sexta-feira, 17 de outubro de 2008

O MUNDO ESTÁ MUDANDO

Alfredo Reichlin
Outubro 2008
Tradução: A. Veiga Fialho
Fonte: L'Unità & Gramsci e o Brasil
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Michele Salvati reconhece, no Corriere della Sera, que não explodiu só uma bolha especulativa. Aconteceu algo muito grande que marca uma virada. Chegou ao fim da linha um ordenamento econômico. Mudam as relações entre os poderes mundiais. Peço desculpas por não ser economista, mas se deve falar disso. Assistimos a um acontecimento inteiramente novo na história moderna, isto é, ao fato de que uma oligarquia político-financeira quis governar o mundo submetendo a política ao seu poder, entendendo política como soberania do Estado (inclusive a moeda), direitos universais do cidadão, independentemente da sua capacidade de consumo, e entendendo sociedade como histórias, culturas, laços, projetos não redutíveis à troca econômica. Disso é que se tratou. E é bem verdade que o mundo exulta, porque os Estados europeus mostraram a intenção de restituir o comando ao “Soberano”.

Era evidente (pelo menos para as mentes livres) que não podia continuar ao infinito um sistema com base no qual somas imensas de dinheiro (muitas vezes maiores do que a riqueza real produzida) movimentam-se de um lugar para o outro do mundo em tempo real, prescindindo das necessidades reais das pessoas, das relações humanas, dos direitos sociais, dos recursos reais, dos territórios. O fenômeno foi, de fato, grandioso, e certas polêmicas anticapitalistas de “revolucionários” envelhecidos não têm efeito algum. Deste modo, também se favoreceu a abertura de novos mercados e o financiamento de coisas extraordinárias, como a inteligência artificial, os remédios (e, por que não, as armas do século XXI). E tudo isso também possibilitou um salto no desenvolvimento dos países emergentes.

Todavia, graças a este sistema é que o país mais rico do mundo pôde viver de crédito e muito acima dos seus recursos, atraindo, graças ao papel imperial do dólar, 80% da poupança mundial. Ao mesmo tempo (mas não só dentro dos Estados Unidos), desenvolvia-se um enorme jogo especulativo: crédito fácil, endividamento de massa, muito além do rendimento do próprio trabalho, criação de uma economia de consumo, a qual se traduziu num crescente aumento das desigualdades e numa pressão devastadora sobre os bens públicos e os recursos naturais. E, enquanto se oferecia aos trabalhadores e às camadas médias a eterna ilusão de que, endividando-se, podiam se enriquecer ao infinito, com a idéia de que se pode fazer dinheiro com dinheiro, ocorria na realidade uma impressionante redistribuição do poder e das riquezas em favor das oligarquias dominantes.

Um enorme jogo de espelhos, que se quebrou quando — como dizia Keynes — “o desenvolvimento do capital real de um país torna-se o subproduto das atividades de um ‘cassino’”. Salvati não usa estas palavras. Mas me pareceu significativo sua referência ao livro de Robert Reich ferozmente polêmico com este sistema. Bem. Mas, se é assim, não pode deixar de se colocar um problema muito grande — político, mas também intelectual e moral. E não só para quem escreve. Parece-me evidente que começar a pensar num modelo diverso para a gestão da economia mundial é uma tarefa (mas também um dever ético-político) não mais adiável. Além do mais, os governos europeus puseram na mesa algo como dois ou três trilhões de dólares (tirados, evidentemente, do bolso das pessoas, inclusive de aposentados e operários). Muito bem. Pode-se pelo menos começar a pensar num futuro diferente?

Salvati não evita este problema. Não nega que seria necessária uma alternativa e reconhece que os modelos capitalistas podem ser diferentes entre si, até mesmo profundamente: o modelo keynesiano, isto é, o compromisso entre o capitalismo e a democracia era inteiramente diferente da virada ultraliberista dos anos 1970. O problema que ele levanta é outro, e é o verdadeiro problema que desafia hoje a esquerda e justifica sua inércia. Faltam — diz — as condições. E as condições de que fala não são tanto as objetivas (a profundidade da crise, a insustentabilidade do modelo atual) quanto as “grandes reorientações ideológicas, culturais, teóricas e, por fim, reorientações políticas igualmente profundas”, que permitiram aquelas duas grandes transformações (o keynesianismo entre os anos 1930 e 1940) e o neoliberismo dos anos 1970.

Tenho muito respeito por Salvati, um velho amigo que sempre escuto com atenção. Mas não resisto à necessidade (até moral) de lembrar, a propósito de condições culturais, o que foi nestes anos a verdadeira destruição do pensamento político da esquerda e de qualquer visão autônoma da esquerda em relação ao pensamento único da oligarquia financeira. Uma repetição cotidiana nunca vista antes contra os salários (sempre altos demais), os sindicatos (inúteis), a privatização das aposentadorias como condição para o desenvolvimento (é o que vão perceber os aposentados americanos ligados aos títulos de Wall Street). Para não falar das empresas que valem só pelo valor das ações e não por aquilo que produzem. E a escala dos valores dominantes: a reverência até ridícula diante da riqueza e da genialidade dos banqueiros, estes novos heróis do nosso tempo.

Talvez fale em mim um velho comunista, que deveria ficar calado. Então que falem os liberais. Expliquem-nos aonde vai terminar não a “classe”, mas a liberdade da pessoa, se a sociedade for reduzida a sociedade de mercado, se os homens forem postos em relação entre si sem tomar como referência sua substância humana, mas sim suas “máscaras”, sob as quais não existem criatividade nem projeto de vida, só indivíduos que se medem com uma só medida: a capacidade de consumo, o dinheiro.

Por que Salvati chama este sistema de “liberal”? Lamento, não estou de acordo. E não porque não compreenda a necessidade de uma revolução cultural ou subestime a fraqueza da esquerda, que também paga pela ilusão de delimitar para si um espaço (uma “terceira via”?) no “cassino” destes anos. Não havia as condições: foi o que nos disseram. É muito triste ouvir isso de novo. Por certo, eu também, como Salvati, não vejo por aí um novo Keynes e não creio que Obama tenha a estatura de Roosevelt. Mas recuso a idéia da política que existe neste modo de pensar. É exatamente isso que nos levou não ao risco de perder (pode-se sempre perder e depois voltar a vencer), mas de sermos irrelevantes. Condições são criadas. É o que não se compreendeu e se continua sem compreender: mais do que a riqueza, conta a inteligência das pessoas. As condições não existirão nunca, se a política não voltar a ser, antes de mais nada, conhecimento, descoberta da realidade, liberdade de pensamento, idéias fortes e, portanto, novas energias recolocadas em movimento. A história destes anos deveria ensinar algo.

Homens como Salvati têm a inteligência e o nível para contribuir para criar estas famosas condições, pelo menos culturais. E muitos, muitos deles não o fizeram nestes anos. No entanto, não era preciso nenhuma cigana para adivinhar que este gigantesco jogo de dívidas era insustentável. Por isso, não gosto quando, agora, são os mesmos a nos dizer que a crise é grave, acrescentando, porém, que não existem as condições para mudar. Também sei que não será fácil mudar. Mas ponho uma condição: poder dizer às pessoas que existe uma grande e nobre razão pela qual construímos um novo partido. E esta consiste na convicção de que chegou o momento de lutar por um mundo mais justo, no qual uma nova esquerda européia seja protagonista.

Alfredo Reichlin foi membro da secretaria, da direção e do comitê central do PCI, além de responsável pelo Departamento Econômico e ministro do “governo sombra” daquele partido. Foi também presidente da Direção Nacional dos DS (Democratas de Esquerda). Recentemente, esteve à frente da comissão responsável pela redação da “Carta de valores” do PD (Partido Democrático). Dirige a Fondazione Cespe — Centro Studi di Politica Economica, em Roma.

Gabeira: "Eu não escondo os meus apoios, apenas não proíbo ninguém de me apoiar", .


Da Folha Online:


Paes e Gabeira evitaram o confronto direto durante o debate, mas trocaram insinuações sobre propaganda negativa. O motivo foi a apreensão, na tarde desta quarta-feira, de 6.000 folhetos contra Gabeira em uma Kombi repleta de adesivos da campanha de Paes e com outros 3.000 panfletos da propaganda política do peemedebista.

“Os adversários usam tão mal seu dinheiro que acabam ajudando a fortalecer nossa campanha. Os panfletos apócrifos só servem para nos fortalecer”, apontou Gabeira.

Gabeira recebe o apoio de policiais civis

Do Globo Online:

O candidato à prefeitura do Rio Fernando Gabeira (PV/PSDB/PPS) ganhou na noite desta quinta-feira o apoio do Sindicato de Policias Civis do Rio (Sindpol), no Bar Luiz, no Centro. Na presença de pelo menos 70 pessoas, entre delegados, inspetores e outros funcionários administrativos da polícia, Gabeira prometeu trabalhar em parceria com as forças de segurança. Os policiais civis disseram, inclusive, estar ajudando a Justiça Eleitoral com informações sobre crimes eleitorais praticados contra a candidatura de Gabeira.

- Nós, como policiais, somos agentes garantidores. Na presença de uma infração penal somos obrigados a agir. Nesse caso, existe uma colaboração do pessoal que está apoiando a campanha para que consigamos identificar as gráficas clandestinas, quem está fazendo crime eleitoral e, se flagrados, serão presos - afirmou um dos diretores do Sindpol, Francisco Chao.

Passos apressados


Dora Kramer
DEU EM O ESTADO DE S. PAULO


O presente ainda está em aberto, mas as forças políticas que deverão disputar a Presidência da República daqui a dois anos já atuam sob a lógica do futuro.

Como se tudo estivesse perfeitamente definido e não faltasse ainda resolver o principal: as eleições nas três principais capitais dos Estados que reúnem quase a metade dos 130 milhões de eleitores brasileiros.

A oposição dá de barato que o presidente Luiz Inácio da Silva foi derrotado em São Paulo, no Rio e Minas Gerais, e se enche de repentina coragem para confrontar-lhe a popularidade com críticas diretas e ironias abertas sobre a certeza exagerada de Lula no tocante à transferência de votos.

O governo de seu lado, representado pelo PT, age como quem entrega os pontos e já abre a discussão sobre os rumos da campanha de 2010, na evidente tentativa de reduzir os efeitos do entusiasmo oposicionista.

Ato contínuo à divulgação dos resultados do primeiro turno, adversários internos da candidatura de Dilma Rousseff, como o ministro da Justiça, Tarso Genro, saíram defendendo o nome da ministra para presidente e, logo depois, o PT marcou uma reunião do Diretório Nacional para avaliar os erros cometidos em 2008 na perspectiva de corrigi-los para 2010.

Tudo isso é certeza de que a oposição está mais forte e o governo mais fraco para o embate presidencial? Pode não ser, mas parece que é.

Se for, revelam-se ambos os contendores precipitados e, sobretudo, maus alunos da recente lição do primeiro turno na forma das surpresas produzidas pelo eleitorado: em matéria de resultado de urnas, convém confiar desconfiando e nunca, jamais, em tempo algum, pôr os carros na frente dos bois.

Descontado o empate no Rio, o cenário de fato parece definido em São Paulo e Belo Horizonte. É difícil mudar o quadro da derrota do PT com Marta Suplicy e do fracasso da aliança mineira avalizada por Lula? Dificílimo, porém, não impossível.

Nas duas capitais, enquanto se reduziu a diferença entre os oponentes, aumentou o tamanho do salto dos sapatos dos que estão com a sensação da vitória assegurada. Um campo fértil, como se viu no último dia 5, para tropeços.

Faltam apenas dez dias. Não custa lembrar, contudo, que Gilberto Kassab passou Marta na hora do voto, Leonardo Quintão atropelou Márcio Lacerda em ínfimos cinco dias e Fernando Gabeira entrou na competição na última semana. Isto faz da viravolta uma questão automática? Não, mas significa que o jogo só acaba quando termina.

Aécio rebate

O governador de Minas, Aécio Neves, discorda em gênero, número e grau da análise feita aqui a respeito da derrota nessa eleição de teses políticas “fantasiosas”, entre as quais foi incluída sua proposta de aproximação entre PT e PSDB.

Aécio refuta termos do artigo considerados “injustos” - em particular a expressão “truque engendrado” usada, no entendimento dele, para definir a idéia da aliança. Aproveita para reiterar sua fé em “vitórias políticas” construídas não necessariamente a partir de “vitórias eleitorais” e solicita obséquio para reapresentar sua tese.

“Desde que assumi o governo de Minas venho defendendo a crença de que devemos trabalhar pela criação de uma convergência, mais ampla, de centro-esquerda, capaz de garantir as condições para a realização das reformas que o País aguarda há tanto tempo.

“Acredito, sim, que existem identidades entre setores do PSDB e do PT que, se explicitadas, podem contribuir para a criação de um novo ambiente político. Acredito que precisamos romper com um maniqueísmo mesquinho que domina a cena política atual, no qual um partido se opõe necessariamente ao outro pautado, muitas vezes, apenas por uma lógica de alternância de poder.

“Nunca pretendi, como você disse, a ‘convergência total’, até porque isso seria tão artificial quanto autoritário. Nunca defendi a anulação das divergências políticas do debate nem a fusão dos partidos.

“Nunca carimbei o embate político como ‘algo pejorativo’ nem propus a busca pelo ‘consenso permanente’. Defendo que as diferenças políticas e partidárias permaneçam claras. Mas defendo também que sejamos capazes, em nome do País, de identificar e aprofundar nossas semelhanças ao invés de apostar apenas em aprofundar as nossas diferenças.

“A candidatura de Márcio Lacerda em BH encarna esse sentimento que não é só meu e não se manifesta apenas em Minas.

“Independente do resultado eleitoral em questão, continuarei, nos próximos anos, como vinha fazendo nos últimos, externando a minha crença: precisamos criar uma convergência mais ampla que, mantendo as identidades e as reais diferenças entre os partidos, reúna os setores mais progressistas da sociedade e nos permita criar condições políticas para o Brasil avançar com mais agilidade nas reformas de que tanto precisa.”

Tempos modernos


Merval Pereira
DEU EM O GLOBO

NOVA YORK. Já ficou famosa a cena de um comício recente em que um eleitor republicano pede a palavra e diz a McCain que está preocupado com o socialismo tomando conta do governo. Ele se referia à decisão do governo George Bush de estatizar bancos. No debate de quarta-feira, foi a vez de o candidato republicano dizer que seu adversário, Barack Obama, estimula a luta de classes. Ontem, governos da França e da Alemanha anunciaram que, na nova regulamentação do sistema financeiro, os chamados "paraísos fiscais" têm que desaparecer. O presidente da França, Nicolas Sarkozy, defende nada menos que a "refundação" do capitalismo para que as finanças estejam a serviço dos negócios e dos cidadãos, e não como estaria acontecendo hoje. Enquanto isso, no "socialismo de mercado" da China, o capitalismo chega ao campo para garantir a produtividade agrícola.

Ao contrário de indicar o fim do capitalismo, ou pelo menos do neoliberalismo, como acreditam muitos esquerdistas, especialmente no Brasil, a intervenção governamental de vários países no sistema financeiro internacional é uma repetição do que vem acontecendo através dos anos ciclicamente. Nomes míticos do sistema financeiro dos Estados Unidos, como o Salomon Bros, simplesmente desapareceram nas crises.

De 1945 até hoje, calcula-se que cerca de 60 grandes casas bancárias foram vendidas, incorporadas ou fechadas. Cerca de 10 mil bancos, entre pequenos e grandes, quebraram na década de 30 do século passado, durante a Grande Depressão. Na época, o presidente Franklin Delano Roosevelt teve que declarar feriado bancário de 90 dias e criou uma agência, a Reconstruction Finance Corporation, para resgatar bancos, empresas e até prefeituras.

A atual onda de críticas à ganância de Wall Street, ecoada até pelo republicano McCain, tem também precedentes, e houve épocas tanto de desregulamentação excessiva, que permitiu a especulação financeira que era considerada benéfica para a produção de riqueza, como também épocas de ação direta do governo, criando distorções no mercado, algumas repercutindo agora, como a atuação das gigantes hipotecárias Fannie Mae e Fred Mac, hoje novamente estatizadas.

Essas "empresas apoiadas pelo governo" (Government Sponsored Enterprises) foram criadas por ações do governo, a Fannie Mae (Federal National Mortgage Association) em 1938, por Franklin Delano Roosevelt, durante o New Deal, para fornecer liquidez ao mercado hipotecário e permitir que os cidadãos tivessem acesso a financiamentos para a casa própria depois da crise econômica provocada pela quebradeira da Bolsa, em 1929. Foi privatizada em 1968 pelo governo Lyndon Johnson, para conter o déficit orçamentário provocado pela Guerra do Vietnã, mas sob regime especial.

A Freddie Mac (Federal Home Loan Mortgage Company) foi criada em 1970, no governo Nixon, para expandir o mercado secundário de hipotecas. Esse tipo de empresa tem apoio implícito do governo, e foi para honrar esse compromisso que o Tesouro interveio agora. Mas em 1999, no fim do governo democrata de Clinton, as duas empresas sofreram fortes pressões para dar empréstimos a famílias de baixa renda, mesmo sem condições de crédito.

Há quem veja nessa ação política populista do governo Clinton o começo da bolha imobiliária que só agora estourou. O surgimento dos chamados "junk bonds", ativos de alto risco mas elevada rentabilidade, criou o cenário para mais especulação.

Há também quem defenda a idéia de que ganância e "especulação" são parte importante do capitalismo. A década de 80 do século passado foi marcada pela desregulamentação do mercado financeiro, que, com as rédeas soltas, produziu novos produtos financeiros e espalhou pelo mercado o lema "Greed is good" ("Ganância é bom") de Michael Milken, um dos financistas mais controversos do moderno capitalismo, criador dos "junk bonds".

Considerado gênio por muitos, condenado à prisão por fraudes financeiras, Milken cumpriu apenas 22 meses de uma condenação de dez anos e está solto desde 1993, mas proibido de atuar no mercado. Ainda é um dos homens mais ricos do mundo, com uma fortuna de cerca de US$2 bilhões, e ganhando dinheiro, investindo agora no setor de educação.

Se pode ser verdade que não existe pura e simplesmente ganância, mas necessidade natural de acumulação do capital, não é menos verdade que o sistema financeiro precisa de uma maior regulação para defender o capitalismo de crises como a que está se desenrolando.

Nos últimos quatro ou cinco anos houve, segundo o professor de Harvard Ken Rogoff, "o mais forte ciclo de expansão da economia mundial, do comércio internacional e da liquidez global da história moderna", e as instituições financeiras ficaram sob forte pressão para obter resultados diante do apetite por risco do mercado. A redução generalizada das margens de segurança não foi percebida pelas agências de risco, que agora, na nova regulamentação, não poderão mais receber dinheiro das empresas que avaliam.

O presidente da Moody"s, uma das principais agências de risco, Raymond W. McDaniel Jr., já admitira em janeiro deste ano, na reunião do World Economic Forum, em Davos, que as agências de risco têm boa parte da culpa pela crise de crédito.

Disse que "houve uma deterioração nas informações geradas pelas instituições financeiras, tanto em veracidade quanto em extensão", o que fez com que o modelo de análise com que trabalham ficasse superado.

De lá para cá, pouca coisa mudou, no entanto. A empresa japonesa New City Residence, de investimentos imobiliários, quebrou quando ainda era avaliada pela Moody"s como "triple A". O mesmo erro aconteceu com a AIG seguradora e o Lehman Brothers.

Tensão


Eliane Cantanhêde
DEU NA FOLHA DE S. PAULO

BRASÍLIA - EUA, Alemanha e todo o mundo já admitem claramente um crescimento menor em 2009.

Dificilmente o Brasil escapa dessa, apesar de o ministro Guido Mantega (Fazenda) insistir num índice de 4% a 4,5%. É alegre demais.

Num ambiente de recessão internacional, a oferta de dinheiro, os negócios em geral e a demanda por commodities minguam. Como o Brasil vai passar ileso? No setor agrícola, já se fala de uma queda na produção de 40%. Não é pouco.

O país pegou a onda positiva mundial em boas condições internas, e o governo Lula aproveitou bem o momento. Houve aumento de investimentos, de empregos e de salários de várias categorias. Agora o clima é outro, muito diferente. E, como nas Bolsas, quem ganhou ganhou, quem não ganhou vai ficar chupando o dedo.

Bancários e policiais civis paulistas, por exemplo, decidiram exigir sua fatia do bolo exatamente quando a festa está acabando. É possível que haja muitas outras categorias assim, que viram os bons índices, ouviram o estouro da champanhe e agora queiram forçar a barra e a porta. Mas tarde demais.

No caso de São Paulo, há uma mistura explosiva de economia, política e eleição, perceptível à distância. Não é nem trivial nem aceitável policiais armados tentando cercar um palácio de governo que são pagos para defender. E o que dizer de um confronto entre policiais civis e policiais militares em praça pública, envolvendo viaturas oficiais e bombas de gás lacrimogêneo? Imagens de guerra na TV.

A crise financeira chegou às Bolsas, ao real, às empresas, à confiança. A eleição municipal descamba para golpes baixos. Bancários parados. Policiais civis e militares se estranhando em praça pública. E novas greves devem vir por aí. O clima é tenso. Convém aos que tenham responsabilidade pública parar de dar versões cor-de-rosa e a todos os lados que adiem, "sine die", a disputa sangrenta de 2010.

A solução da crise está longe


Luiz Carlos Mendonça de Barros
DEU NA FOLHA DE S. PAULO

Somente com o tempo as intervenções do setor público levarão a uma situação de maior tranqüilidade

A CRISE financeira continua a piorar. Em junho do ano passado -início cronológico dos distúrbios que vivemos hoje- a crise parecia localizada no segmento dos empréstimos hipotecários a pessoas de baixa renda nos Estados Unidos. Nada que realmente pudesse ameaçar o sistema bancário norte-americano e, muito menos, se transformar em uma crise financeira mundial.

Mas, sabemos hoje, a questão do chamado "subprime" era apenas a ponta de um monstruoso iceberg gerado ao longo dos anos de bonança que o mundo vivia então.

Esse iceberg foi revelando lentamente toda a sua dimensão. Na medida em que ele crescia, o mercado foi voltando no tempo e buscando na história exemplos que pudessem servir como guia para seu enfrentamento. Mas esse exercício analítico simples, quase simplório, mostrou-se insuficiente para estabelecer um padrão de correção dos preços dos ativos financeiros. A realidade era sempre pior do que os mercados imaginavam, principalmente depois que o crescimento econômico mundial começou a enfraquecer na virada do semestre.

A partir daí o iceberg começou a parecer cada vez mais com o que provocou a catástrofe de 1929 e a recessão dos anos seguintes. Apesar das ações pontuais do Federal Reserve (o BC dos Estados Unidos) e do governo norte-americano, a crise atingiu segmentos do mercado considerados como os mais seguros e funcionais. Percebeu-se, então, que não se tratava mais de uma crise de confiança em algumas instituições ou ativos financeiros de maior risco, mas de uma crise sistêmica e de dimensão mundial. O mês de setembro passado pode ser identificado como o momento em que essa mudança de percepção chegou aos mercados e aos governos. Basta olhar para o comportamento dos mais variados mercados para chegar a essa conclusão.

Hoje, os terríveis contornos desse monstro financeiro são visíveis e suas conseqüências no mundo real podem ser sentidas por todos, inclusive no Brasil. Finalmente as ações dos governos chegaram a um nível de coordenação e coragem em linha com a dimensão dos problemas que vamos enfrentar em 2009. Mas não havia de forma clara um roteiro consistente para enfrentá-los. Além disso, faltava uma percepção política da verdadeira dimensão da crise que se aproximava e que exigiria uma coordenação internacional na busca de instrumentos para sua solução. Por isso, as decisões foram sendo tomadas com atraso e sempre no âmbito de cada país e, portanto, com reduzida eficácia.

Esse caminhar sem consistência está evidente nas várias formas de intervenção do setor público para que se tente devolver um mínimo de racionalidade aos mercados. O modelo norte-americano foi substituído pela forma inglesa e, agora, a Suíça se utiliza de outro desenho para lidar com os problemas de seus dois grandes bancos. Certamente ao longo das próximas semanas veremos outras decisões que nascerão a partir da reação dos mercados aos pacotes já em andamento. Mas o fim dessa crise está ainda longe de ser alcançado e somente com o tempo as intervenções do setor público levarão a uma situação de maior tranqüilidade. Não tenho dúvidas de que apenas após a eleição do novo presidente norte-americano entraremos no último estágio dessa crise.

E aqui temos um fator externo que certamente vai ajudar muito. Na crise de 1929, o presidente republicano que exercia o poder só foi substituído por Roosevelt três anos depois do colapso de Wall Street; agora, faltam apenas três semanas...

LUIZ CARLOS MENDONÇA DE BARROS, 65, engenheiro e economista, é economista-chefe da Quest Investimentos. Foi presidente do BNDES e ministro das Comunicações (governo Fernando Henrique Cardoso).

O QUE PENSA A MÍDIA

Editoriais dos principais jornais do Brasil
http://www.pps.org.br/sistema_clipping/mostra_opiniao.asp?id=1120&portal=

Truques da numerologia eleitoral


Wanderley Guilherme dos Santos
DEU NO VALOR ECONÔMICO


A redução da taxa de ansiedade do eleitorado e dos candidatos já vencedores deve muito à eficiência do Tribunal Superior Eleitoral na totalização e divulgação do resultado praticamente final das eleições municipais. Sobrou a angústia partidária de eleitores e candidatos de pouco mais de 20 cidades com população acima de 200 mil habitantes. A nota triste, como sempre, é o desapontamento dos perdedores, cuja explicação para o fracasso varia tanto quanto os motivos que levaram os eleitores a recusá-los.

Como de costume, os números brutos dão lugar a agregações e cálculos de porcentagem muito interessantes. Todas as descrições em termos proporcionais são, na maioria, tecnicamente legítimas. Por exemplo, agregar o número de prefeituras ganhas por partido em nível estadual, ou mesmo regional; outra forma seria somar os votos nominais dos partidos, por Estado ou região, e verificar a quanto correspondem do total de votos válidos do Estado ou região. Não é surpreendente que os resultados da segunda operação ordenem os partidos vencedores de modo diferente da ordenação obtida com o primeiro cálculo. E são inúmeras as formas válidas de agregar dados brutos e dispô-los em números proporcionais.

Ocorre algo semelhante quando as comparações entre partidos se fazem por consulta a resultados de eleições anteriores, em busca de tendências. Implico com a denominação de "tendência" aplicada somente a quatro resultados, as eleições de 1996, 2000, 2004 e 2008. Exceto em casos absolutamente consistentes, e ainda assim cautelosamente, é ilegítimo, ou, pelo menos, bastante ousado, afirmar que a série de quatro resultados revele tendências. Darei um exemplo.

Unânime é a apreciação de que o PMDB saiu largamente vencedor na conquista por prefeituras, o que é correto, e, diz-se, renasceu. Bem, conforme os melhores dados que me são disponíveis (11/10) sobre número de vereadores eleitos a história é outra. Em 2008, o PMDB elegeu cerca de 8.492 vereadores, número não muito diferente das eleições de 2004, quando elegeu 8.310 candidatos municipais. Se o desempenho de 2008 for comparado com o de 1996, porém, que resultou em 13.091 vereadores eleitos, o feito deste ano não significa, em qualquer interpretação sóbria, um renascer.

A bem da verdade, dos quatro maiores partidos aqui considerados, PMDB, PSDB, PT e DEM, todos, à exceção do PT, obtiveram um sucesso bem mais modesto do que em 1996. Mas todos, igualmente, exceto dois, alcançaram resultados oscilantes. Houve eleição em que o resultado foi superior ao da eleição anterior. As exceções foram o PT, cujo número de vereadores eleitos é crescente, e o DEM, cujos resultados são sistematicamente inferiores à eleição anterior. Vale esclarecer que o total de vereadores eleitos pelo PT (4.173), em 2008, ainda foi inferior ao total conquistado pelo DEM (4.821). Na verdade, extraordinários foram os resultados, já nas eleições para prefeitos, do PC do B e do PSB. Ainda assim, eu hesitaria em diagnosticar tendências com base nesses resultados.

Existe uma medida, que chamo de "taxa de produtividade relativa", de aplicação muito simples. Verifica-se o número de candidatos vitoriosos e o tomamos como proporção do número de candidatos com que o partido concorreu. Assim, se um partido apresentou dez candidatos e elegeu cinco, obteve uma razoável produtividade relativa de 50%. Se outro partido elegeu igualmente cinco candidatos, mas havia concorrido com apenas sete, sua produtividade relativa foi de 71%, bem mais elevada do que a do outro partido.

É claro que há limites para a interpretação dessa taxa, pois um partido que elege um candidato, tendo concorrido com dois, obterá uma taxa de produtividade relativa igual a 50%, o que, obviamente, não o coloca no mesmo escalão do partido lá de cima.

A correção para essa dificuldade consiste em medir a "produtividade bruta" dos partidos, revelada pelo número de candidatos eleitos dividido pelo total de cadeiras em disputa. Claro, no exemplo acima, a posição do partido que elegeu apenas um candidato não terá a mesma produtividade bruta daqueles que elegeram cinco. Mas os dois que elegeram cinco candidatos, cada um, terão o mesmo peso, medido pela "produtividade bruta" de ambos.

Tenho essas taxas calculadas para a Câmara dos Deputados e Assembléias Legislativas, por Estado e incluindo todos os partidos, desde as eleições gerais de 1986. Por esses cálculos se descobre que o PC do B, por exemplo, seguia a mesma estratégia do ex-PFL: apresentar poucos candidatos e concentrando neles seus votos.

Durante algum tempo, a produtividade relativa do DEM não ficou muito atrás de sua produtividade bruta, enquanto dispôs de um eleitorado relativamente fiel. À medida que seu eleitorado diminui, a estratégia deixa de operar e, embora obtendo uma produtividade relativa razoável, seu peso bruto na Câmara dos Deputados começa a decrescer. O PC do B, sempre com uma produtividade relativa elevadíssima, mantinha um perfil de pequeno partido, embora, por sua disciplina, com freqüência desempenhava papéis muito importantes nas coalizões parlamentares.

Os exercícios de estatística descritiva e a aplicação de algumas medidas aos resultados eleitorais são úteis ao organizar, para o eleitorado, a enorme quantidade de dados que as urnas produzem. E cada eleitor tem a medida de sua preferência, da vitória do candidato em que votou às esperanças que aumentam ou diminuem com o resultado agregado que lhe chega.

A interpretação dessas simples estatísticas é que são elas. O que os números, brutos ou porcentuais, têm de inteligibilidade, as interpretações, em alguns casos, só são convincentes aos iniciados em lógicas tortuosas. Minha opção é pelo bom senso, porque, antes de tudo e todos, quem entende de eleição é o eleitor. Segundo, porque só o eleitor sabe por que votou como votou. Terceiro, porque eleitor não tem dogmático compromisso com sua biografia eleitoral. Tanto pode manter a mesma escolha da eleição anterior (mesmo quando se trata de dois turnos) como pode mudá-la sem aviso e sem prestar satisfação a ninguém.

Em geral, o que melhor prevê o resultado de uma eleição são os resultados da eleição imediatamente anterior. Grandes mudanças não são o padrão normal de eleições. Em segundo lugar, existe o desempenho de quem ocupa o cargo em disputa: se o eleitor está satisfeito, tende a segui-lo, se não, votará adversariamente. Esses padrões não são inflexíveis, mas são um bom ponto de referência para o futuro próximo. Finalmente, a capacidade de persuasão do candidato independe de suas propostas de governo. Ponto final. É o resultado dessa alquimia do eleitor que os institutos de pesquisas buscam captar, nem sempre com sucesso. Não se trata, em geral, de deficiência ou má-fé dos institutos. É porque, como disse, quem entende de eleição é o eleitor.

Aqui não foram considerados os fatores econômicos e os intermediários de votos, a posição dos meios de comunicação e algumas outras variáveis que interferem muito nas campanhas eleitorais. Mas sobre essas os eleitores não têm o menor controle.

Wanderley Guilherme dos Santos, membro da Academia Brasileira de Ciências, escreve quinzenalmente neste espaço.

Crise financeira e política de mau gosto


Maria Cristina Fernandes
DEU NO VALOR ECONÔMICO


O agravamento da crise americana conseguiu de uma vez por todas desidratar o noticiário sobre o penteado de Sarah Palin, o comprimento de sua saia e a gravidez de sua filha. Que o sistema financeiro americano tenha precisado entrar em colapso para que isso acontecesse, é uma pista dos danos políticos provocados por décadas de exuberância financeira desregulamentada.

Foi sob os ditames dessa liberalização que sucessivos governos, por toda parte, em maior ou menor grau, adaptaram promessas de campanha, subjugaram compromissos eleitorais e impuseram limites à democracia.

O mundo que escapou do totalitarismo e emergiu do pós-guerra sob os ventos do sufrágio universal e da livre associação política viu crescer nas últimas três décadas o corolário da eficiência do mercado em detrimento da capacidade distributiva do Estado.

O enfraquecimento dos partidos e a perda da capacidade de mobilização da política foi uma decorrência, em grande parte, dessa limitação. Vem daí a letargia com que partidos e parlamentos reagem à crise.

As campanhas políticas se transformaram no sinal mais evidente desse esvaziamento e no instrumento mais abundante da alienação do eleitorado em relação à disputa pelo controle do Estado.

Foi assim que as campanhas eleitorais se transformaram no palco, por excelência, da revelação das preferências sexuais dos políticos, de seus casos extraconjugais e de seus filhos bêbados e bastardos.

Criou-se até a ideologia do direito de saber, da necessidade de homens e mulheres que optassem pela vida pública terem de estar preparados para uma vida de páginas abertas, ainda que essa regra, aqui e ali, tenha sido desigualmente aplicada aos competidores.

Em países de arraigada tradição avessa à exposição da vida íntima dos políticos, como a França, onde se guardou, por décadas, como segredo público, a existência da filha bastarda de um presidente, o eleitorado se viu cativo, na última campanha presidencial, do triângulo amoroso que movimentou a escolha de Nicolas Sarkozy.

A premiação de Paul Krugman com o Nobel de Economia deveu-se à sua teoria sobre o comércio internacional, explicou a academia sueca. Mas não deixa de ser sinal de novos tempos, que a escolha tenha recaído sobre um feroz crítico da política que a meca da liberalização dos mercados transformou em espetáculo de modas e costumes.

Sua crítica estendeu-se à imprensa que tornou-se sócia majoritária deste espetáculo, como, há cinco anos, já chamara atenção o jornalista Luiz Weis, com o artigo "O melhor crítico de mídia da América" sobre suas colunas no "The New York Times".

Em coluna de 2003, intitulada "Resoluções de Ano Novo", faz recomendações aos jornalistas. Algumas delas:

- "Não fale sobre roupas. A menos que você seja um repórter de moda, a obsessão com roupas é um insulto à inteligência de seus leitores".

- "Concentre-se nas propostas dos candidatos"

- "Cuidado com as anedotas"

- "Observe os antecedentes dos candidatos"

- "Não se deixe levar pelo histrionismo político"

- "Não é com vocês"

Como em todas as outras recomendações, nesta última o economista também adiciona esclarecimentos: pede que os jornalistas não se deixassem pautar pela sua relação pessoal com os políticos ao se reportarem sobre eles.

Numa coluna mais recente, no início da campanha Obama x McCain, cutuca a dificuldade de o discurso democrata politizar a crise: "Vasculhem o website da campanha de Obama e vocês encontrarão muitos detalhes sobre suas políticas. E as propagandas eleitorais trazem muitas propostas bem específicas - uma quantidade exagerada, na minha opinião. Não. O problema não é a falta de especificidades - mas de paixão".

Obama ainda não parece apaixonado, mas a crise é grande o suficiente para que a hipótese de a Presidência lhe escapar das mãos pareça remota. Na última coluna, dedicada a elogiar o primeiro-ministro inglês Gordon Brown, pergunta-se por que a saída para a crise foi oferecida pelo governo inglês e não pelo americano. E responde: porque o governo americano tem como princípio que o "privado é bom e o público é ruim".

Não é, certamente, leitura de cabeceira do partido de oposição brasileiro mais atento à crise. Além de estar às vésperas de eleger o prefeito da maior cidade brasileira, o DEM também é o único que tem levado propostas ao Congresso em resposta ao vendaval financeiro.

Sugeriu que o fundo soberano se vinculasse ao Banco Central e não ao Ministério da Fazenda e também ressuscitou a proposta de autonomia do Banco Central. Só faltou trazer de volta a sua idéia de privatizar a Petrobras e os bancos públicos, as grandes salvaguardas do país nessa crise. Mais difícil é compreender por que, com um adversário desses, o PT ainda perde tempo com perguntas de mau gosto.

Maria Cristina Fernandes é editora de Política. Escreve às sextas-feiras

O pacto e a Constituição de 88


Marco Maciel
DEU NO JORNAL DO COMMERCIO (PE
)


A passagem, de forma pacífica, do regime autoritário para o Estado democrático de Direito, com a promulgação da Constituição de 1988, teve início – fato pouco percebido pela sociedade brasileira – após amplo acordo político intitulado "compromisso com a nação". Esse pacto pode ser considerado um dos mais importantes de nossa história republicana. Dele nasceu a chapa Tancredo Neves/José Sarney, eleita através de Colégio Eleitoral.

Não é exagero afirmar que a Constituição de 1988, batizada Constituição Cidadã pelo presidente Ulysses Guimarães, ofereceu ao povo brasileiro a mais ampla Carta dos direitos individuais e coletivos e o mais completo conjunto de direitos sociais que o País conheceu.

Contudo, alguns aspectos configuram desafios ainda não resolvidos na atual Constituição como a existência de muitos dispositivos a reclamar leis que lhes dêem eficácia plena. A propósito, convém recordar que, promulgado o diploma constitucional, o Ministério da Justiça realizou levantamento de que resultou a publicação do livro Leis a elaborar. Nele, à época, foram relacionados, frise-se, 269 preceitos a exigir regulamentação.

As imperfeições derivam, observo como constituinte, do afã de tudo regular, conseqüência talvez da crença na onipotência do Estado. Daí a inserção de matérias inassimiláveis em qualquer Constituição, algumas já corrigidas, como a fixação dos juros bancários.

Não podemos deixar de exaltar as virtudes da Constituição de 1988. Os capítulos dos direitos políticos e dos partidos políticos, por sua vez, constituem inovação a merecer encômios, pois só de maneira indireta os textos constitucionais anteriores tratavam da matéria. O título IV, relativo à organização dos poderes, é denso e o mais completo no que diz respeito ao Poder Legislativo. Ressalve-se, contudo, o alusivo às medidas provisórias, que ampliam a nossa insegurança jurídica por não observarem freqüentemente os pressupostos de relevância e urgência.

O Poder Judiciário está consagrado em nossa Constituição ao discriminar as funções do Ministério Público, da advocacia da União e da Defensoria Pública. O mais criativo foi, sem dúvida, o estabelecimento dos juizados especiais, cíveis e penais, que aproximaram a Justiça da população. A discriminação de rendas entre a União, os Estados, o Distrito Federal e os municípios caracteriza, com propriedade, o que se convencionou chamar de "federalismo compartilhado" ou "federalismo solidário", cuja prática, todavia, exige lei complementar prevista no parágrafo único do artigo 23 da Constituição.

Com relação às finanças públicas, elas se beneficiaram de reconhecidos avanços, como a Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) e a proibição de práticas antigas, como a vinculação de receita de impostos, a abertura de créditos suplementares ou especiais sem prévia autorização e a instituição de fundos sem o mesmo requisito. A ordem econômica consagrou princípios vitais. A tutela dos direitos sociais está devidamente resguardada, inclusive pelo princípio de proteção das minorias, como crianças e adolescentes, idosos e índios, e o estabelecimento da igualdade étnica. A ampla cobertura da Previdência Social é, indubitavelmente, um dos maiores programas de proteção social e distribuição de renda de todo o mundo.

Urge, agora, completar a obra iniciada, que pressupõe a realização das reformas políticas. Sem elas não se assegura solidez às instituições brasileiras indispensáveis ao pleno travejamento da democracia.

» Marco Maciel é senador pelo DEM-PE e membro da Academia Brasileira de Letras