Alfredo Reichlin
Outubro 2008
Tradução: A. Veiga Fialho
Fonte: L'Unità & Gramsci e o Brasil.
Michele Salvati reconhece, no Corriere della Sera, que não explodiu só uma bolha especulativa. Aconteceu algo muito grande que marca uma virada. Chegou ao fim da linha um ordenamento econômico. Mudam as relações entre os poderes mundiais. Peço desculpas por não ser economista, mas se deve falar disso. Assistimos a um acontecimento inteiramente novo na história moderna, isto é, ao fato de que uma oligarquia político-financeira quis governar o mundo submetendo a política ao seu poder, entendendo política como soberania do Estado (inclusive a moeda), direitos universais do cidadão, independentemente da sua capacidade de consumo, e entendendo sociedade como histórias, culturas, laços, projetos não redutíveis à troca econômica. Disso é que se tratou. E é bem verdade que o mundo exulta, porque os Estados europeus mostraram a intenção de restituir o comando ao “Soberano”.
Era evidente (pelo menos para as mentes livres) que não podia continuar ao infinito um sistema com base no qual somas imensas de dinheiro (muitas vezes maiores do que a riqueza real produzida) movimentam-se de um lugar para o outro do mundo em tempo real, prescindindo das necessidades reais das pessoas, das relações humanas, dos direitos sociais, dos recursos reais, dos territórios. O fenômeno foi, de fato, grandioso, e certas polêmicas anticapitalistas de “revolucionários” envelhecidos não têm efeito algum. Deste modo, também se favoreceu a abertura de novos mercados e o financiamento de coisas extraordinárias, como a inteligência artificial, os remédios (e, por que não, as armas do século XXI). E tudo isso também possibilitou um salto no desenvolvimento dos países emergentes.
Todavia, graças a este sistema é que o país mais rico do mundo pôde viver de crédito e muito acima dos seus recursos, atraindo, graças ao papel imperial do dólar, 80% da poupança mundial. Ao mesmo tempo (mas não só dentro dos Estados Unidos), desenvolvia-se um enorme jogo especulativo: crédito fácil, endividamento de massa, muito além do rendimento do próprio trabalho, criação de uma economia de consumo, a qual se traduziu num crescente aumento das desigualdades e numa pressão devastadora sobre os bens públicos e os recursos naturais. E, enquanto se oferecia aos trabalhadores e às camadas médias a eterna ilusão de que, endividando-se, podiam se enriquecer ao infinito, com a idéia de que se pode fazer dinheiro com dinheiro, ocorria na realidade uma impressionante redistribuição do poder e das riquezas em favor das oligarquias dominantes.
Um enorme jogo de espelhos, que se quebrou quando — como dizia Keynes — “o desenvolvimento do capital real de um país torna-se o subproduto das atividades de um ‘cassino’”. Salvati não usa estas palavras. Mas me pareceu significativo sua referência ao livro de Robert Reich ferozmente polêmico com este sistema. Bem. Mas, se é assim, não pode deixar de se colocar um problema muito grande — político, mas também intelectual e moral. E não só para quem escreve. Parece-me evidente que começar a pensar num modelo diverso para a gestão da economia mundial é uma tarefa (mas também um dever ético-político) não mais adiável. Além do mais, os governos europeus puseram na mesa algo como dois ou três trilhões de dólares (tirados, evidentemente, do bolso das pessoas, inclusive de aposentados e operários). Muito bem. Pode-se pelo menos começar a pensar num futuro diferente?
Salvati não evita este problema. Não nega que seria necessária uma alternativa e reconhece que os modelos capitalistas podem ser diferentes entre si, até mesmo profundamente: o modelo keynesiano, isto é, o compromisso entre o capitalismo e a democracia era inteiramente diferente da virada ultraliberista dos anos 1970. O problema que ele levanta é outro, e é o verdadeiro problema que desafia hoje a esquerda e justifica sua inércia. Faltam — diz — as condições. E as condições de que fala não são tanto as objetivas (a profundidade da crise, a insustentabilidade do modelo atual) quanto as “grandes reorientações ideológicas, culturais, teóricas e, por fim, reorientações políticas igualmente profundas”, que permitiram aquelas duas grandes transformações (o keynesianismo entre os anos 1930 e 1940) e o neoliberismo dos anos 1970.
Tenho muito respeito por Salvati, um velho amigo que sempre escuto com atenção. Mas não resisto à necessidade (até moral) de lembrar, a propósito de condições culturais, o que foi nestes anos a verdadeira destruição do pensamento político da esquerda e de qualquer visão autônoma da esquerda em relação ao pensamento único da oligarquia financeira. Uma repetição cotidiana nunca vista antes contra os salários (sempre altos demais), os sindicatos (inúteis), a privatização das aposentadorias como condição para o desenvolvimento (é o que vão perceber os aposentados americanos ligados aos títulos de Wall Street). Para não falar das empresas que valem só pelo valor das ações e não por aquilo que produzem. E a escala dos valores dominantes: a reverência até ridícula diante da riqueza e da genialidade dos banqueiros, estes novos heróis do nosso tempo.
Talvez fale em mim um velho comunista, que deveria ficar calado. Então que falem os liberais. Expliquem-nos aonde vai terminar não a “classe”, mas a liberdade da pessoa, se a sociedade for reduzida a sociedade de mercado, se os homens forem postos em relação entre si sem tomar como referência sua substância humana, mas sim suas “máscaras”, sob as quais não existem criatividade nem projeto de vida, só indivíduos que se medem com uma só medida: a capacidade de consumo, o dinheiro.
Por que Salvati chama este sistema de “liberal”? Lamento, não estou de acordo. E não porque não compreenda a necessidade de uma revolução cultural ou subestime a fraqueza da esquerda, que também paga pela ilusão de delimitar para si um espaço (uma “terceira via”?) no “cassino” destes anos. Não havia as condições: foi o que nos disseram. É muito triste ouvir isso de novo. Por certo, eu também, como Salvati, não vejo por aí um novo Keynes e não creio que Obama tenha a estatura de Roosevelt. Mas recuso a idéia da política que existe neste modo de pensar. É exatamente isso que nos levou não ao risco de perder (pode-se sempre perder e depois voltar a vencer), mas de sermos irrelevantes. Condições são criadas. É o que não se compreendeu e se continua sem compreender: mais do que a riqueza, conta a inteligência das pessoas. As condições não existirão nunca, se a política não voltar a ser, antes de mais nada, conhecimento, descoberta da realidade, liberdade de pensamento, idéias fortes e, portanto, novas energias recolocadas em movimento. A história destes anos deveria ensinar algo.
Homens como Salvati têm a inteligência e o nível para contribuir para criar estas famosas condições, pelo menos culturais. E muitos, muitos deles não o fizeram nestes anos. No entanto, não era preciso nenhuma cigana para adivinhar que este gigantesco jogo de dívidas era insustentável. Por isso, não gosto quando, agora, são os mesmos a nos dizer que a crise é grave, acrescentando, porém, que não existem as condições para mudar. Também sei que não será fácil mudar. Mas ponho uma condição: poder dizer às pessoas que existe uma grande e nobre razão pela qual construímos um novo partido. E esta consiste na convicção de que chegou o momento de lutar por um mundo mais justo, no qual uma nova esquerda européia seja protagonista.
Alfredo Reichlin foi membro da secretaria, da direção e do comitê central do PCI, além de responsável pelo Departamento Econômico e ministro do “governo sombra” daquele partido. Foi também presidente da Direção Nacional dos DS (Democratas de Esquerda). Recentemente, esteve à frente da comissão responsável pela redação da “Carta de valores” do PD (Partido Democrático). Dirige a Fondazione Cespe — Centro Studi di Politica Economica, em Roma.
Outubro 2008
Tradução: A. Veiga Fialho
Fonte: L'Unità & Gramsci e o Brasil.
Michele Salvati reconhece, no Corriere della Sera, que não explodiu só uma bolha especulativa. Aconteceu algo muito grande que marca uma virada. Chegou ao fim da linha um ordenamento econômico. Mudam as relações entre os poderes mundiais. Peço desculpas por não ser economista, mas se deve falar disso. Assistimos a um acontecimento inteiramente novo na história moderna, isto é, ao fato de que uma oligarquia político-financeira quis governar o mundo submetendo a política ao seu poder, entendendo política como soberania do Estado (inclusive a moeda), direitos universais do cidadão, independentemente da sua capacidade de consumo, e entendendo sociedade como histórias, culturas, laços, projetos não redutíveis à troca econômica. Disso é que se tratou. E é bem verdade que o mundo exulta, porque os Estados europeus mostraram a intenção de restituir o comando ao “Soberano”.
Era evidente (pelo menos para as mentes livres) que não podia continuar ao infinito um sistema com base no qual somas imensas de dinheiro (muitas vezes maiores do que a riqueza real produzida) movimentam-se de um lugar para o outro do mundo em tempo real, prescindindo das necessidades reais das pessoas, das relações humanas, dos direitos sociais, dos recursos reais, dos territórios. O fenômeno foi, de fato, grandioso, e certas polêmicas anticapitalistas de “revolucionários” envelhecidos não têm efeito algum. Deste modo, também se favoreceu a abertura de novos mercados e o financiamento de coisas extraordinárias, como a inteligência artificial, os remédios (e, por que não, as armas do século XXI). E tudo isso também possibilitou um salto no desenvolvimento dos países emergentes.
Todavia, graças a este sistema é que o país mais rico do mundo pôde viver de crédito e muito acima dos seus recursos, atraindo, graças ao papel imperial do dólar, 80% da poupança mundial. Ao mesmo tempo (mas não só dentro dos Estados Unidos), desenvolvia-se um enorme jogo especulativo: crédito fácil, endividamento de massa, muito além do rendimento do próprio trabalho, criação de uma economia de consumo, a qual se traduziu num crescente aumento das desigualdades e numa pressão devastadora sobre os bens públicos e os recursos naturais. E, enquanto se oferecia aos trabalhadores e às camadas médias a eterna ilusão de que, endividando-se, podiam se enriquecer ao infinito, com a idéia de que se pode fazer dinheiro com dinheiro, ocorria na realidade uma impressionante redistribuição do poder e das riquezas em favor das oligarquias dominantes.
Um enorme jogo de espelhos, que se quebrou quando — como dizia Keynes — “o desenvolvimento do capital real de um país torna-se o subproduto das atividades de um ‘cassino’”. Salvati não usa estas palavras. Mas me pareceu significativo sua referência ao livro de Robert Reich ferozmente polêmico com este sistema. Bem. Mas, se é assim, não pode deixar de se colocar um problema muito grande — político, mas também intelectual e moral. E não só para quem escreve. Parece-me evidente que começar a pensar num modelo diverso para a gestão da economia mundial é uma tarefa (mas também um dever ético-político) não mais adiável. Além do mais, os governos europeus puseram na mesa algo como dois ou três trilhões de dólares (tirados, evidentemente, do bolso das pessoas, inclusive de aposentados e operários). Muito bem. Pode-se pelo menos começar a pensar num futuro diferente?
Salvati não evita este problema. Não nega que seria necessária uma alternativa e reconhece que os modelos capitalistas podem ser diferentes entre si, até mesmo profundamente: o modelo keynesiano, isto é, o compromisso entre o capitalismo e a democracia era inteiramente diferente da virada ultraliberista dos anos 1970. O problema que ele levanta é outro, e é o verdadeiro problema que desafia hoje a esquerda e justifica sua inércia. Faltam — diz — as condições. E as condições de que fala não são tanto as objetivas (a profundidade da crise, a insustentabilidade do modelo atual) quanto as “grandes reorientações ideológicas, culturais, teóricas e, por fim, reorientações políticas igualmente profundas”, que permitiram aquelas duas grandes transformações (o keynesianismo entre os anos 1930 e 1940) e o neoliberismo dos anos 1970.
Tenho muito respeito por Salvati, um velho amigo que sempre escuto com atenção. Mas não resisto à necessidade (até moral) de lembrar, a propósito de condições culturais, o que foi nestes anos a verdadeira destruição do pensamento político da esquerda e de qualquer visão autônoma da esquerda em relação ao pensamento único da oligarquia financeira. Uma repetição cotidiana nunca vista antes contra os salários (sempre altos demais), os sindicatos (inúteis), a privatização das aposentadorias como condição para o desenvolvimento (é o que vão perceber os aposentados americanos ligados aos títulos de Wall Street). Para não falar das empresas que valem só pelo valor das ações e não por aquilo que produzem. E a escala dos valores dominantes: a reverência até ridícula diante da riqueza e da genialidade dos banqueiros, estes novos heróis do nosso tempo.
Talvez fale em mim um velho comunista, que deveria ficar calado. Então que falem os liberais. Expliquem-nos aonde vai terminar não a “classe”, mas a liberdade da pessoa, se a sociedade for reduzida a sociedade de mercado, se os homens forem postos em relação entre si sem tomar como referência sua substância humana, mas sim suas “máscaras”, sob as quais não existem criatividade nem projeto de vida, só indivíduos que se medem com uma só medida: a capacidade de consumo, o dinheiro.
Por que Salvati chama este sistema de “liberal”? Lamento, não estou de acordo. E não porque não compreenda a necessidade de uma revolução cultural ou subestime a fraqueza da esquerda, que também paga pela ilusão de delimitar para si um espaço (uma “terceira via”?) no “cassino” destes anos. Não havia as condições: foi o que nos disseram. É muito triste ouvir isso de novo. Por certo, eu também, como Salvati, não vejo por aí um novo Keynes e não creio que Obama tenha a estatura de Roosevelt. Mas recuso a idéia da política que existe neste modo de pensar. É exatamente isso que nos levou não ao risco de perder (pode-se sempre perder e depois voltar a vencer), mas de sermos irrelevantes. Condições são criadas. É o que não se compreendeu e se continua sem compreender: mais do que a riqueza, conta a inteligência das pessoas. As condições não existirão nunca, se a política não voltar a ser, antes de mais nada, conhecimento, descoberta da realidade, liberdade de pensamento, idéias fortes e, portanto, novas energias recolocadas em movimento. A história destes anos deveria ensinar algo.
Homens como Salvati têm a inteligência e o nível para contribuir para criar estas famosas condições, pelo menos culturais. E muitos, muitos deles não o fizeram nestes anos. No entanto, não era preciso nenhuma cigana para adivinhar que este gigantesco jogo de dívidas era insustentável. Por isso, não gosto quando, agora, são os mesmos a nos dizer que a crise é grave, acrescentando, porém, que não existem as condições para mudar. Também sei que não será fácil mudar. Mas ponho uma condição: poder dizer às pessoas que existe uma grande e nobre razão pela qual construímos um novo partido. E esta consiste na convicção de que chegou o momento de lutar por um mundo mais justo, no qual uma nova esquerda européia seja protagonista.
Alfredo Reichlin foi membro da secretaria, da direção e do comitê central do PCI, além de responsável pelo Departamento Econômico e ministro do “governo sombra” daquele partido. Foi também presidente da Direção Nacional dos DS (Democratas de Esquerda). Recentemente, esteve à frente da comissão responsável pela redação da “Carta de valores” do PD (Partido Democrático). Dirige a Fondazione Cespe — Centro Studi di Politica Economica, em Roma.