terça-feira, 16 de setembro de 2008

HOMENS MORTOS


Graziela Melo*

Corpos tortos
Homens mortos
Numa imensa
Empilhadeira

Sinistro visual

De uma
Paisagem
Da guerra

Que não
É nada
Virtual

Muito menos
Casual...

Apenas
Invenção
Proposital

Daqueles
Que se julgam
Os únicos donos
Da terra!!!

Rio de Janeiro, 15/09/2008

* Poeta, autora do livro Crônicas, contos e poemas , Abaré Editorial / Fundação Astrojildo Pereira, Brasília, 2008, 203 pp.

Ganância e controle frouxo


Merval Pereira
DEU EM O GLOBO


NOVA YORK. A economia, enfim, voltou a ser o centro da campanha presidencial depois do "domingo sangrento", e levou os dois candidatos ao mesmo diagnóstico, por caminhos distintos. O republicano McCain iniciou o dia tentando reafirmar que "os fundamentos da economia são fortes", mas teve que recuar diante das evidências. Depois de esse seu diagnóstico ser apontado pelo democrata Barack Obama como uma prova de que está descolado da realidade, McCain tentou consertar, dizendo que os fundamentos da economia americana são "os trabalhadores", que continuam sendo os mais eficientes e produtivos do mundo, enquanto em Wall Street "a ganância, a irresponsabilidade" colocaram tudo a perder. Obama não culpou McCain diretamente pela crise, mas culpou o fato de ele apoiar a política econômica de Bush.

Para o economista brasileiro Fernando Sotelino, ex-presidente do Unibanco e professor da School of International and Public Affairs, da Universidade Columbia, em Nova York, a proposta dos democratas "sempre teve uma visão mais holística do problema", citando como exemplo o governo Clinton. Sotelino lembra que, se a administração federal não controla a política monetária, "o estilo de liderança pode influenciá-la".

Quando Obama fala de déficit fiscal, investimento em educação, mas procurando achar recursos para pagar, "parece mais alinhado com uma visão de longo prazo", analisa Sotelino, que tem um diagnóstico objetivo sobre o que está acontecendo na economia americana: é a conseqüência de um período longo de aparente estabilidade e crescimento, induzindo otimismo excessivo de tomadores e provedores de crédito, e de uma política monetária frouxa, particularmente a de manutenção de juros inferiores a 2% ao ano, de dezembro de 2001 a novembro de 2004.

"Juro real zero em país que ama alavancagem levou a crescimento explosivo da demanda por crédito (contra riqueza "percebida") das famílias e da oferta de crédito (baseada em modelagens de risco otimistas) dos bancos. Não há dúvida de que criatividade de mercado, frouxa supervisão bancária e ratings inadequados dados por agências de classificação de crédito levaram a níveis adicionais de instrumentos financeiros mal avaliados", escreveu em recente artigo na revista "Foco, Economia e Negócios".

Também o economista Paulo Rabelo de Castro, no seu boletim eletrônico, atribui a euforia financeira do mercado americano a uma criação artificial de Alan Greenspan, o presidente do Fed, o Banco Central americano, "ao tentar conter os efeitos da recessão de 2001-2002 com a prática de juros ínfimos (1% ao ano) abaixo da inflação corrente. Tendo conseguido reverter o sinal de uma forte recessão nos EUA, Greenspan devolveu também euforia e novas armas para consumidores e especuladores".

Nenhum dos dois explicita a crítica, mas cresce a percepção de que o fato de o Fed só ter começado a elevar os juros depois da reeleição de George W. Bush, em outubro de 2004, foi uma manobra política. Fernando Sotelino, que dá aula de sistema bancário internacional na Universidade Columbia, lamenta que o Brasil não tenha aproveitado a onda de crescimento mundial dos últimos seis anos para fazer as reformas estruturais que permitiriam um crescimento sustentado mais forte.

No mesmo artigo da revista "Foco", ele situa em meados do ano passado o momento "mais favorável para o Brasil de todo o período republicano" para se fazer as reformas, momento de forte crescimento global alimentado por consumo em expansão nos EUA e robusta expansão de oferta de produtos industrializados a custos baixos por países em desenvolvimento (principalmente China e Índia).

Essa combinação permitia "continuado aumento de preço de vários produtos da pauta de exportação brasileira, geração de crescentes superávits na balança comercial e caminhada na direção da redução para praticamente zero do endividamento externo líquido".

Permitia também expectativas de crescimento econômico sustentado mais robusto e progressiva redução da taxa de juros. "Mas seguia o Brasil com endividamento público elevado (40% do PIB) para o seu custo de carregamento (juros reais de 8% ao ano) e níveis baixos de investimento (20% do PIB)".

O rigor na política monetária é elogiável, ressalta Sotelino, pois é preciso preservar a conquista da "inflação sob controle". Mas seria necessária a implementação de reformas, como a fiscal, que tribute o consumo e o lucro e desonere a produção; a trabalhista, para reduzir os custos indiretos da força de trabalho e estimular o emprego formal; e a da Previdência, que, respeitando o direito adquirido, estimule a poupança futura.

Para Sotelino, essas seriam condições para transformar superávits fiscais primários "heróicos" em perspectiva confiável de equilíbrio fiscal nominal sustentado.

Ele acredita que se deve esperar uma desaceleração econômica global em conseqüência da desaceleração da economia nos EUA. "O Brasil é um país que tem uma economia doméstica relativamente grande, tem algumas áreas em que há vantagens competitivas de exportação, e, como o país não chegou a atingir níveis de crescimento do padrão da Índia, da China, ou de outros emergentes, estava caminhando para lá, não haverá uma parada. Mas vamos voltar a entrar nos 3% a 4% de crescimento do PIB".

O economista Paulo Rabelo de Castro diz que a negação do ajuste em 2002, pelos EUA, proporcionou cinco anos muito bons, inclusive de muita sorte para o Brasil de Lula. Porém, 2008/09 serão "os anos do ajuste, os anos "maus", por causa da inversão de ciclo tão intensa quanto foi o delírio consumista e empilhador de compromissos financeiros nos anos precedentes".

Lula é nosso único acontecimento


Arnaldo Jabor
DEU EM O GLOBO/O ESTADO DE S. PAULO

Quando eu comecei a escrever em jornal, há 17 anos (santo Deus...), fiz um juramento de que nunca começaria um artigo com a célebre frase: “Estou diante da página branca, em busca de um assunto...” E cumpri a promessa, querido leitor. Jamais fiz isso. Mas, hoje, não sou eu quem está sem assunto; é o Brasil. Parece não acontecer mais nada no País. Como se explica isso?

Bem, é que Lula é o único acontecimento. Ele se apropria do que acontece e interpreta-o em seu interesse. Pode transformar acontecimentos em não-acontecimentos e vice-versa. Pode transformar o nada em fato e o fato em nada. Com seu carisma e marketing constante, joga uma nuvem de poeira nos olhos do País.

Ele entendeu que basta apoderar-se dos defeitos e cacoetes políticos do Brasil e saber manobrá-los para tudo marchar como “normalidade”. Apesar de crises de “fais divers”, nunca o Brasil pareceu tão normal. Com a economia bombando, como ele teve a sensatez de manter a boa política econômica do governo anterior, basta a Lula manter a imagem do funcionamento político normal, aceitando as anormalidades como normais, aceitando vícios dos poderes como fatos inevitáveis e, sabe ele, nem tão danosos à sua administração. Lula fatura como seus todos os acertos do governo anterior e jogará seus erros nos ombros de quem vier depois, disse uma vez Dora Kramer. O que me dói neste governo é o que ele poderia estar fazendo com a imensa grana que entrou com esta bonança e com as alianças que teceu. Mas, grandes mudanças e reformas essenciais dariam muito trabalho, desgastes, e Lula não quer aporrinhação. Ele conseguiu ficar fora de todos os escândalos que os babacas bolchevistas aprontaram. Saiu limpo e mais branco ainda, com o OMO da impunidade.

Sejamos justos; Lula merece elogios. Ele tem sido sensato, aqui e na América Latina, quer fazer algo pelo Brasil, sim, trouxe o conceito de fome e pobreza para a agenda administrativa e tem sido democrático.

Mas, este artigo trata mais de sua genialidade política. Aí, sim. Trata-se de um Maquiavel espontâneo, forjado na luta dura da viagem entre as classes sociais.

Ele aparece todos os santos dias na TV, rádio e jornais, pois descobriu o Brasil real e aí está seu gênio - descobriu algo que ninguém viu antes: que o Brasil não precisa de governo; basta parecer que tem. Ele entendeu que não existe uma meta a priori, desistiu de qualquer idéia de atingir uma síntese. Esta é a grande dificuldade de se analisar seu governo. Os comentaristas típicos partem de uma premissa de progresso no futuro e esperam que ela seja cumprida na prática. Mas nós não conseguimos concluir nada. Afinal, é bom ou ruim? Ninguém tem certeza. Lula não trabalha com isso. Acha isso uma bobagem “modernista”. Seu projeto é ele mesmo. Ele deixa o Brasil andar sozinho e não mexe no essencial. Ele raciocina indutivamente caso a caso, sem grandes projetos totalizantes.

Lula adotou como atitude o sentido da “cordialidade” que Sérgio Buarque de Holanda descreveu. Como a classe dominante do Nordeste, da qual ele foi a vítima, Lula usa o jeitinho do “homem cordial” para si mesmo. “Aos amigos aliados, tudo”; tolerância até com os macarrões de um Severino para governar em paz. Ele sabe que tudo se esquece. Quanto à Lei e questões institucionais, ele não liga muito. Não fere a lei, mas tolera que seus sórdidos aliados o façam, como se dissesse: “É o Brasil, que que se vai fazer?”

E, atenção, inimigos meus, vou dizer uma frase polêmica: talvez só essa velha cordialidade ibérica nos preserve uma louca e tropical “democracia”. Lula usa isso.

Lula desmoralizou os escândalos, tolerando-os. Ele não é malandro nem desonesto, mas tem sensibilidade para o que o Brasil quer ver.

Este é o outro tema deste artigo: Lula como ator. Sim. Até hoje só foi enfrentado por outro gênio do palco: Roberto Jefferson, que até lhe fez o favor de livrá-lo dos bolchevistas psicopatas que o impediam de governar. Agora, só tem tarefeiros e pelegos na boquinha, mas que não fazem tanto mal quanto os “dirceuzistas”, que nos jogariam na vala da Argentina.

O Lula-ator tem o selo de legitimidade de sua vida de operário. Tudo bem. E ele passa habilmente a “sabedoria” que o sofrimento lhe deu, a paciência diante das crises: “Calma, pequeno-burgueses!... Eu sei o que é a vida, já passei por coisa pior!” Lula desqualifica qualquer seriedade dramática com brincadeiras populares, como o Corinthians, o dedo cortado, o Brasil comparado ao Sítio do Pica Pau-Amarelo, o mar salgado de xixi. Mas, se precisar, ele fala sério com a bruta indignação do sindicalista vítima do “sistema”, assim como pode ser tranqüilo e debonaire na reunião da Febrapam ou sereno com reis e duques. É um crack. Só vi o Lula perder o prumo no auge do mensalão, quando temeu por si. Ali, suas sobrancelhas se arquearam de verdade e seus olhos giraram para cima, nas órbitas. Ali, ele teve medo mesmo de ser jogado de volta ao passado de pobreza e marginalidade. Já na campanha da reeleição, com a subida do Alckmin, ele arregaçou as mangas, mandou fazer um palanque de passarela como o do Mick Jagger e botou para quebrar. Era um leão acuado que ganhou de goleada.

Esta multiplicidade de cores, cambiantes, velozes como as lulas, é sua maior munição.

Quando se zanga, dá medo. Quando ri, é uma graça - suas covinhas são irresistíveis, nos acalmam, nos desmobilizam; suas piadas, mesmo sem graça, tiram a tragicidade de crises.

Isso tudo, sem falar no seu “design” perfeito: barriguinha, um Getúlio barbadinho, simpaticíssimo, o nome de fácil legibilidade como “Pelé”... em suma, um craque.

E tem mais; o País é tão “imexível”, tão duro de roer, tão resistente a qualquer cirurgia ou reforma, que talvez Lula tenha razão em sua tática de ciência política...

Sinais trocados


Dora Kramer
DEU EM O ESTADO DE S. PAULO

Reza uma das lendas sobre políticos mineiros que a verdade é o melhor despiste, pois o adversário a tomará sempre pelo avesso e, por receio de ser enganado, terminará de fato logrado.

Político paulista, diz também o folclore, em matéria de sutileza é o oposto do mineiro.

Nas preliminares da campanha pela reeleição do presidente Luiz Inácio da Silva, em 2006, o PT de São Paulo estava louco para o PSDB escolher Geraldo Alckmin, mas dizia que o oponente fadado à derrota - e, portanto, o “melhor” para enfrentar Lula - era José Serra.

Agora, a “preferência” do PT por Gilberto Kassab como o adversário de Marta Suplicy no segundo turno da disputa pela prefeitura da cidade também deve ser lida pelo avesso. A parada é considerada dura em qualquer hipótese, mas Geraldo Alckmin é visto como o oponente mais fácil de derrotar na reta final.

A análise, para exclusivo consumo interno, circula já há algum tempo - pouco antes de Kassab empatar com Alckmin nas pesquisas - e leva em conta os prós e os contra de cada um deles.

Na ótica da campanha petista, o candidato oficial do PSDB tem a seu favor o nome, o capital político individual, a imagem de político ético, a marca de tucano da gema.

Contra ele pesam a carência de estrutura, a falta de discurso nítido, a ausência de uma instância de poder ao seu lado para atrair a praticidade do eleitor e o pragmatismo das forças políticas.

Por esse raciocínio, Kassab tem contra si uma história política praticamente inexistente e a filiação partidária a uma legenda (DEM) que, em São Paulo, sempre funcionou como uma “franquia” da matriz nordestina em feitio de linha auxiliar do malufismo.

“Porém” - e aqui os analistas do PT localizam a vantagem definitiva do atual prefeito -, Gilberto Kassab conta com “dois poderes” para lhe dar sustentação: o estadual, na figura do governador José Serra, e o municipal, materializado na máquina da prefeitura.

Se Alckmin passar para o segundo turno, no entendimento dos petistas, Serra e Kassab entrarão na campanha, mas de má vontade. Além disso, continuará tendo problemas de discurso, um campo de excelente exploração para Marta.

Já se for Kassab o oponente, além do peso das máquinas, fará um confronto de realizações municipais com Marta, algo que Alckmin não pode fazer por não ter sido prefeito.

E se Marta Suplicy perder para ele?

De acordo com essa visão aliada, mas não completamente engajada do ponto de vista local, o mundo não se acaba. Aliás, seria o cenário mais estável, por imutável: Serra sem abalos de seu lado e Lula forte e, em tese, livre do afã do PT de passar de Dilma para Marta a certidão de mãe do PAC.

Alto-falante

Carece de substância a versão de que o presidente Lula decidiu afastar definitivamente a diretoria da Agência Brasileira de Inteligência porque soube que a Polícia Federal usou agentes da Abin na Operação Satiagraha, quando um ex-diretor da agência deu a informação à CPI dos Grampos.

No dia 6 de agosto, mais de um mês antes, o delegado comandante da operação, Protógenes Queiroz, havia confirmado na mesma CPI que usara agentes “informalmente”. Como todo mundo, o governo ouviu.

Mas ficou quieto e aparentemente não se interessou em apurar o caso. Ou bem o Planalto já sabia que Protógenes contara só parte da verdade à CPI e por razões estratégicas espalhou que o afastamento temporário da diretoria da Abin ocorrera em função da denúncia do ministro da Defesa sobre a compra de equipamentos de escuta, ou o governo brasileiro é o único do mundo a se informar exclusivamente pela imprensa.

À moda antiga

Autor do recém-lançado livro sobre a história do FBI (The FBI - A History), Rhodri Jeffreys-Jones, especialista em espionagem americana e professor da universidade escocesa de Edimburgo, em entrevista à Folha de S. Paulo de domingo chama atenção para um ponto importante a respeito do tema do controle oficial sobre o mundo da espionagem governamental.

“Os governos quase sempre sabem o que seus serviços secretos estão fazendo. Se não sabem, deveriam assumir a responsabilidade por isso”, afirma o professor. No livro, ele trata das suspeitas de que J. Edgar Hoover, chefe do FBI durante quase 50 anos, grampeava ilegalmente adversários políticos sob a vista grossa do governo norte-americano.

“Casos como esse sempre levantam a discussão sobre se os serviços secretos se tornaram fortes demais ou se saíram do controle. Mas a verdade é que nunca estão fora do controle.”

A questão é que, diz ele, quando algo dá errado, a responsabilidade é transferida para os órgãos da atividade fim - executores, não ordenadores de tarefas. De fato, quando os EUA se envolvem em algum desastre internacional, para efeito de opinião pública quem paga o pato é a CIA.

Hegemonia no Estado

Sergio Costa
DEU NA FOLHA DE S. PAULO


RIO DE JANEIRO - A se confirmar nas urnas a arrancada de Eduardo Paes (PMDB) nas pesquisas, o Rio estará próximo de assistir à formação de um raro bloco hegemônico -e homogêneo- nos Poderes Executivos estadual e municipal, no Legislativo e, ainda, com bom trânsito na Presidência.

Um projeto de poder bem urdido e conquistado através do voto, com a ocupação tática de cargos estratégicos: além de Paes, fazem parte do grupo seu avalista político, o governador Sérgio Cabral, e o presidente da Assembléia, Jorge Picciani.

Cabral e Picciani têm o controle da Assembléia desde 1995, quando o primeiro foi eleito presidente da Casa e o segundo se tornou o seu braço direito na Mesa Diretora. Em 2003, Cabral assumiu no Senado, e Picciani, o cargo na Alerj. Os dois nunca foram obstáculo para as administrações da linha Garotinho, mas a relação com o casal era mais na base da desconfiança mútua, do tipo "eu sei o que vocês fizeram no verão passado". A frase poderia ser aplicada do ponto de vista de qualquer um.

Ao grupo falta o controle da prefeitura, encrave do imperador Cesar Maia (DEM) de 1993 até hoje -com intervalo entre 1997 e 2001. Através de Paes, poderá conquistar agora a rica máquina municipal. É certo que o ex-tucano não tem trânsito livre com Lula, herança de sua atuação incendiária no Congresso à época do mensalão. Mas o boa-praça Cabral deve aparar a aresta com o presidente, como já fez com Picciani em relação a Paes.

Com isso, confirmado o favoritismo do ex-tucano, a consolidação da turma no poder se dará numa conjuntura mais do que amigável e favorável. Espera-se apenas que a associação reverta em benefícios para o Rio, mais necessitado do que o grupo -já muito bem-sucedido nas esferas pública e privada.

Um dia com Lula 64 graus


Raymundo Costa
DEU NO VALOR ECONÔMICO


No dia em que os mercados entraram em pânico, o presidente Lula parecia ter visto "passarinho verde", na expressão de um dos presentes ao churrasco que o governador Sérgio Cabral ofereceu ao presidente, em sua casa no condomínio Portobello, em Mangaratiba (RJ). Feliz, mas atento à crise que se desenrolava no Hemisfério Norte.

Lula procurou tranqüilizar os convidados, os governadores Marcelo Déda, de Sergipe, e Paulo Hartung, do Espírito Santo. Segundo o presidente, as medidas que o país tem tomado de "certa maneira criaram uma resistência macroeconômica muito significativa, anticorpos à crise", de acordo com o testemunho de um dos presentes.

Mas Lula fez questão de enfatizar para os governadores que é preciso estar mais atento que nunca, para impedir que a crise tenha maior impacto no país. "Agora tem que monitorar, continuar monitorando, e adotar, a depender da evolução, as medidas que forem necessárias para reduzir o risco de contaminação no país", contou outro convidado do governador Sérgio Cabral.

Lula está feliz com os 64% de popularidade que atingiu em pesquisa Datafolha da última semana, um recorde entre os presidentes, desde a redemocratização. Em sua estadia no Rio, iria a Resende inaugurar o Centro Logístico Volkswagen Caminhões e Ônibus. Não houve teto para o embarque, mas ele telefonou para explicar aos operários por que não estava lá, puseram sua voz no sistema de som, foi um sucesso.

O presidente está feliz também no pré-sal. Não por acaso, os três governadores que dividiram a churrasqueira de Cabral estão entre os estados mais beneficiados com a exploração petrolífera. Lula disse ter claro o propósito de não tomar decisão sobre a exploração do pré-sal "sem estabelecer um diálogo com os estados produtores e com o conjunto dos estados brasileiros".

O presidente disse aos governadores que o pré-sal é uma "riqueza que o país não esperava", que tem de ser explorada "tendo em vista as futuras gerações". Disse que deve receber o relatório que encomendou sobre a exploração do pré-sal em novembro, provavelmente depois das eleições, mas que não tem nenhuma "decisão apriorística". Está com a mente aberta, mas tem alguns eixos que levará em consideração.

Um deles é que "o Brasil não pode repetir os erros que outros países produtores de petróleo cometeram"; outro, como é do conhecimento público, a aposta num modelo de indústria petrolífera que agregue valor e torne o país um exportador de produtos industrializados derivados do petróleo. E que o pré-sal se transforme num instrumento de desenvolvimento, o que ocorrerá se o Brasil preparar-se para atender a demanda de equipamentos, sondas, plataformas e navios.

Num mundo em crise, Lula demonstra muita tranqüilidade. "Ele está em estado de graça, como alguém que viu um passarinho verde, e com um imenso otimismo no Brasil", conta um dos três governadores que estavam em Mangaratiba.

Um ambiente que deixou pouco espaço para conversas sobre as eleições municipais. Mas Lula 64 graus está com um problema de bom tamanho na cidade do Rio de Janeiro, com as pesquisas indicando um possível segundo turno entre os candidatos do PMDB, Eduardo Paes, e do PRB, Marcelo Crivella.

Bem antes da campanha, Lula deixou circular que Crivella era seu "candidato do coração" no Rio. Agora o PRB cobra a fatura do presidente, na forma de apoio gravado para a televisão. O presidente tem Paes na conta de um "desafeto", por sua atuação na CPI do Mensalão, mas o pemedebista é o afilhado de Sérgio Cabral nessas eleições.

Nos quatro Dias que Lula passou no Rio, o governador tratou de desfazer as resistências do presidente a seu candidato. A promessa é que Paes, se eleito, vai trabalhar junto com o governador e se comportar como um integrante da base aliada.

Aposta-se, nos meios cabralinos, que o presidente não vai tomar partido na disputa, em nome de um entendimento com o Rio de Janeiro que estava travado há cerca de 20 anos. Nem é hora: os dois candidatos ainda têm dúvidas se vão mesmo para o segundo turno. Além disso, é improvável que Lula ponha em risco uma popularidade que nunca teve antes no Rio.

Raymundo Costa é repórter especial de Política, em Brasília. Escreve às terças-feiras

Terremoto em Wall Street


Luiz Gonzaga Belluzzo
DEU NO VALOR ECONÔMICO


Nos anos 90, Goldman Sachs, Merrill Lynch, Bear Stearns, Lehman Brothers, Morgan Stanley, JP Morgan et caterva desfilavam sua sabedoria e ofereciam seu aconselhamento ao mundo embevecido. Hoje, dia sim, outro também, os barões de Wall Street exibem suas misérias nas esquinas do centro financeiro do mundo. O Tesouro e o Federal Reserve despejam dólares a mancheias para salvar alguns façanhudos das próprias imprudências. Primeiro, o Bear Stearns foi adquirido pelo JP Morgan com grana subsidiada do Federal Reserve.

Logo depois, as gêmeas Fannie e Freddie receberam os favores do secretário Paulson e do presidente Bernanke. Apavorados com a possibilidade da desvalorização dos bônus emitidos pelas agências, os dois senhores trataram de impedir que o prejuízo chegasse aos credores estrangeiros, soberanos e privados.

Já a holding do Lehman Brothers não contou com o mesmo tratamento. Foi obrigada a recorrer ao chapter 11, o que significa apresentar-se aos costumes, ou seja, aos procedimentos de liquidação. O Lehman Brothers Holdings, vai se abrigar sob a proteção da lei americana de falências concordatas, enquanto suas subsidiárias se manterão solventes sob o patrocínio de um consórcio de bancos e do Federal Reserve, sempre disposto a aceitar ativos de baixa qualidade em troca de empréstimos de liquidez.

Na mesma noite tenebrosa, o Merrill Lynch conseguiu safar a onça, adquirido pelo Bank of América, aparentemente sem contribuição dos tax payers.

Na segunda-feira, o Federal Reserve adicionou US$ 70 bilhões nas reservas do sistema bancário - a maior operação desde o 11 de setembro de 2001 - com o propósito de conter a elevação das taxas do mercado interbancário que chegaram a 6% depois do colapso do Lehman Brothers Holdings Inc.

Na atual conjuntura, o mercado está aterrorizado com o chamado risco do contraparte nas operações com CDS (Credit Defaul Swaps) negociadas fora dos mercados organizados e, portanto, sem a supervisão e a garantia dos sistemas de compensação. Os derivativos de crédito, quase todos, nasceram da securitização de empréstimos, sobretudo hipotecários. Os bons, os maus, os feios eram fatiados, empacotados e transferidos como carne de primeira para as criaturas de sua sagacidade, os Veículos Especiais de Investimento (SIVs).

Os SIVs emitiram commercial papers para financiar posições em ativos securitizados - os Asset Backed Commercial Papers. Instrumentos de curto prazo emitidos para "carregar" posições em papéis mais longos, os commercial papers são especialmente sensíveis às mudanças nas condições de liquidez dos mercados financeiros. Sendo assim, os bancos estavam obrigados, nos momentos de stress, a prover liquidez para manter suas criaturas à tona. O colapso de preços dos créditos subprime detonou os mercados de commercial papers e deixou os bancos em má situação.

Numa situação de stress e de estreitamento da liquidez, os mercados desconfiam que a gororoba é de segunda. A desconfiança é suficiente para lembrar os administradores de carteira que não há como descarregar a mercadoria sob suspeita. Tratam de vender os ativos de maior "qualidade" e, assim, jogam seus preços para baixo. Desgraçadamente, em situações extremas, os riscos de desvalorização dos ativos baseados em créditos mais do que duvidosos e outros de qualidade superior não são independentes, mas estão fortemente correlacionados.

Paul Samuelson observou que os mercados financeiros competitivos são eficientes do ponto de vista microeconômico, porquanto as divergências de preços entre ativos da mesma classe podem ser eliminadas pela arbitragem. São, no entanto, "ineficientes" do ponto de vista macroeconômico porque as bolhas afetam "todos" os ativos da mesma classe e não há possibilidade de arbitragem. Imagino interpretar corretamente o velho Samuelson: os "fundamentos" microeconômicos não se sustentam diante das idiossincrasias do comportamento coletivo dos investidores, marcado por processos miméticos de formação de expectativas. Uns se apóiam nas expectativas dos outros.

Os movimentos extremos de preços - aqueles que nos modelos estocásticos gaussianos estariam na cauda da distribuição de probabilidades - não podem ser considerados versões ampliadas das pequenas flutuações. Os episódios de euforia e desilusão deformam a própria distribuição de probabilidades.

As inovações financeiras prosperam com a formação de um consenso sobre o ineditismo das circunstâncias. Tudo parece justificar a valorização rápida dos ativos reais e financeiros (sempre há uma "nova economia") que avança com o envolvimento dos bancos na maré de otimismo. A alavancagem imprudente dos investidores é disfarçada por valores cada vez mais inflados das empresas nos mercados de ações e dos títulos de dívida que financiam as suas operações.

O desaparecimento súbito da liquidez nunca está no horizonte dos administradores da riqueza quando os mercados estão inundados de otimismo.

A revista The Economist relata uma reunião de gestores de risco realizada em janeiro de 2007. Um deles indagou de onde poderia vir a crise de liquidez. Ninguém arriscou uma previsão pessimista diante de quatro anos de compressão dos spreads, taxas de juros camaradas, nenhum default relevante nos portfólios e volatilidade historicamente baixa. "O ambiente mais benigno dos últimos 20 anos", concluíram os participantes.

É difícil adivinhar quantos mais se juntarão ao desfile dos quebrados. Seja como for, são fortes os indícios de que os Estados Unidos enfrentam a maior crise financeira depois da Grande Depressão dos anos 30. O crash de 1929 deixou algumas lições. Entre tantas, ensinou que o desespero da "desalavancagem" generalizada promove a degradação do balanço de todos os envolvidos: bancos, empresas e famílias .

Luiz Gonzaga Belluzzo ex-secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda, e professor titular do Instituto de Economia da Unicamp, escreve mensalmente às terças-feiras.

20 anos de cidadania no Brasil

SÍMBOLOO deputado Ulysses Guimarães e a Constituição. Ela traz inovações nos direitos, mas ainda falta muito para justificar o epíteto de “cidadã”

Leandro Loyola
DEU EM ÉPOCA

Como a Constituição de 1988 promoveu avanços nos direitos do cidadão – e deixou lacunas na economia

No próximo dia 5 de outubro, faz 20 anos que foi promulgada a Constituição de 1988, chamada “cidadã” pelo então presidente da Assembléia Nacional Constituinte, Ulysses Guimarães. Pode haver algum exagero nesse epíteto. Mas hoje está claro que a Constituição de 1988 promoveu um avanço no conceito de cidadania. “Ela contribuiu para sua popularização”, diz o historiador José Murilo de Carvalho, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). “E introduziu instrumentos legais importantes de afirmação democrática”. Ao mesmo tempo, a Constituição ficou incompleta. Até hoje, sofre um aperfeiçoamento contínuo que leva muitos a considerá-la uma “colcha de retalhos” em eterna reforma, descolada da realidade de uma economia moderna. Após 20 anos, qual é, afinal, o legado real da Constituição de 1988?

Essa é a questão central que norteia esta edição de ÉPOCA Debate. Para responder a ela, é preciso reconhecer – de modo enfático – os avanços expressos naquele documento histórico, que inaugurou a moderna democracia brasileira. Em 1988, a Constituição trouxe inovações que hoje parecem triviais. Durante mais de 150 anos, os analfabetos – maioria ou um número expressivo da população – estiveram excluídos da vida política. Pois a Constituição garantiu a eles o direito ao voto, assim como aos menores entre 16 e 18 anos. Também concedeu a todo cidadão o direito de saber todas as informações que o governo guarda sobre ele, um recurso conhecido como hábeas-data. Depois da Constituição, foram elaborados nos anos seguintes um novo Código Civil, o Código de Defesa do Consumidor, o Estatuto da Criança e do Adolescente e o Estatuto do Idoso. O racismo passou a ser considerado crime inafiançável. Há ainda um capítulo inovador sobre meio ambiente e uma legislação sobre a questão indígena que, se não evita conflitos pontuais, pelo menos protege a minoria.

O texto da Constituição de 1988 é profícuo em tratar de direitos civis, políticos e sociais e em criar mecanismos para que eles estejam a nosso alcance. Em algumas passagens, ele chega a repetir a citação de direitos. Até sua ordem foi alterada para firmar esse ponto. “A organização do texto constitucional de 1988 traz os direitos fundamentais à frente da organização do Estado. Esse sistema é o contrário do tradicional”, diz o advogado constitucionalista Luís Roberto Barroso, professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj). “Foi uma escolha deliberada do legislador. Simbolicamente, ele diz que a Constituição elege uma prioridade: coloca a preocupação com o cidadão à frente do Estado”.

Em seu livro Cidadania no Brasil – O Longo Caminho, o historiador José Murilo de Carvalho demonstra como a noção de cidadania sempre esteve no fim da fila das questões importantes no país. Durante o período colonial e o imperial (de 1500 a 1889), os escravos nem eram considerados pessoas – quanto mais cidadãos. Mesmo os “homens bons”, a elite econômica e com direito a voto, não poderiam ser considerados cidadãos. Eles não tinham “a noção de igualdade entre todos perante a lei”, porque exerciam desmandos em suas propriedades. “A Constituição de 1988 contribuiu para a popularização do conceito de cidadania a ponto mesmo de banalizá-lo”, diz Carvalho.

A Constituição garantiu verbas à educação e permitiu a universalização do ensino

Além de garantir direitos antes inéditos, a Constituição deu um passo importante ao criar caminhos para que os brasileiros os exerçam. “Ela redefiniu o escopo dos direitos e os mecanismos para garantir o alcance a esses direitos”, afirma o cientista político Rogério Arantes, da Universidade de São Paulo, autor de um estudo sobre a Constituição, em parceria com o colega Cláudio Couto. “Houve uma ampliação do número de atores institucionais capazes de influenciar o jogo político”, afirma o cientista político Fernando Abrucio (leia seu artigo). “O Ministério Público, o Supremo Tribunal Federal, os governos subnacionais e o Congresso Nacional, além de organizações mais amplas da sociedade civil, são atualmente peças-chave de um sistema que, historicamente, fora muito concentrado no governo federal e na Presidência da República”.

O texto constitucional prevê a possibilidade de o Congresso votar projetos de lei elaborados por iniciativa popular. Os cidadãos podem participar de conselhos responsáveis por políticas públicas. Organizações com apoio popular podem questionar a legalidade de medidas no Supremo Tribunal Federal (STF), por meio de ações diretas de inconstitucionalidade ou de outros instrumentos jurídicos. “O Poder Judiciário foi o mais fortalecido a partir de 1988”, diz o constitucionalista Barroso. Um efeito disso é a maior presença do Judiciário na vida cotidiana.

Nos últimos anos se tornaram comuns decisões judiciais que obrigam o governo a bancar remédios caríssimos para cidadãos que sofrem com alguma doença e não têm como pagá-los. Recentemente, o STF decidiu, após longo debate, liberar as pesquisas com células-tronco retiradas de embriões. Há um novo debate em curso no STF sobre a interrupção da gravidez quando a mãe descobre que o feto não tem cérebro. Outro caso foi o recente entendimento do Supremo sobre o nepotismo no serviço público. Provocado, o STF entendeu que a Constituição proíbe ocupantes de cargos públicos de empregar parentes em cargos de confiança. Por isso, deputados, senadores, prefeitos e governadores estão sendo obrigados a demitir seus parentes. O tema faz parte de um dos 142 dispositivos da Constituição que, após 20 anos de espera, ainda não foram regulamentados.

E é aí que a Constituição de 1988 revela suas limitações. Desde sua promulgação, ela tem sido alvo de críticas. O primeiro a bater foi o então presidente José Sarney, que afirmou que ela tornaria o país “ingovernável”. Economistas afirmavam que o governo não conseguiria cumprir as novas obrigações sociais estabelecidas no texto constitucional, pois elas custariam caro ao Estado. “É precisamente na preservação desse sistema de favores, pelo qual o Congresso finge acreditar na possibilidade de o Estado resolver todos os problemas nacionais, que está o mais sério risco para o país”, escreveu na ocasião o economista Mario Henrique Simonsen. Muitas das previsões de Simonsen e de outros economistas se concretizaram – e os defeitos da Constituição estão hoje claros.

Eles começam no tamanho do texto. Com 245 artigos e 1.627 dispositivos, a Constituição brasileira é uma das maiores do mundo. E continua crescendo. Desde 1988, as 62 emendas feitas já a tornaram 25% maior. Isso não é um defeito em si. O problema é a quantidade de temas tratados na Constituição. Ela é muito extensa porque regula atividades demais, especialmente na área econômica. Chega a ponto de determinar políticas públicas que poderiam ser deixadas para cada governo decidir. “A Constituição cobre tantos assuntos que inúmeras matérias podem virar questão judicial”, afirma o constitucionalista Barroso. Na maioria dos países, as Constituições tratam dos princípios básicos, enquanto as políticas públicas ficam a critério de cada governo. Eles apresentam seus planos e os eleitores escolhem segundo o que acreditam.

A Constituição criou mais mecanismos para os brasileiros buscarem seus direitos

No Brasil, é diferente. De acordo com um estudo feito pelos cientistas políticos Arantes e Couto, a Constituição de 1988 é a que possui o maior número de dispostivos que determinam políticas públicas em toda a História: 496. “Ela desce ao detalhe de dizer não só o que o governo tem de fazer, mas como tem de fazer”, afirma Arantes. O texto constitucional especifica até mesmo o tamanho da parcela fixa do orçamento que o governo tem de gastar em educação e saúde.

Obrigar governos a gastar com o que é mais importante parece uma boa intenção. Mas isso na prática engessa a gestão pública e torna difícil para qualquer governo definir prioridades de acordo com sua linha de trabalho. É por isso que, desde 1988, não há governo que não tenha deparado com a necessidade de fazer emendas à Constituição para conseguir governar. Apesar de todas as novidades introduzidas na Constituição de 1988, a cidadania que virou carimbo do texto ainda é um ideal distante no Brasil. O acesso universal à educação foi conquistado, mas o ensino público gratuito e de boa qualidade – que traz a verdadeira cidadania, ao proporcionar a independência intelectual do cidadão – ainda é uma utopia.

Além dos gastos obrigatórios com saúde e educação, a Constituição, sempre sob o pretexto de garantir a cidadania plena, criou mais direitos sociais inéditos. Estabeleceu o direito à aposentadoria dos trabalhadores rurais e deficientes – mesmo aqueles que nunca contribuíram para a Previdência Social. Ao estabelecer acesso maior à Previdência e a obrigatoriedade dos gastos com saúde e educação, ela lançou as bases que levaram à redução da pobreza. “A Constituição pode ser considerada uma mãe dos programas sociais”, diz o cientista político Sérgio Praça, organizador do livro recém-lançado Vinte Anos de Constituição. É significativo que, duas décadas depois, o programa social de maior sucesso seja o Bolsa-Família, que distribui dinheiro a famílias pobres por manter os filhos na escola.

Ao longo de 20 anos, o custo dessa opção pelo social está claro. Os constituintes criaram um modelo que obrigou o Estado brasileiro a gastar muito em benefícios sociais, especialmente com assistencialismo. É verdade que o dinheiro foi dirigido para corrigir uma secular desigualdade social, mas essa obrigação sufocou a capacidade de investimento do Estado. A carga tributária explodiu – e o país clama por reformas estruturais para crescer com mais vigor.

Por que, apesar dos sinais de alerta de economistas como Simonsen, os constituintes fizeram essas escolhas? Para entendê-las, é preciso transportar-se para 1988 e encarar seus dilemas com o olhar daquela época. Como aconteceu com suas antecessoras, a Constituição de 1988 é produto das crenças e da conjuntura de seu tempo. Elaborada depois de 21 anos sob uma ditadura militar, ela foi escrita ao longo de mais de um ano por um Congresso que ainda tinha na lembrança a sombra do autoritarismo. Por isso, seu texto se preocupa em garantir, para o futuro, aquilo que faltara no passado. Até ali, o mundo ainda era dividido entre capitalistas e comunistas. Um ano depois, o muro de Berlim cairia e muitas crenças iriam para o ralo. O contexto histórico em que foi produzido o texto constitucional, tema da próxima reportagem, é essencial para entender seus avanços e suas limitações.

1988, o ano em que aprendemos a democracia


FERNANDO ABRUCIO é doutor em Ciência Política pela USP, professor da Fundação Getúlio Vargas (SP)
DEU EM ÉPOCA


O Brasil vive hoje seu primeiro momento plenamente democrático. Todas as experiências anteriores ou foram autoritárias ou tinham algumas características da democracia, mas não a realizavam por completo. Boa parte desse resultado político se deve à Constituição de 1988, num sentido mais amplo que as regras por ela determinadas. Além do arcabouço institucional original, o espírito que norteou a confecção do texto constitucional e o aprendizado posterior têm produzido efeitos democratizantes na vida política brasileira.

Do ponto de vista democrático, as novidades institucionais da Constituição de 1988 foram de duas ordens. Em primeiro lugar, os direitos políticos dos cidadãos foram ampliados. Acabou-se com uma restrição que valera por toda a República, a proibição do voto do analfabeto, regra que provavelmente contribuiu para associar o enorme desenvolvimento econômico à manutenção de altas taxas de desigualdade ao longo do século XX. Consagrar essa mudança no texto constitucional foi fundamental para garantir um sufrágio verdadeiramente universal. Isso foi reforçado pela possibilidade do voto aos 16 anos e pela criação de novas formas de participação política, como os instrumentos de democracia semidireta (plebiscito e referendo) e os conselhos de políticas públicas.

Ainda há, no plano da cidadania, distância entre o Brasil legal e o Brasil real. As formas de participação extra-eleitoral ainda são subaproveitadas. Grande parte da população não as usa. Boa parte dos conselhos tem pouca influência sobre as políticas públicas. A competição política aumentou, mas estratégias oligárquicas de sobrevivência permanecem importantes, tanto nas pequenas cidades como nas periferias metropolitanas – neste último caso, nas eleições para vereador.

O maior desafio para consolidar a cidadania política talvez seja seu descolamento dos direitos civis. No uso da urna eletrônica, um representante do povão tem a mesma força que um da elite – e os resultados eleitorais realçarão cada vez mais esse fenômeno. Só que o sistema de justiça não foi moldado para os mais pobres e menos escolarizados. Tal processo inicia-se na delegacia de polícia, onde o tratamento é diferente entre os cidadãos – os integrantes do “andar de cima” raramente passam por lá.

A fragilidade dos direitos civis afeta o pleno exercício da democracia. Se alguns são “mais iguais” perante a lei, enfraquece-se a crença na capacidade de o voto estabelecer uma sociedade mais justa. Essa sensação fortalece o descrédito dos políticos, ainda mais quando eles se tornam “supercidadãos”, por meio do foro privilegiado. É preciso tornar a Justiça mais igualitária para que os direitos políticos, já plenos, possam ganhar toda a sua potencialidade.

A outra novidade da Constituição de 1988 foi a ampliação do número de atores institucionais capazes de influenciar o jogo político. O Ministério Público, o Supremo Tribunal Federal, os governos subnacionais e o Congresso Nacional, além de organizações mais amplas da sociedade civil, são peças-chave de um sistema que, historicamente, fora muito concentrado no governo federal e na Presidência da República. Promotores públicos e ministros do STF tornaram-se figuras essenciais no Estado brasileiro, enquanto as CPIs se transformaram em programa de grande audiência nacional.

Os direitos políticos no Brasil nunca foram tão plenos. O desafio agora é fortalecer os direitos civis

Nesse universo complexo, o presidente não se tornou refém de um modelo político ingovernável. Apesar dos múltiplos vetos existentes e do maior equilíbrio entre os poderes e os níveis de governo, o Executivo foi aquinhoado pela Constituição de 1988 com instrumentos para lidar com a nova realidade.

As medidas provisórias, o processo orçamentário e a capacidade de nomeação política constituem os principais mecanismos que garantem a força do Executivo. Com as MPs, o presidente ganhou o poder de acelerar a realização de parcela de sua agenda. O Congresso tem reagido a esse instrumento – e até aprovou uma emenda constitucional sobre isso, em 2001. No entanto, as MPs continuam ocupando lugar central na agenda legislativa e a insatisfação dos congressistas ainda não produziu uma mudança eficaz nesse processo.


PODER Plenário do Supremo, em votação do fim do nepotismo. Depois de 1988, o Judiciário se fortaleceu e seus integrantes viraram protagonistas do jogo político


Situação semelhante ocorre no campo orçamentário. A Constituição de 1988 trouxe uma série de novidades positivas em termos de planejamento dos gastos públicos. Mas a regra fundamental é: o Orçamento autoriza, mas não impõe. Por isso, o Executivo tem a capacidade de controlar parte significativa das despesas previstas pelos congressistas. Também houve mudanças importantes na seara orçamentária. Tais alterações, porém, envolveram a responsabilidade fiscal e o processo decisório do Congresso, e não a disputa política entre os governantes e os legisladores.


O poder de nomear foi de certa forma restringido pelo novo ordenamento constitucional. Para criar órgãos ou criar cargos, o Executivo precisa da aprovação do Congresso. Isso não ocorria no regime militar. O princípio do concurso público foi consagrado pela primeira vez com força – o que tem levado ao crescimento da burocracia selecionada pelo mérito. São avanços democráticos pouco lembrados no debate público. Mas a opção política posterior à Constituição de 1988 manteve uma característica do sistema político: para obter apoio parlamentar, a distribuição de cargos comissionados é vista como uma barganha aceitável tanto pelos congressistas como pelo Executivo.


Em vez de ter se tornado um país ingovernável, como profetizara o presidente Sarney logo após a promulgação da Constituição, o Brasil precisa discutir a qualidade e o custo para garantir a governabilidade. A existência de múltiplos pólos de poder deve ser vista como desejável. Ministério Público e STF têm exercido pressões sobre os agentes políticos, levando a um debate maior sobre as decisões políticas. Trata-se do sistema de equilíbrio dos poderes proposto originalmente pelos inspiradores da Constituição dos Estados Unidos, conhecido como “checks and balances”. Mas muitas vezes promotores e ministros do Supremo ultrapassam suas atribuições constitucionais, provavelmente porque, como controladores, são pouco ou mal controlados pelos poderes constituídos por políticos eleitos. Os escândalos envolvendo parlamentares e a incapacidade de o Congresso Nacional constituir uma agenda de longo prazo para o país também geram condições para o preenchimento de seu espaço por outros atores.


As fragilidades das instituições democráticas brasileiras, portanto, não residem na competição entre poderes múltiplos, cada vez mais equilibrados. O problema está em dois aspectos: primeiro, na responsabilização clara desses atores; segundo, na montagem de uma engenharia institucional que gere decisões com menor custo para a qualidade das políticas públicas. O sistema de justiça deve se fortalecer politicamente, mas deve, antes, responder à carência de direitos civis dos mais pobres. Um novo equilíbrio entre o Executivo e o Legislativo é desejável.


Isso, porém, deve ser obtido por um modelo que reduza a patronagem do sistema político e reforce o papel do legislador. O Congresso deveria atuar menos como palco para CPIs e mais como fórum de discussão e deliberação da agenda do país.


Não se pode esquecer que a Constituição de 1988 nos deixou outros legados. Sua existência retroalimenta o espírito democrático da Constituinte. A possibilidade de usar o “livrinho” como bíblia de nossos direitos é uma das mais fortes proteções a nossa democracia. E a Constituição pode ser aperfeiçoada sempre que a sociedade se organizar para isso. Emendas constitucionais dão trabalho para ser aprovadas, mas envolvem o caminho do debate e da negociação pelo aperfeiçoamento do ordenamento institucional. No passado, tínhamos Constituições outorgadas ou rasgadas. Agora, sempre que a modificamos, reforçamos o sentido democrático de 1988.