segunda-feira, 17 de novembro de 2008

O PPS e a candidatura de José Serra


Luiz Sérgio Henriques
Editor do site Gramsci e o Brasil

O que esperam muitos filiados do PPS e, também, amigos e simpatizantes do partido, veteranos filiados do PCB, que ainda o têem como referência na hora de tomar uma decisão política? A pergunta ganha nova atualidade diante das eleições de 2010, cujo cenário já começa a se armar claramente diante dos nossos olhos.

Pelo menos um ponto é certo: a posição do PPS, nesta conjuntura que está destinada a se acelerar e até a se tornar dramática com a sobreposição da crise econômica global, não pode ser meramente reativa às propostas do PT e do bloco ora no poder. E, também, não deve carregar o selo de adesão passiva a qualquer uma das candidaturas que têm se apresentado no campo oposicionista, especialmente as dos governadores José Serra, de São Paulo, e Aécio Neves, de Minas Gerais. Ao contrário, segundo a expectativa de muitos amigos e simpatizantes, o PPS deve se fazer portador de idéias e convicções próprias de uma esquerda moderna, democrática; um tipo de esquerda, aliás, que conhece penosa construção no nosso país, mas que ocasiões como a de 2010, além do significado eleitoral óbvio, podem contribuir para que vá adiante nas condições possíveis.

Por se pretender uma esquerda democrática, consciente dos seus deveres de obediência à Constituição republicana, o PPS acertadamente há muito se colocou, com autonomia, no campo das oposições. Sua ação, ainda que modesta, foi vista muitas vezes ao lado do PSDB, a quem não considera como um partido “neoliberal” pura e simplesmente; e ao lado do DEM, um partido que, com distantes raízes no regime militar, credenciou-se ao jogo democrático, representando legitimamente setores moderados e mesmo conservadores da nossa sociedade.

O pequeno PPS teve, assim, a valentia de se situar na oposição, num país em que, tradicionalmente, os recursos do poder, se não podem tudo, podem muito, inclusive interferir pesadamente na vida partidária, dessangrar os partidos de oposição, tornar irrelevante, ou quase isso, a função do Parlamento.

E foi assim que, antes mesmo dos episódios conhecidos como “mensalão”, o PPS descolou-se do bloco no poder e depois denunciou, na medida das suas forças, essa tentativa de corrupção institucional – talvez a pior das corrupções. Todo o episódio, de resto, ainda está sub judice, e cabe ao Supremo Tribunal Federal pronunciar-se sobre ações e personagens que o procurador-geral da República houve por bem arrolar como participantes de “sofisticada organização criminosa”.

Não se trata de condenar e nem mesmo desprezar todo um partido com a importância e a complexidade do PT, cuja chegada ao poder federal consagrou uma democracia efetivamente plural e fundada na alternância, sem nenhum tipo de exclusão. Mas o fato é que há diferenças com este partido e sua cultura política, e estas diferenças se consubstanciaram, por exemplo, em 1988, quando o então PCB aderiu com convicção íntima à Carta da democracia e fez dela o seu programa, o seu projeto mais fundamental para a sociedade brasileira. Como sabemos, não é o caso do PT, que manteve e mantém relações atribuladas com a Carta de 1988.

O PPS, felizmente, não se deixou absorver pelo PSDB durante os dois mandatos de FHC. Também o PSDB, tal como o PT, a seu modo era portador de idéias de ruptura e negação do passado, com as quais não concordávamos inteiramente. Havia se esgotado o nacional-desenvolvimentismo da era Vargas, reinterpretado pelos militares durante o regime de 1964? Sem dúvida alguma. Na verdade, era preciso, e ainda é, equacionar os termos de um novo tipo de desenvolvimento, cuja insubstituível premissa básica é a plena vigência das instituições democráticas, que, aliás, parte não desprezível da esquerda no poder ainda considera meramente instrumentais. Mas consideramos que os governos de FHC não cumpriram plenamente aquela tarefa de redefinição do desenvolvimentismo e, muitas vezes, até levaram-na adiante de modo pelo menos equívoco. Eram tempos de irrefletida autocelebração dos mercados...

Então, muitos simpatizantes do PPS viram favoravelmente a posição autônoma do partido em relação aos anos FHC. Sabem que o partido criticou duramente a manobra da reeleição, uma indefensável alteração constitucional feita sob medida para os detentores do poder. Sabem também, em retrospecto, que os dois governos FHC, se não representaram de modo algum um neoliberalismo extremado à Thatcher ou à Reagan, pecaram por “economicismo”, especialmente o núcleo duro malanista, que marcou de ponta a ponta os dois períodos presidenciais de FHC.

Mas, ao lado deste núcleo econômico liberal e em conflito latente ou aberto com ele, havia uma autocrítica prática, um contraponto constante representado pelo então ministro da Saúde, José Serra. E convém ao PPS, por sua trajetória, por seu apego à democracia e aos problemas históricos do desenvolvimento, associar-se a essa autocrítica prática, escorada numa sólida visão cepalina, que sobreviveu e se renovou durante os anos da reforma liberal: esta posição é possivelmente o que o país tem de mais consistente para enfrentar tempos particularmente difíceis, como os que vão se abater em cheio sobre o próximo mandato presidencial.

Por isso, o que esperamos do PPS é uma firme e imediata tomada de posição pró-Serra. Não se trata de hostilizar Aécio Neves, que de fato não pertence à “direita neoliberal”, ainda que tenha posições menos nítidas do que José Serra quanto às políticas pró-ativas de Estado. Ao contrário, Aécio deve ser incorporado por todos os títulos à coligação oposicionista, representativo, como é, de um estado tão importante na política e na tradição republicana. Além do mais, ninguém pode deixar de valorizar o recente movimento de Aécio em direção ao PT de Belo Horizonte, ocorrido por ocasião das últimas eleições municipais. É uma ação que contribui para a necessária normalização da dialética democrática entre governo e oposição: governar não é ignorar ou tentar suprimir a oposição; e fazer oposição não é contar “bravatas”, o que só contamina os costumes políticos.

Mais fundamental ainda é o papel que o PPS deve ter no sentido de contribuir para o constante aggiornamento do programa de Serra, que não pode se ver reduzido a uma “eficiente” gestão tecnocrática da economia. O novo desenvolvimentismo a que aspiramos não pode mais prescindir, sob pena de degradação do sistema produtivo e das condições de vida da população, nem de um forte compromisso de combate à exclusão social nem da assimilação crítica dos já incontornáveis temas ambientais. Os níveis de pobreza são um desmentido acintoso às nossas pretensões de fundar uma original civilização brasileira, e sua redução a um patamar pelo menos razoável não pode mais ser adiada para uma “segunda etapa”, depois do saneamento econômico. E o ambiente não é mais um “custo” econômico, mas sim uma oportunidade ímpar para a pesquisa científica e para a criação de novos modos de viver, produzir e consumir, requeridos neste momento de crise civilizacional.

Há todo um enorme contingente de jovens, um enorme leque de homens e mulheres da cultura e da técnica a serem atraídos por uma perspectiva concreta de desenvolvimento e democracia. Diga-se de passagem que a recente campanha de Fernando Gabeira, no Rio de Janeiro, demonstrou o potencial de participação que atualmente está quase todo à margem da ação política convencional e pode se perder nos descaminhos da apatia e da “antipolítica”. O PPS apoiou Gabeira, participando do que veio a ser, mais do que uma campanha convencional, uma feliz tentativa de reinvenção da política, que pode ter implicações nacionais já agora em 2010.

Esperamos que o tenha. E esperamos que a imaginação progressista do país, que nunca foi pequena, encontre no modesto PPS um canal privilegiado para se manifestar, enriquecendo decisivamente a candidatura e o projeto nacional em torno de Serra, contra qualquer tentativa anacrônica de recuperar o nacional-desenvolvimentismo em chave autoritária.

DISSERTAÇÕES SOBRE A REVOLUÇÃO BRASILEIRA


Raimundo Santos
Professor da UFRRJ/CPDA


Este livro é uma nova reunião de textos caipradianos publicado após muitos anos da última coletânea. Estamos novamente diante, num único volume, do outsider interpelador das esquerdas brasileiras. Caio Prado viveu como um grande intelectual comunista, sem ter o seu marxismo político plenamente apropriado pelo PCB.

Agora, neste lançamento de Dissertações sobre a Revolução Brasileira, o que podemos trazer do clássico para a UFRRJ? O seu estilo de pensamento. Podemos lembrar a equação com que Caio Prado antecipara o nosso mundo rural ora modernizado. Um mundo, como dizia ele, marcado por grandes setores e um largo contingente de "empregados agrícolas", dinamizador da economia nacional à medida que nele se enraizasse associativismo permanente (sindical) e se estendesse a proteção de direitos.

Por possuir uma interpretação do Brasil, o clássico comunista permanece na bibliografia e na nossa melhor tradição de pensar o país. Recordemo-lo hoje aludindo ao sentido maior da sua publicistica. Sem domínio teórico da circunstância brasileira – este é ponto do nosso marxista político –, os protagonistas que pretendem operar mudanças tendem ao agir errático, quando não pernicioso, como, aliás, se vê em não poucas cenas da vida nacional dos últimos tempos.

A organização do volume nas seções "A Formação Social", "A Revolução na Periferia", "A Política Contemporânea" e "A Reforma do Mundo Rural" procura mostrar as três principais dimensões que se cruzam na trajetória de Caio Prado Jr. Além de incluir textos relativos às mais conhecidas (as do historiador e do intérprete do nosso mundo rural), esta coletânea traz escritos do teórico do reformismo brasileiro e do analista de conjuntura que também foi Caio Prado, principalmente nas páginas da sua saudosa Revista Brasiliense.

SOBRE O LIVRO: Caio Prado Jr., Dissertações sobre a Revolução Brasileira, org. Raimundo Santos; ed. Brasiliense e Fundação Astrojildo Pereira, São Paulo-Brasília, dezembro de 2007.
[
Livrariabrasiliensee@editorabrasiliense.com.br; fundação@astrojildo.org.br].

* Texto lido na Tarde de Autógrafos promovida pela UFRRJ, em 12/11/08, no contexto da I Feira de Editoras Universitárias do Rio de Janeiro.

De olho na crise


Wilson Figueiredo
Jornalista
DEU NO JORNAL DO BRASIL

Os Estados Unidos acabam de mostrar nas urnas que são o país onde tudo é possível (inclusive no bom sentido), mesmo que a título precário. Foi o próprio Barack Obama quem se lembrou da frase a que sua vitória deu novo e mais amplo sentido. A dois anos de distância da sucessão presidencial, ao brasileiro de classe média basta por ora a certeza de que as reformas de fundo político são viáveis e, portanto, dignas de prioridade. Que se apresentem. As mais urgentes viriam a calhar nos dois anos que faltam para a sexta sucessão presidencial pelo voto direto. Será marca histórica. Sob a Constituição de 1946, chegamos a quatro, e a crise não esperou mais para fazer o serviço sujo. Falta consolidar a etapa da eleição presidencial, acrescida (em operação de contrabando político) do segundo mandato a ser removido na limpeza ética, sempre adiada.

Com a crise financeira ninguém contava, nem mesmo os pessimistas exacerbados desde que o presidente Lula, todos os meses, esbanja simpatia da opinião pública. Não estavam preparados para tanto. Já os favorecidos não estavam se sentindo bem desde que a História, depois de presenteá-los com a bonança do capitalismo por cima das fronteiras, lhes preparou a cilada. A crise financeira– de fora para dentro e de dentro para dentro – pode não se dar bem e estranhar a sucessão presidencial de 2010. Para afugentar sombras do passado, Lula foi espairecer no exterior. Ao contrário dos Estados Unidos, onde tudo é possível, tudo no Brasil é mais imprevisível do que possível. A crise financeira veio de fora para dentro do país, e gerou uma incógnita: quem responde por ela? Quem vai enxotá-la?

O presidente Lula já deu a sua contribuição ao despachar para as calendas gregas o terceiro mandato. O resto é com os políticos que vivem a mais baixa cotação na opinião pública desde que as pesquisas passaram a fazer parte do equipamento democrático. O brasileiro gostaria mesmo era de verificar que reformas no Brasil não são inviáveis. E, se não fosse pedir demais, conhecer a razão pela qual tantos políticos são a favor das reformas e, mesmo assim, na hora de passar do cochicho ao voto em plenário, as propostas são historicamente empilhadas. Servem apenas para solfejos de oratória parlamentar fora de moda porque acabam abatidas em pleno vôo por fatores aleatórios. O exemplo clássico, digno de figurar nos manuais, é a dificuldade de relacionamento do brasileiro com o parlamentarismo, vítima da eterna unanimidade disposta a barrar mais democracia do que dispomos.

Com esta crise financeira ninguém contava, exceto os pessimistas de sempre e os oposicionistas eventuais, aflitos para verem o presidente Lula pelas costas e o despejo do PT. Por sua vez, Lula & Cia estavam certos de que a História, depois de bonificá-los com as facilidades do capitalismo neoliberal, lhes reservasse uma dessas. A questão foi apresentada de fora para dentro e armou uma armadilha: quem responde pela crise? Quem vai providenciar a retirada da intrusa antes que a sucessão presidencial se precipite?

É certo que as duas – a crise financeira de fora para dentro e a sucessão de dentro para dentro – poderão estranhar-se antes da hora. Ao contrário dos Estrados Unidos, tudo entre nós é mais imprevisível do que possível. O Brasil não convidou a crise financeira para passar por aqui a caminho dos países que se prepararam para merecer sua presença ilustre. Nem pensar em nova doutrina continental, tipo "um por todos e todos pela crise". Lula tratou de ficar de fora sem entender, depois de fazer o dever de casa, o papel que lhe foi atribuído. Faz de conta que a crise não tem a ver com o Brasil nem com ele. Considera seu governo aparelhado para o que der e vier, se é que chegará por aqui. O que está na agenda é a sucessão presidencial com voto direto, pela sexta vez sem registro de contestação legal nas cinco anteriores. É saldo histórico. Por enquanto, os dois lados – governo e oposição – vão se comportando à altura (que não dá vertigem) da crise sem densidade dramática. O presidente Lula vai deixar de fazer hora extra no exterior e empenhar-se aqui mesmo em regime de dedicação exclusiva. Quem sabe em favor das reformas políticas para as quais o tempo é suficiente, se não faltar vontade. Com a sucessão no horizonte, um toque dramático poderá devolver à política a temporada de grandes espetáculos.

Estado-arena e Estado-sujeito


Fábio Wanderley Reis
DEU NO VALOR ECONÔMICO

Tenho tomado às vezes o tema da autonomia do Estado e as ambigüidades que envolve. Uma primeira delas é o que há de equívoco quanto ao reclamo de que o Estado seja ou não seja autônomo: o ideal de "soberania popular", supondo um "povo" homogêneo, repele a idéia do Estado autônomo, mas o reconhecimento da desigualdade social justifica a busca de autonomia do Estado, de forma a evitar que ele se torne o instrumento dos interesses poderosos. Esse espaço de problemas se superpõe parcialmente ao recoberto pela distinção entre o Estado como "sujeito", que estabelece e persegue com um grau importante de autonomia os seus próprios fins, e o Estado como "arena", em cuja aparelhagem os interesses diversos da sociedade se fazem representar e produzem de maneira mais problemática os fins a serem perseguidos pelo Estado, como resultante de sua interação institucional e democrática. Um bom "Estado-arena" é condição do bom "Estado-sujeito", conformado de modo a permitir que o grau necessário de autonomia redunde na busca efetiva do interesse público. Em todo caso, o que está em jogo aqui é a relação da máquina geral do Estado com os interesses que se dão na sociedade, e os perigos a serem evitados correspondem ao que alguns chamaram de "pretorianismo", indicando o jogo de vale-tudo em que forças diversas usam recursos de qualquer natureza para promover no Estado seus interesses próprios ou, eventualmente, implantam a ditadura e o controlam de vez pela força.

Mas o Brasil do momento permite apreciar um outro sentido que a expressão "Estado-arena" pode adquirir: aquele em que setores diversos da própria aparelhagem do Estado, e até diferentes partes de cada um de diversos setores, passam a constituir-se em interesses antagônicos e a enfrentar-se entre si. Polícia contra polícia, polícia contra Abin, Justiça contra polícia, cortes superiores de Justiça contra juízes de instâncias inferiores, Congresso contra Justiça, Ministério Público a cutucar de lá e de cá... Claro, nem todos os enfrentamentos que presenciamos merecem ser avaliados nos mesmos termos do ponto de vista dos desígnios maiores a orientarem nosso arcabouço institucional, e alguns deles são mesmo parte institucionalmente normal do relacionamento entre diferentes órgãos no cumprimento da função jurisdicional do Estado. Mas creio haver uma pergunta de grande relevância: a de até que ponto as deficiências do nosso Estado quanto a constituir-se em arena democraticamente equilibrada dos grandes interesses da sociedade como tal (em alguns casos interesses antes latentes, justamente pela carência de condições de se tornarem politicamente vocais) seria o fator talvez decisivo das brigas miúdas que causam cada vez maior perplexidade.

Os casos em que o Judiciário se vê diretamente envolvido têm, naturalmente, maior interesse. Tratando-se do poder de que se espera a garantia isenta e douta da lei e do direito, é perturbador ter seus representantes, em instâncias formais ou informais, em refregas frequentes e bate-bocas irados. Tem-se falado de "judicialização da política" e "politização da Justiça". Há um sentido em que a primeira pode até ser vista com bons olhos: trata-se, afinal, do recurso de contendores políticos às agências destinadas precisamente a dirimir os conflitos. O problema reside na politização da Justiça (que a excessiva judicialização da política pode acabar por favorecer) e, especialmente, no fato de que essa politização possa assumir, por exemplo, a forma desmoralizante de brigas públicas entre juízes de instâncias diversas que se xingam enquanto invocam princípios elevados para prender e soltar - e enquanto algum deles não acaba na cadeia ele próprio.

Vimos há dias o juiz Fausto de Sanctis a defender publicamente, no Rio, um ativismo jurídico que parte da idéia de que a Constituição é mutável e dinâmica para defender atuação menos ortodoxa no caso de crimes de colarinho branco. Apesar de sua atuação na direção contrária no caso rumoroso de Daniel Dantas, também de membros do STF temos visto a mesma defesa de uma postura ativista, em que competiria ao órgão não apenas interpretar a Constituição, mas ocasionalmente também reinterpretá-la - e legislar, portanto. Essa postura ativista ou "construtivista" se mostra com nitidez na história do Judiciário dos Estados Unidos, por exemplo, donde o conflito político e as idas e vindas em torno da composição conservadora ou progressista da Suprema Corte. A diferença, como já apontei aqui anteriormente, reside no caráter decididamente partidário que o enfrentamento assume no caso dos EUA, o que, quando nada, envia ao cidadão sinais claros, de certa maneira, sobre o que se acha em jogo na disputa. Não obstante o que se possa salientar de negativo na talvez excessiva penetração institucional dos partidos e suas consequências na partidarização da própria Justiça, temos com as organizações partidárias, no caso estadunidense, um fator de agregação dos múltiplos conflitos que corresponde a uma das funções classicamente atribuídas aos partidos, ao lado da de mera vocalização dos interesses "dados" na estrutura social.

Em nosso caso, os partidos estão longe de executar de maneira adequada e sociopsicologicamente densa essa função agregadora. Daí a preponderância fatal, no condicionamento geral do exercício da função jurisdicional do Estado, do papel cumprido em surdina pelo fosso social produzido por nossa longa história de desigualdade. As relações de causalidade são complexas, e o fosso social é ele mesmo, com certeza, um grande obstáculo ao enraizamento de partidos agregadores e efetivos. De todo modo, nessa arena precária, um bom Estado-sujeito é provavelmente um sonho vão.

Fábio Wanderley Reis é cientista político e professor emérito da Universidade Federal de Minas Gerais. Escreve às segundas-feiras

Lula-aqui, Evo-ali, Obama-lá


Augusto de Franco
DEU NA FOLHA DE S. PAULO


O reforço dessas condições extrapolíticas, conquanto possa ter efeito simbólico importante, conspira contra a política (democrática)

EM PARTE por concepção, em parte por esperteza, Lula resolveu contrair a obamania. Nas vésperas da eleição americana, ele declarou: "da mesma forma que o Brasil elegeu um metalúrgico, a Bolívia, um índio, a Venezuela, o Chávez, e o Paraguai, um bispo, seria um ganho extraordinário se a maior economia do mundo elegesse um negro". É ruim.

Salva-se nessa lista de admirações só o próprio Obama. Os outros são ou serão protoditadores ou ditadores, com exceção de Lula, que é apenas um líder neopopulista manipulador. É ruim também. Mas é menos pior.A esperteza de Lula é usar a obamania para legitimar a lulomania. Ou a evomania. Ou a chavezmania. São manias de não gostar da democracia.

Isso é tão óbvio que não pode estar em discussão. Se Lula gostasse de democracia, não teria declarado tantas vezes que Chávez "peca por excesso de democracia".

Para entender, é preciso ver que Lula não quer ser chefe de governo.Nunca quis. Ele quer ser condutor de rebanhos, guia de povos. Quer palanques extraordinários, não a ordinária rotina das tarefas administrativas.

Frans de Waal já nos cansa há anos com suposições sobre uma "Chimpanzee Politics". Ele está redondamente enganado, é claro. Mas suas hipóteses vêm a calhar para a comparação seguinte: quanto mais você se parece com um chimpanzé, mais precisa de líderes extraordinários, machos alfa e outros condutores de rebanho.

Na democracia, cada um que pense com sua cabeça, faça suas escolhas e ande com as próprias pernas. Quem precisa ser conduzido como rebanho é gado, não gente. Quem gosta de conduzir o povo pela mão são os sociopatas (e genocidas, como Mao, o "guia genial dos povos") e os vigaristas (como certos pastores e palanqueiros).

A democracia não precisa de líderes extraordinários, superhomens, caudilhos carismáticos que eletrizam as multidões e arrebatam as massas em nome de um porvir radiante. A democracia, como dizia John Dewey, é o regime das pessoas comuns; sim, das ordinárias, não das extraordinárias.

Mas Lula, significativamente, tem especial predileção pela palavra: assim como a vitória de Obama seria "extraordinária", aquele seu primeiro ministério, detonado pelas suspeitas e acusações formais de crime, roubo e formação de quadrilha, ele também o qualificava como "extraordinário".

Quem precisa de coisas extraordinárias, mitos fundantes (líderes ungidos, predestinados a cumprir um papel redentor), utopias fantásticas (reinos milenares de seres superiores ou regimes universais de abundância) são autocracias, não democracias.

Quase dois terços dos americanos não foram votar no mulato Obama.

Dos que foram votar, quase a metade preferiu o macho branco caucasiano McCain. Obama, com superávits de melanina em relação a McCain, não por isso vai conduzir as massas para qualquer paraíso. E nem vai governar o tempo todo lembrando a sua condição extraordinária de negro. Se fizesse isso, seria um negro de araque.Já Evo é um índio de araque, nesse particular, igualzinho a Lula, um metalúrgico de araque. Sim, ele o foi, mas não é mais. Há muito tempo. Aliás, já passou mais tempo como profissional do palanque, sustentado "sem produzir um botão" (a expressão é dele) por dinheiro partidário e de financiadores privados, do que como metalúrgico de chão de fábrica.

Quem pode viver disso não é a política (democrática), mas aquela ideologia sociológica que pretendia encontrar na extração social alguma razão para explicar e legitimar o comportamento do agente. O lugar de onde ele fala não seria então o lugar que ocupa quando fala, senão um lugar pretérito, originário, abstrato, capaz de lhe condicionar a trajetória e absolvê-lo de todos os erros passados e futuros.

A empulhação se generalizou, em parte baseada na visão equivocada de que a origem de classe ou de raça ou cor tem alguma coisa a ver com a democracia. Não tem, pelo contrário: o reforço dessas condições extrapolíticas, conquanto possa ter um efeito simbólico importante, conspira contra a política (democrática). Uma pessoa deve ser escolhida pelas suas opiniões, não por sua extração, origem, identificação antropológica.

Lula-aqui, Evo-ali e Obama-lá são movimentos regressivos. Obama não tem culpa. Ao contrário de Lula e de Evo, ele está convertido à democracia. Mas a obamania, assim como a lulomania e a evomania, aborrece a democracia.

AUGUSTO DE FRANCO , 58, é autor, entre outros livros, de "Alfabetização Democrática". Foi conselheiro e membro do Comitê Executivo do Conselho da Comunidade Solidária durante os governos FHC (1995-2002).

A crise cambial de 2008


Luiz Carlos Bresser-Pereira
DEU NA FOLHA DE S. PAULO

O Brasil fica em situação intermediária; sofreu uma crise cambial porque deixou que o câmbio se valorizasse

A FASE DE pânico foi superada, mas a crise financeira continua forte e está agora se transformando em crise do setor real da economia. Os governos procuram neutralizar seus efeitos mais negativos, mas estes serão tanto maiores quanto mais frágil financeiramente for a economia do país. Nos países ricos a crise é bancária, e os mais atingidos serão os países que deixaram seus bancos menos regulados, como são os casos dos Estados Unidos e da Grã-Bretanha.

Já nos países em desenvolvimento a crise financeira é uma crise do balanço de pagamentos; não foram os bancos que emprestaram e especularam de forma irresponsável, mas foram os países que se fragilizaram internacionalmente ao permitir que sua taxa de câmbio se apreciasse e seu déficit em conta corrente alcançasse níveis elevados. Estão nesse caso, entre outros, os países do Leste Europeu, o México e a África do Sul, cujas moedas sofreram forte depreciação.

Em contrapartida, os países asiáticos e a Argentina estão em condição mais confortável porque não permitiram a apreciação do seu câmbio; sofrerão também os efeitos da crise financeira, mas não são, eles próprios, fonte de crise porque não seguiram o conselho da ortodoxia convencional que aconselhava os países em desenvolvimento a "crescer com poupança externa". O Brasil fica em uma situação intermediária. Sofreu também uma crise cambial porque deixou que sua taxa de câmbio se valorizasse.

A apreciação tinha, naturalmente, o apoio da ortodoxia convencional interna e externa que saudava a volta do Brasil à condição de déficit em conta corrente como a volta à "condição natural das coisas" para os países em desenvolvimento.

O déficit em conta corrente, porém, ainda não estava elevado, não havendo, portanto, um problema de dívida externa insustentável, mas isso não impediu que a crise cambial também se expressasse na depreciação violenta do real. Dada a sobreapreciação anterior do real, o déficit em conta corrente aumentava de forma explosiva.

O fato não passou despercebido pelo mercado financeiro internacional, que se deu conta que neste ano esse déficit chegaria perto de 3% e, em 2009, estaria próximo de 5% do PIB (Produto Interno Bruto). O Brasil deixou, assim, de ser um mercado seguro para os aplicadores que não hesitaram em suspender a rolagem dos seus créditos. Ao contrário das crises de 1998 e de 2002, esta foi uma crise financeira "antecipada".

Ao contrário, também, das duas crises anteriores, o país contava com reservas internacionais elevadas, superiores a US$ 200 bilhões. Esse fato, entretanto, não impediu que a crise se desencadeasse, porque essas reservas foram, no plano interno, construídas com base não em superávits em conta corrente, como é o caso, por exemplo, da China, mas com base em endividamento externo; e, no plano interno, não decorreram de superávit fiscal em reais, mas de endividamento público interno.

Entre 2001 e julho de 2008, as reservas internacionais do Brasil aumentaram em US$ 167,8 bilhões. Nesse período, porém, o saldo acumulado em transações correntes foi de apenas US$ 6,8 bilhões, de forma que 96,4% do aumento das reservas foi obtido pelo país com financiamento externo financeiro e patrimonial (investimentos diretos). Como não houve superávit público, 100% desse aumento foi financiado com dívida interna. Não é surpreendente que essas reservas não fossem seguras.

LUIZ CARLOS BRESSER-PEREIRA , 74, professor emérito da Fundação Getulio Vargas, ex-ministro da Fazenda (governo Sarney), da Administração e Reforma do Estado (primeiro governo FHC) e da Ciência e Tecnologia (segundo governo FHC), é autor de "Macroeconomia da Estagnação: Crítica da Ortodoxia Convencional no Brasil pós-1994".