vezeiros de dossiês e grampos. Se as instituições não lhe resistirem com comando e vigilância, terminarão carcomidos por ela.

A Abin desgovernada

Editorial
DEU EM O ESTADO DE S. PAULO

A revelação de que presumíveis arapongas da Agência Brasileira de Inteligência (Abin), o serviço secreto do Palácio do Planalto, grampearam os telefones de dois juízes do Supremo Tribunal Federal (STF), o seu presidente, Gilmar Mendes, e o colega Marco Aurélio Mello - além de dois ministros de Estado e cinco senadores da República -, não cria propriamente uma crise institucional, no sentido ortodoxo da expressão. Embora não se saiba quem tomou a iniciativa de bisbilhotá-los, nem a quantos outros, nem, muito menos, para que, seria absurdo suspeitar que algum dos Três Poderes, por deliberação de seus dirigentes ou de quaisquer altas autoridades, patrocinou a ação criminosa contra integrantes dos demais. Tampouco há certeza, por enquanto, de que o esquema de escutas ilegais tenha sido autorizado, instigado ou tolerado pela cúpula da Abin - que, aliás, não tem poder de polícia, embora o seu diretor-geral, Paulo Lacerda, ex-diretor da Polícia Federal (PF), gostaria que tivesse, como já disse mais de uma vez.

A crise, isso sim, é de governança - “descontrole do aparelho estatal”, na definição precisa do presidente do Supremo Tribunal Federal. No Executivo, a Secretaria de Segurança Institucional, a que a Abin é subordinada, parece não dispor de mecanismos efetivos para identificar eventuais desvios de conduta no órgão. Este, por definição e à semelhança dos congêneres de todo o mundo, exerce uma atividade que o coloca no fio da navalha, entre o cumprimento estrito das suas atribuições definidas em lei e a oportunidade da transgressão. Nesses organismos, “a necessidade de saber”, em defesa do Estado, pode servir de pretexto, com a maior facilidade, para práticas indefensáveis. É ainda de sua natureza constituir terreno fértil para abrigar emaranhados interesses políticos, internos ou em conexão com os que estabelecem áreas de influência em organismos aparentados, como, no caso brasileiro, a Polícia Federal - que recorreu ilicitamente a agentes da Abin na Operação Satiagraha.

Segundo o noticiário, desconfia-se no governo e na própria Abin de que as escutas - das quais foram alvo, no Planalto, pelo menos a ministra do Gabinete Civil, Dilma Rousseff, o seu colega da Articulação Política, José Múcio Monteiro, e o chefe de gabinete do presidente, Gilberto Carvalho - envolveriam quadros egressos do extinto Serviço Nacional de Informações (SNI), um dos pilares do regime ditatorial. Esses R2, como são conhecidos no ramo, por serem militares da reserva, não só trouxeram consigo a velha cultura da espionagem, mas também formariam um corpo à parte dentro da Abin, resistente a reformas e a trocas de direção. “Não costumam dar satisfações a ninguém”, contou um funcionário, tornando público um fato decerto amplamente conhecido ali. Sejam eles ou não os autores da enormidade, a mera existência do quisto escancara a falta de comando no setor. E essa, vai sem dizer, ainda é a melhor hipótese, considerando as alternativas.

Acrescente-se que a Abin dispõe de um núcleo de contra-inteligência, do qual seria de esperar que tivesse conhecimento e denunciasse à cúpula o grampo ecumênico - porque alcançou, no Senado, um representante do PMDB, Garibaldi Alves, o presidente da Casa, um do PT, Tião Viana, um do DEM, Demóstenes Torres (interlocutor do ministro Gilmar Mendes numa gravação vazada para a Veja), e três do PSDB, Artur Virgílio, Álvaro Dias e Tasso Jereissati. O Congresso, a propósito, tem um órgão de fiscalização externa da Abin, a Comissão Mista de Controle de Órgãos de Inteligência, criado quando aquela surgiu, em 1999. A sua mais recente reunião data de abril de 2005. É a sua contribuição para o descontrole apontado por Mendes - e que vem de longe. Diante do escândalo, o presidente do Supremo Tribunal Federal fez a coisa certa: cobrou providências diretamente do presidente Lula. Este também tomou a atitude correta, determinando de imediato a apuração do abuso e a demissão dos culpados.

O problema é que isso é pouco. Chegou a hora de o Planalto ordenar uma revisão profunda dos procedimentos internos na Abin, com a adoção de supervisões cruzadas para inibir as práticas policialescas que se beneficiam da omissão - no mínimo - dos escalões responsáveis. E é evidente, por isso mesmo, que a atual diretoria da agência tem de sair.

Luz nos porões

Editorial
DEU EM O GLOBO


A comprovação de que o presidente do Supremo Tribunal (STF), Gilmar Mendes, foi alvo de arapongas da comunidade paraoficial de informações precisa ser entendida pelo presidente Lula e o governo na sua verdadeira e grave dimensão. Na reunião realizada ontem no Palácio do Planalto entre o presidente da República e, representando o STF, o próprio Gilmar Mendes, acompanhado dos ministros Cezar Peluso, vice da Corte, e Carlos Ayres Britto, também em nome do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), Lula ouviu dos magistrados que a investigação determinada a partir da revelação da revista "Veja" não poderá ser concluída sem resultados práticos. Entenda-se: sem a punição efetiva de pessoas. Afastar a direção da Agência Brasileira de Inteligência (Abin) precisa ser apenas o começo.

Também participou da conversa o diretor da agência, Paulo Lacerda, ainda no cargo - um dos suspeitos de, junto com setores da Polícia Federal, já dirigida por ele, montar esse esquema clandestino de bisbilhotagem eletrônica -, e o diretor-geral da PF, Luiz Fernando Corrêa. A reivindicação dos ministros do STF é o mínimo que o governo tem de fazer para que a atuação desse esquema paraoficial de espionagem não fuja de vez de controle, atropelando o estado de direito - já arranhado pela atuação coordenada, ilegal, de agentes da Abin e da PF em pelo menos uma operação, a Satiagraha, sem contar uma série de agressões a direitos constitucionais do cidadão em outras ações.

Capturado pelos arapongas na conversa telefônica com o ministro Gilmar Mendes, o senador Demóstenes Torres (DEM-GO) fez a mesma cobrança, frisando não importar quem tenha de ser punido: se o ministro da Justiça, Tarso Genro, responsável pela PF; Paulo Lacerda, o general Jorge Félix, ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI) da Presidência da República, ao qual a Abin está subordinada, ou quem seja. Essa perigosa autonomia de agentes públicos da área de segurança e informações não vem de hoje. Casos de espionagem eletrônica clandestina são conhecidos desde o primeiro governo FH. Com o tempo, essa espécie de comunidade paralela de espionagem foi se fortalecendo, até pela incorporação das novas tecnologias de arapongagem, facilitada pelo avanço das telecomunicações. O fato, como noticiou a "Veja", de o ex-ministro José Dirceu se achar espionado e acusar o ministro Tarso Genro, seu adversário no PT, indicaria que esse braço semiclandestino estaria sendo manipulado até a serviço de conflitos político-ideológicos petistas. As pontas desse véu também devem ser levantadas.

A História está repleta de exemplos do que acontece quando aparatos repressivos ganham vida própria. Sempre a liberdade e as garantias individuais são massacradas. No Brasil, no regime militar, o governo Geisel esteve ameaçado de um golpe por ter enfrentado os porões dos quartéis, que haviam ganhado autonomia. Foi preciso iluminar aqueles porões para haver a redemocratização. A lição vale para o Brasil de hoje, onde prolifera em segmentos da PF/Abin e mesmo na Justiça e no Ministério Público uma perigosa cultura messiânica de limpeza ética da sociedade a qualquer custo, mesmo o do descumprimento da Constituição. Até pela experiência de vida, Lula deve saber que, quando esse tipo de visão se infiltra na máquina pública, a democracia começa a correr sérios riscos. Naqueles porões militares também havia gente alegadamente preocupada em salvar a nação.