segunda-feira, 1 de dezembro de 2008

Uma conversão no leito de morte?


Giuseppe Vacca
Novembro 2008
Fonte: Gramsci e o Brasil

Tradução: Josimar Teixeira

Jornais de todo o mundo trouxeram nestes últimos dias a declaração de uma importante autoridade da Cúria vaticana, o bispo Luigi De Magistris, sobre a “conversão” de Antonio Gramsci às vésperas da morte, ocorrida em 27 de abril de 1937, na clínica Quisisana, em Roma. De Magistris diz apoiar-se em supostas revelações das freiras que então trabalhavam naquela clínica, revelações que, de resto, têm reaparecido periodicamente, sem nenhuma comprovação documental.

O fato em si é irrelevante, mas, como toda instrumentalização, mesmo de sabor folclórico ou arcaico, provoca algum interesse e comentário. Não é a primeira vez que setores mais tradicionalistas da Cúria lançam bizarras elucubrações sobre grandes personagens da cultura pretensamente convertidos no leito de morte: foi o que ocorreu, ironicamente, até mesmo com Benedetto Croce, ilustre pensador laico e liberal, também fortemente relacionado, como sabemos, ao mundo político e intelectual do próprio Gramsci. É difícil imaginar de que modo elucubrações desse tipo contribuem para uma percepção mais adequada, inclusive por parte dos não crentes, do insuprimível acervo de fins e valores que toda visão religiosa do mundo traz consigo, enriquecendo de modo único a experiência de todos os homens e mulheres.

Transcrevemos abaixo uma entrevista com Giuseppe Vacca, presidente da Fundação Instituto Gramsci, feita por Matteo Sacchi e publicada no último 26 de novembro em Il Giornale, porta-voz da direita italiana e ligado diretamente a Silvio Berlusconi.

Na verdade, nesta entrevista o mais importante são as informações relativas a
novas cartas descobertas em Moscou, junto à família Schucht. Expressão destas descobertas é o recente lançamento na Itália do livro de Antonio Gramsci Jr., La Russia di mio nono [A Rússia de meu avô], de que aqui já demos notícia (Nota de Josimar Teixeira).


Professor Vacca, o que pensa das declarações do bispo Luigi De Magistris?

A plausibilidade destas declarações ainda deve ser inteiramente avaliada. Segundo a documentação conhecida, não há nada que nos fale desta conversão.

Quais são os documentos de que dispomos?

Uma carta muito detalhada da cunhada de Gramsci, Tatiana, dirigida a Piero Sraffa em Cambridge. E que não diz nada sobre isso. Além disso, há uma outra carta, sempre de Tatiana a Giulia Schucht [a mulher de Gramsci], inédita e que há pouco recebemos da família [em Moscou]. E também aqui não há menção à conversão. O mesmo se deve dizer para todos os outros documentos, inclusive relatórios da polícia...

E as relações de Gramsci com a espiritualidade?

Não, esta pergunta assim colocada não tem sentido... É inútil falar de antes, buscar em Gramsci um espiritual oculto que antecipe alguma coisa. Não é um discurso que faça sentido. É preciso que Monsenhor Luigi De Magistris mostre as provas históricas das suas afirmações. Discorrer sobre espiritualidade “antes” só serviria para criar um fumus de conversão, e não me presto a isso.

Mas na imensa obra de Gramsci quais são os trechos em que se reflete sobre a religião?

A reflexão sobre a religião está presente em toda parte, uma página sim, outra não dos Cadernos. Basta ir na biblioteca e pegar os Cadernos ou as Cartas. Mas este é um fato óbvio e nada tem a ver com o caso. Um grande pensador que reflita sobre a política deve obrigatoriamente ocupar-se de religião, é óbvio.

Mas nada que antecipe uma conversão?

Era absolutamente laico. Mas, para resumir, não tem sentido olhar para “antes”, se não temos a prova de uma conversão. Se houvesse prova, poder-se-ia pensar no “antes”. Mas até este momento... Sou um não crente que leva a sério a teologia católica. Se encontrou a graça na hora da morte... O antes conta pouco. Mas, se estamos falando do testemunho tardio de uma irmã de caridade, já refutado por Paolo Spriano no seu livro de 1977 [Gramsci in carcere e il partito], não há muito o que dizer. Se houvesse novidade, então seria um fato de grande interesse e teria sentido fazer uma longuíssima discussão sobre “antes”, reler tudo.

Neste caso, seria preciso uma releitura?

Sim, mas são necessários documentos, coisas verificáveis do ponto de vista histórico. Mas, repito, até aqui não há traço disso. Existem provas? Dêem-nas, estaríamos interessadíssimos. Senão, Gramsci continua a ser o de antes, o filósofo projetado para a política e a ação que pensa e fala de religião e da Igreja nesta ótica.

E quanto a Gramsci e à espiritualidade?

Você insiste? Não tem nada a ver com a questão, e seria tema para uma conferência de duas horas. Se lhe interessar, aconselho a biblioteca...

Entre dois caminhos


Wilson Figueiredo
Jornalista
DEU NO JORNAL DO BRASIL


A rejeição do terceiro mandato foi, até agora, o ponto mais alto da biografia do presidente Lula, cuja popularidade ampla o dispensa de comparecer com nome e sobrenome completos toda vez que é referido. O gosto pelo populismo ficou compatível com os padrões democráticos. E a rendição à Constituição valeu por um atestado de bons antecedentes históricos. Ao sair do governo (no prazo legal), dará um grande passo, maior do que as pernas, na direção da História. A não ser que Lula faça meia-volta e reconheça razão nos aloprados que não perderam a esperança do terceiro mandato e resistem em silêncio à candidatura de Dilma Rousseff. Por entendê-la solução de algibeira, a social-democracia não sairá da toca senão para emitir apartes nas relações entre o governo e a crise financeira. O PSDB está investindo na omissão. Realmente, Lula sacou do bolso a candidatura quando se sentiu ameaçado pela horda queremista que queria empurrar-lhe o terceiro mandato. Só uma crise de proporções assustadoras, portanto, pode restaurar o debate equivocado e interromper a paz política.

A candidatura Dilma Rousseff nasceu de alternativa fictícia, sem salvar as aparências. A ministra ocupou um espaço criado pela invasão da tribo queremista, que se adiantou aos fatos quando ainda era cedo demais para tais desatinos. O terceiro mandato não amadureceu e, por ser colhido verde, se deteriorou. A democracia admite até hipocrisia, mas requer pudor. Com a expectativa de favores e o prestimoso coração presidencial, a candidatura da ministra se propagou como gripe importada. Era cedo demais para candidaturas ou muito tarde para mudar as normas legais a tempo de levar a república a velhos impasses. A candidatura feminina teve o mérito de ser novidade, mas o projeto do terceiro mandato já estava enraizado. Ficou um espaço de ninguém.

O que segurou a alternativa Dilma Rousseff foi o espírito de acomodação possível longe da eleição. Por ser solução unilateral e pessoal, a candidatura empurrou para o segundo plano o terceiro mandato e agora, à sombra da crise internacional, o sofá tem o papel principal. De olho na situação internacional, os arautos do terceiro mandato só pensam em tirar, silenciosamente, proveito da crise. Dobrar o presidente fica para depois. Primeiro, convencer a ministra. Mas quem penduraria o guizo no pescoço da gata? Preocupação supérflua. A candidata foi escolhida pela lealdade com que serve à república para evitar o que seria, dos males, o menor, desde que sem retrocesso político: a ultrapassagem pelo acostamento. Com a mesma coerência, a ministra Dilma Rousseff, assim como aceitou, devolveria a quem de direito (e, num certo sentido, até de direita) a prova de confiança presidencial para livrar a república de percorrer o sinistro túnel mal iluminado do começo ao fim.

A crise financeira internacional está querendo tirar proveito da intimidade (que não é nova) com as economias em desenvolvimento. Enquanto as bolsas de valores se alvoroçam e as falências fazem o espetáculo digno de Nero, de harpa em punho, a crise joga com as hipóteses tradicionais. A primeira é se a política seria capaz de garantir a responsabilidade democrática na encruzilhada histórica da economia e a segunda pode ser a delegação da responsabilidade política às razões de mercado. De um jeito ou de outro, a democracia será posta em questão pelo que sobrar da crise pela qual a economia está passando. Assim como se foi quando a democracia estava com toda a corda (ainda não é movida a quartzo), o perigo do terceiro mandato pode ser pressentido pelo lado oposto e voltar à cena por força das expectativas sociais, sindicais e estudantis. A ilusão do terceiro poderá subir de cotação se a crise durar mais do que a sucessão presidencial pode esperar. E, principalmente, se o otimismo oficial não for capaz de distinguir entre o pior e o melhor. Estaria dado o primeiro passo na direção contrária à democracia, sob a promessa de retroceder logo. A crise alcançaria os subúrbios do apocalipse, se a situação se aproximasse desse ponto difícil de localizar. E aí o presidente Lula teria de optar entre o caminho mais longo para sair da crise e o mais curto para entrar na História.

Réu do mensalão vai propor fim da reeleição e mandatos de cinco anos

Cristiane Jungblut
DEU EM O GLOBO


Projeto deverá ser votado na CCJ da Câmara esta semana; oposição é contra

BRASÍLIA. O deputado João Paulo Cunha (PT-SP), um dos réus do processo do mensalão no Supremo Tribunal Federal (STF), vai apresentar até quarta-feira na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) parecer favorável às propostas de emenda constitucional que põem fim à reeleição de presidente da República, governadores e prefeitos e aumentam seus mandatos de quatro para cinco anos. As regras valeriam para futuras eleições, não mexendo nos atuais mandatos. A oposição já avisou que tentará impedir a aprovação de qualquer proposta que mude as atuais regras sobre reeleição, por exemplo.

Na Câmara, onde foi presidente, João Paulo foi julgado e absolvido no caso do mensalão. Desde então, estava afastado do debate político. Nos últimos meses, porém, vem sendo reabilitado pelo PT e pelo governo, com relatorias importantes, como a medida provisória 443, já aprovada, que permite que Banco do Brasil e Caixa Econômica Federal comprem, sem licitação, bancos públicos e privados.

Há meses com a reforma política em "banho-maria", João Paulo disse ao GLOBO que, em seu relatório, os mandatos dos deputados federais também subiriam de quatro para cinco anos, e os dos senadores cairiam de oito para cinco anos, após um período de transição. Na semana passada, João Paulo comunicou que apresentaria o relatório. Foi avisado que não é o momento de discutir o tema.

- A pauta do país não é mudança eleitoral, e sim reduzir o efeito da crise - disse ACM Neto (BA), líder do DEM. - A garantia de que não haverá proposta de terceiro mandato para Lula não é garantia de nada.

- A maioria da Câmara quer acabar com a reeleição e instituir mandatos de cinco anos. Isso valeria para o futuro: 2014 para as eleições gerais (presidente, governadores, deputados e senadores) e 2012 para as eleições municipais. Mas, se quiserem já para 2010, pode ser. É uma hipótese forte que eu admito - rebate João Paulo.

Na CCJ, o papel do relator é apenas dar admissibilidade ou não às propostas, mas já é um indicativo de que o PT e o Planalto trabalharão pela medida.

- O instituto da reeleição não agradou no Brasil. E não existe isso de terceiro mandato, porque é para o futuro.

Apesar de defender a emenda, o presidente da CCJ, Eduardo Cunha (PMDB-RJ), acha que dificilmente o assunto será votado na quarta-feira.

Irmão de Lula pede punição a torturadores

Luiz Carlos Azedo
Da equipe do Correio Brazilense
ANOS DE CHUMBO

Para Frei Chico, a anistia é válida em caso de confronto político, mas não quando há crime contra um cidadão detido pelo Estado

Irmão mais low profile do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, o sindicalista José Ferreira da Silva, o Frei Chico, gravou na quarta-feira passada, em Brasília, um longo depoimento sobre a morte do operário Manoel Fiel Filho, assassinado em 17 de janeiro de 1976 nas dependências do 2º Exército. Personagem do documentário Perdão, Mr. Fiel, do jornalista Jorge Oliveira, Frei Chico relata as prisões de metalúrgicos e sindicalistas do ABC durante a onda de repressão aos militantes do antigo Partido Comunista Brasileiro (PCB), em 1975.

No depoimento, ao qual o Correio teve acesso, Frei Chico conta como foi a onda de prisões, denuncia a ação coordenada dos órgãos de segurança dos regimes militares da América do Sul com o apoio do governo dos Estados Unidos e defende a punição dos torturadores. “Não são dignos de estarem impunes. Do meu ponto de vista, não deveria haver anistia para essa gente. Você pode ter anistia no confronto político, num confronto de guerra, mas não era o caso. O elemento já estava detido pelo Estado, totalmente imobilizado. Isso é banditismo, assassinato.”

Frei Chico gravou para o documentário sobre a vida e a morte de Manoel Fiel Filho antes de uma visita ao irmão presidente da República, na quinta-feira à tarde. Depois, falou ao Correio. “Não quero dar entrevistas só porque sou irmão do presidente. Você não tem idéia do assédio que a gente sofre, toda hora alguém vem pedir alguma coisa, fazer uma proposta, é um inferno”, reclama. “Já pensei até em andar com um gravador por causa disso. Quando a gente menos espera, vem um antigo conhecido com uma proposta maluca.”

Sindicalista, ex-integrante do Comitê Central do PCB, um dos responsáveis pela entrada de Lula no Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, Frei Chico reconhece que nunca exerceu influência política sobre ele. Com Lula na Presidência, sua grande preocupação é com os demais irmãos. “O que fizeram na casa do Vavá foi um absurdo”, protesta, a propósito de uma operação de busca e apreensão da Polícia Federal na casa de Genival Inácio da Silva, um dos irmãos de Lula, por suposto envolvimento com lobistas.

Operação conjunta

No documentário, são entrevistados ainda os “brasilianistas” John Green e Jordan Yong, os ex-presidentes José Sarney e Fernando Henrique Cardoso, o metalúrgico Antônio Flores, cujo codinome era Fiori e com o qual Fiel Filho foi confundido, e o jornalista Paulo Markun, preso juntamente com Vlamidir Herzog, jornalista morto no DOI-CODI. Também é entrevistado Juan Pablo, filho do general chileno Orlando Letelier, assassinado em Washington por agentes da Dina, a polícia política do regime de Pinochet. “O objetivo do filme é mostrar que o assassinato de Manoel Fiel Filho, um simples operário, foi parte de uma grande operação de repressão coordenada pelo governo dos Estados Unidos e que envolveu todos os regimes militares”, explica Oliveira.

Por isso, o título do documentário é uma frase de Yong, ao falar sobre a atitude que o governo dos Estados Unidos deveria tomar em relação ao seu envolvimento com a repressão política no Brasil. A viúva de Manoel Fiel Filho, Teresa, peça fundamental na reconstituição dos principais momentos da vida do operário, relata o que aconteceu no dia de sua morte. No sábado, às 22h, um desconhecido, dirigindo um Dodge Dart, parou em frente à sua casa e, diante dela, duas filhas e alguns parentes, disse secamente: “O Manoel suicidou-se. Aqui estão suas roupas”. Em seguida, jogou na calçada um saco de lixo azul com as roupas do operário morto. Teresa, então, começou a gritar: “Vocês o mataram! Vocês o mataram!”. Essa cena é reconstituída no filme.



"O assassinato de Manoel Fiel Filho foi parte de uma grande operação de repressão"

(Jorge Oliveira, diretor do documentário)

Entrevista: Frei Chico


Luiz Carlos Azedo

Da equipe do Correio Braziliense


“Banditismo e assassinato”


Sindicalista não fala em revisão da Lei da Anistia, mas diz que torturador não pode se beneficiar dela

Irmão do presidente Lula demonstra insatisfação com a legislação. “No Brasil, a gente tem mania de fazer acordo para agradar a todo mundo.”

Como você ficou sabendo da morte de Manoel Fiel Filho?

Fiquei sabendo pelos jornais. Na nossa cabeça, a repressão tinha diminuído em virtude da pressão que houve por causa da morte do (jornalista Vladimir) Herzog. Mas aí, morre mais um operário. Foi complicado.

Quando começaram as prisões no ABC?

Começaram logo após o golpe militar de 1964. Os companheiros iam para as assembléias nos sindicatos. Havia muita provocação. Ligada à Igreja Católica, a Ação Popular era muito radical. Aí não dava outra, o pessoal se expunha muito. Os companheiros da Ação Popular também foram presos, principalmente em Diadema. Nos anos 70, alguns desapareceram.

O presidente Lula era ligado ao Paulo Vidal (presidente do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo na época)?

Não. O Lula entrou no sindicato no esquema do Afonso Monteiro da Cruz, um companheiro que tinha simpatia pelo partido e era muito ligado à Igreja. Cara muito honesto, muito sincero. O Lula foi convencido a entrar no sindicato por um grupo do qual Vidal fazia parte, mas o Lula nunca teve ligação política com ele. Vidal não tinha posição política, ele era “eu mais eu”.

A afinidade política de Lula era com você?

Não. O Lula nunca aceitou ser comunista, se ligou ao pessoal da Igreja Católica. Tinha admiração pela esquerda, mas nunca participou.

Pensava pela cabeça dele?

Diria que pelas informações que tinha. O Lula lia muito. Na hora que aceitou entrar no sindicato, e não foi fácil ele entrar, teve a primeira tragédia da vida dele, que foi a morte da mulher e do filho que ia nascer. Daí pra frente, cuidou muito da própria formação como líder sindical. Lia tudo que aparecia e se informava muito bem sobre o que pretendia fazer. Era uma característica dele. Até a minha prisão, por exemplo, ele não acreditava muito que havia aquela repressão. A morte do Manoel Fiel Filho foi outra tragédia para ele. A partir dali, ele passou a ter uma visão melhor da situação.

Como foi a sua prisão?

Eu não fui preso, fui seqüestrado. Era vice-presidente do Sindicato de São Caetano do Sul. Tomei posse na segunda, no sábado fui seqüestrado. Ninguém sabia onde eu estava. O Lula estava no Japão. Quando ele chegou, foi procurar a gente. Era outubro de 1975. Sofremos uma repressão muito violenta. O PCB foi desmantelado porque tinha sido um grande articulador da vitória do MDB nas eleições de 1974, e órgãos de repressão já tinham liqüidado a luta armada. Precisavam fazer alguma coisa. Isso também virou uma fonte de renda para algumas pessoas dessa área, de sobrevivência até.

A morte do Manoel Fiel Filho politizou o movimento sindical do ABC?

A morte dele nos levou a entender que a repressão continuava. Mas houve a queda do general (Ednardo D’Ávila Melo). A morte dele foi o estopim para dar uma maneirada total na repressão. Para mim, foi a grande salvação. Para os caras, também. O regime militar não podia continuar daquela maneira. A morte do Fiel Filho foi um erro dos torturadores, um exagero daqueles caras. Eles eram sarcásticos, torturavam por prazer.

Você foi torturado?

Muito, mas muita gente foi mais do que eu. Entrou no DOI-CODI, não saía ileso. Tinha um pessoal que se revezava diariamente, era gente pronta para torturar. Eram preparados, bem treinados, sabiam o que queriam. Eles faziam por prazer. O que faziam era tentar desmoralizar o ser humano. Quando o preso chegava ao lugar, já tiravam a roupa. Se tinha mulher, ficavam em frente à mulher. Torturavam juntos, a mulher e o homem, faziam um torturar o outro.

Há uma grande polêmica sobre a anistia para os torturadores. Qual é a sua opinião sobre isso?

Quem rasgou a Constituição não foram os opositores, foram eles. Eles rasgaram as leis e acham que somos bandidos. O que eles fizeram naquele momento, não só aqui como em toda a América Latina, foi uma barbaridade. Não são dignos de estarem impunes. Do meu ponto de vista, não deveria haver anistia para essa gente. Você pode ter anistia no confronto político, num confronto de guerra, mas não era o caso. O elemento já estava detido pelo Estado, totalmente imobilizado. Isso é banditismo, assassinato. Mas houve um acordão na Anistia. No Brasil, a gente tem mania de fazer acordo para agradar a todo mundo.

Deve haver uma revisão da Lei da Anistia?

Não diria uma revisão, mas pelo menos um acerto, mostrando que o torturador não pode ser beneficiado pela Lei da Anistia.

Isso não é revanchismo?

Não. Eles romperam com as leis vigentes, isso é reconhecido internacionalmente.

Memória


O último “suicídio”O alagoano Manoel Fiel Filho foi um dos milhares de nordestinos que buscaram uma vida melhor durante o chamado “milagre brasileiro”, na década de 1970, nas metalúrgicas paulistas. Morreu no dia 17 de janeiro de 1976, pouco depois de completar 49 anos, na Rua Tutóia, em São Paulo, onde funcionava o centro de torturas do 2º Exército. Fora preso na véspera, por volta do meio-dia, na fábrica onde trabalhava, a Metal Arte, por dois agentes do DOI-CODI/SP, que se diziam funcionários da prefeitura, sob a acusação de pertencer ao PCB. A versão oficial do Exército era de que Manoel havia se enforcado em sua cela com as próprias meias, naquele mesmo dia 17, por volta das 13h. O corpo apresentava sinais evidentes de torturas, em especial hematomas na testa, pulsos e pescoço. A entrega de corpo à família só foi realizada com a condição de que os parentes o sepultassem o mais rapidamente possível e não falassem nada sobre sua morte. No domingo, dia 18, às 8h, foi sepultado no Cemitério da IV Parada, em São Paulo. O exame necroscópico assinado pelos médicos legistas José Antônio de Melo e José Henrique da Fonseca confirmava a versão oficial de que teria ocorrido suicídio.


Apesar disso, a reação do então presidente Ernesto Geisel, que mantinha uma queda-de-braço com o ministro do Exército, general Sílvio Frota, foi demitir o comandante do 2º Exército, general Ednardo d\"Ávila Melo, três dias após a divulgação da morte do operário. O afastamento do general foi um recado aos quartéis de que havia chegado a hora de parar com torturas e assassinatos de oposicionistas. Nos arquivos do antigo DOPS/SP, hoje um museu, consta que o crime atribuído a Fiel Filho era receber o jornal Voz Operária. (LCA)

Chávez, Evo Morales e Correa


Cláudio Gonçalves Couto
DEU NO VALOR ECONÔMICO


Os recentes episódios do entrevero diplomático-empresarial entre o governo do presidente do Equador, Rafael Correa, e o Brasil - primeiro envolvendo a construtora Norberto Odebrecht e, agora, o BNDES - são sintomáticos de uma faceta já manifestada anteriormente no âmbito dos proto-regimes políticos (ou regimes em construção) nas nações chefiadas por lideranças de perfil "bolivariano". Ela se traduz na agressão aos interesses de empresas e governos de "nações amigas" feita com base na suposta defesa do bem nacional contra alegados violadores estrangeiros, reivindicando uma legitimidade que se basearia no caráter "soberano" do ato de violência. Assim como são normalmente legítimas ações amparadas pela lei de uma nação soberana, seriam também passíveis de legitimação atos que, alegadamente amparados nessa mesma soberania, violassem contratos anteriormente firmados por sujeitos estrangeiros que cometeram a imprudência de confiar na "lei soberana" previamente em vigor.

A contradição é patente: algumas normas e procedimentos que antes eram legais e serviram de guarida a quem -de boa fé - firmou contratos, tornaram-se ilegais na nova ordem instituída pelos líderes "bolivarianos", de modo que a implantação da nova (e superior) legalidade requer o cancelamento de acordos e a suspensão de direitos, que se tornaram ilegítimos. Se, por um lado, alguém pudesse afirmar que a criação de uma nova ordem legal é algo normal em qualquer Estado de Direito, seria também bom lembrar que sob o império da lei, esta não retroage em prejuízo de ninguém. E o que Rafael Caldera faz agora, assim como Evo Morales já fez anteriormente, é alegar que antes se vivia num mundo de ilegalidade que apenas pôde ser corrigido após sua ascensão ao poder, cabendo a eles atacar seletivamente os focos da transgressão dos interesses pátrios em nome da soberania nacional.

A possibilidade da criação dessa nova legalidade que pode descurar de toda a normatividade jurídica anterior se baseia, por sua vez, no suposto de que o processo político em curso é de natureza revolucionária. E assim sendo, nada que antes pudesse ser considerando - no âmbito de um Estado de Direito - limitador da ação dos governos, vale numa situação excepcional como esta. Em todos estes casos os líderes "bolivarianos" buscam dar formato legal a suas ações, legitimando-as por meio de novos decretos, leis e, sobretudo, novas constituições. A importância das novas cartas constitucionais, que foram pedra angular institucional da construção do regime nos três casos aqui aludidos, é a de simbolizar a refundação do Estado, zerando o cronômetro político da história do país e inaugurando uma nova era. A reformulação constitucional apenas dá um caráter mais radical - apesar de seu legalismo - às mudanças em curso; afinal, criar novas constituições significa criar novos Estados. Quem levou este processo com mais radicalismo à frente foi Hugo Chávez, que inclusive ocupou-se de rebatizar o país, alcunhando-lhe com o qualificativo de república "bolivariana".

O bolivarianismo, seja lá o que efetivamente possa conter como ideologia, não é contudo uma característica institucional facilmente decifrável sobre a Venezuela refundada por Chávez, como seriam por exemplo, os qualificativos de república "democrática" ou "federativa". O que de mais específico há no tal bolivarianismo são seu caráter supranacional (já que o sonho de Bolívar era o de unificar a América Hispânica) e sua natureza revolucionária. Com isto, uma "república bolivariana" seria, por conseqüência, uma exportadora de revolução para o continente, de modo que o qualificativo dado pela constituinte chavista ao país tem como fito, na verdade, um movimento mais amplo do que a mera reforma das instituições nacionais - visa-se reformar o entorno.

Uma das características dessa estratégia é uma atuação bastante agressiva (para não dizer truculenta) contra opositores internos e - evidentemente, dada a natureza do movimento - também externos. Na frente interna um exemplo disto foi a intimidação de Chávez a seus adversários nas recentíssimas eleições regionais, ameaçando até mesmo enviar tanques aos lugares em que a oposição se saísse vitoriosa. Afinal, quem não é um revolucionário (ou, pior, quem se opõe à revolução) é um traidor da pátria. Já na frente externa o exemplo melhor são as ações "antiimperialistas" de Caldera e Morales, de dar o calote da dívida com "usurários" estrangeiros, como o BNDES, ou desapropriar plantas industriais de multinacionais que se apropriam das riquezas nacionais, como a Petrobrás. No caso da expropriação boliviana, o governo brasileiro assumiu uma postura conciliatória, respeitando a "decisão soberana" (no sentido aqui já aludido) do governo de Evo Morales. Já no caso equatoriano, embora a mesma legitimidade soberana tenha sido invocada, a postura brasileira foi a de diplomaticamente sinalizar o teor inaceitável da ameaça de calote - pois, embora o Equador tenha apenas apelado a uma corte internacional neste primeiro momento, ele o fez logo após anunciar o caráter ilegítimo da dívida do país, segundo a avaliação de uma comissão de especialistas escolhidos a dedo pelo presidente Correa para produzir exatamente este diagnóstico.

Esta reflexão é importante para que possamos ter em conta o risco que correm tanto o governo brasileiro como as empresas nacionais que estabelecem negócios com os governos desses países. Embora potencialmente atraentes, os acordos firmados vivem sob a ameaça iminente de serem denunciados como ilegítimos, caso em algum momento no futuro as necessidades da revolução façam com que se perceba como necessária alguma mudança de regra. Poder-se-ia afirmar que o risco é menor para acordos feitos com os presentes governos boliviarianos, pois ocorreriam no âmbito de uma legalidade criada por eles mesmos - e não mais num passado de trevas, cuja superação cumpriria à revolução proporcionar. Embora isto realmente pareça plausível, é bom observar que "a revolução está em curso" e enquanto o mundo não for completamente mudado, aos olhos de revolucionários, mesmo o que ocorre com a sua anuência é passível de contaminação pela perversidade circundante, sendo necessárias repurificações periódicas. É aí que mora o perigo.

Cláudio Gonçalves Couto é professor de Ciência Política da PUC-SP e da FGV-SP.

Mangabeira e a crise


Fernando Rodrigues
DEU NA FOLHA DE S. PAULO

BRASÍLIA - Quando os EUA sofreram o atentado do 11 de Setembro, deu-se uma rara união entre os cidadãos norte-americanos. Estavam prontos para ajudar o país a emergir novamente como líder no século 21. Havia uma simpatia natural do restante do mundo. O império exalava uma inusitada fragilidade. A grande oportunidade foi desperdiçada. A principal recomendação de George W. Bush foi para as pessoas irem às compras enquanto ele planejava sua guerra pessoal contra Saddam Hussein.

Agora uma nova crise de natureza diferente atinge a imensa maioria dos países. Tudo o que Bush e seu sucessor, Barack Obama, parecem ter para dizer é "comprem, não parem de consumir, salvem o sistema". Lula, como um papagaio, faz a mesma coisa por aqui.Nem todos na Esplanada dos Ministérios pensam da mesma forma.

O ministro quase sem pasta Mangabeira Unger tem feito campanha interna para o Brasil adotar uma atitude mais ousada na abordagem da crise financeira.

Ele preparou um documento no qual classifica como insuficientes as duas principais saídas até agora adotadas pela maioria dos países: 1) regular mais profundamente o mercado financeiro mundial e 2) irrigar o sistema com dinheiro estatal, ação classificada pelo ministro de "keynesianismo vulgar".

Para Mangabeira, o mundo tem uma oportunidade única. Pode repensar como deve ser a relação do setor financeiro com o produtivo. O ministro defende, entre outras políticas, aprofundar o controverso uso de bancos estatais para forçar o mercado a financiar pequenos e médios negócios. Enxerga o Brasil com chance de liderar essa mudança em nível mundial.

O documento de Mangabeira está com Lula. O petista ainda não emitiu sinal sobre o que achou.

Tampouco está claro se o presidente se deu ao trabalho de ler o texto.

Irracionalidade e proibição


Luiz Carlos Bresser-Pereira
DEU NA FOLHA DE S. PAULO

A necessária regulação do sistema financeiro envolve a simples proibição do uso de muitas inovações financeiras

DESDE O final dos anos 1970, os agentes do setor financeiro vêm criando "inovações" financeiras. Aproveitando o grande prestígio que a palavra inovação ganhou a partir da teoria de Schumpeter sobre o empresário, os financistas denominaram as operações financeiras que foram criando -muitas delas eminentemente especulativas- de inovações, que, assim, se equiparariam às inovações empresariais. Está, porém, presente em muitas delas uma irracionalidade fundamental que não decorre de não serem bem reguladas, mas simplesmente de serem permitidas.

São práticas piores do que os jogos em cassino, porque ali o jogador só perde o dinheiro que apostou mais o crédito que o cassino na hora lhe oferece, enquanto no caso dos derivativos financeiros o operador pode perder muitíssimo mais. Só essa possibilidade pode explicar o que aconteceu com o Citibank. No fim de 2006, esse banco valia US$ 274 bilhões no mercado de ações; na última semana, antes de novo socorro do Fed, seu valor na Bolsa havia caído para US$ 20 bilhões.

Como pode ocorrer uma queda tão grande de valor? Não foi a simples queda da Bolsa americana -de 50% desde 2006. Não conheço quais foram as operações que, no caso desse banco, levaram-no a essa situação lastimável, mas posso dar dois exemplos de como operações "conservadoras" no mercado de futuros podem levar a prejuízos extraordinários.

Primeiro exemplo: suponhamos que eu tenha R$ 5 milhões aplicados em títulos brasileiros e que, prevendo uma maior apreciação do real, que está a R$ 2 (previsão que muitas empresas fizeram no início deste ano), peça a uma corretora de valores que venda dólares futuros no valor de R$ 40 milhões (ou US$ 20 milhões) -valor próximo da alavancagem máxima permitida dados os R$ 5 milhões. Se, de repente, no meio do contrato, o real se deprecia em 25%, subindo para R$ 2,50 por dólar, eu perderia esses 25%, ou seja, R$ 10 milhões (na verdade, perco no limite de meu patrimônio devido à exigência de margem pela Bolsa).

Segundo exemplo: suponhamos que eu necessite de um empréstimo de R$ 10 milhões, mas o juro está alto (18%), e quero reduzi-lo para a metade economizando R$ 900 mil. Para isso, vendo uma opção de compra de dólares cujo prêmio estimo corresponder a esse valor. Como, nesse momento, para cada contrato do equivalente em dólares de R$ 10 milhões, o preço do prêmio da venda da opção é de R$ 50 mil, eu terei de vender opção de valor equivalente em dólar de R$ 180 milhões para recuperar os R$ 900 mil. Se o dólar se deprecia em 50%, passando de R$ 1,60 para R$ 2,40, eu terei perdido R$ 90 milhões.

A simples possibilidade de haver operações financeiras como essas é irracional. Sua alavancagem é infinita. E sua irracionalidade pode ser também demonstrada comparativamente às alçadas que os bancos estabelecem para seus gerentes. Enquanto essas limitam fortemente o risco de o banco emprestar, meros operadores financeiros podem realizar operações com derivativos que arriscam valores infinitamente maiores do que essas alçadas. A necessária regulação do sistema financeiro, portanto, envolve, entre outras medidas, a simples proibição do uso de muitas inovações financeiras.

LUIZ CARLOS BRESSER-PEREIRA , 74, professor emérito da Fundação Getulio Vargas, ex-ministro da Fazenda (governo Sarney), da Administração e Reforma do Estado (primeiro governo FHC) e da Ciência e Tecnologia (segundo governo FHC), é autor de "Macroeconomia da Estagnação: Crítica da Ortodoxia Convencional no Brasil pós-1994".