quarta-feira, 3 de dezembro de 2008

Em nota, PPS defende formação de bloco de oposição para as eleições de 2010




Formar um bloco democrático reformista de oposição, vencer as eleições e governar o país. Esse é o objetivo fundamental do PPS para as eleições de 2010, expresso em nota aprovada nesta terça-feira pela Executiva Nacional e pela bancada federal do partido. A divulgação da nota acontece após a legenda já ter anunciado a decisão de apoiar o candidato do PSDB a presidente.

O documento critica a política econômica do governo Lula e o fato de ele ter paralisado as reformas do Estado. "O mais grave, no entanto, é que o governo e o partido que o hegemoniza abandonaram as reformas estruturais que o Brasil tanto necessita, capazes de permitir ao país efetivamente alcançar seu desenvolvimento e ser menos desigual", diz trecho da nota.

Somente esse bloco de oposição, acredita o PPS, é capaz de organizar um movimento nacional capaz de dar início a um novo ciclo virtuoso de transformações na economia e na sociedade. "Agora que a crise econômica “atravessou o Atlântico”, resta à sociedade e ao próximo governo construir uma outra perspectiva de desenvolvimento, fazer uma gestão transparente e com responsabilidade na condução da política econômica, resistindo ao economicismo que é prisioneiro do mero crescimento econômico, e tenha reflexos concretos nas políticas sociais".

O presidente nacional do PPS, Roberto Freire, frisa que está aberto o debate em torno de como deve ser construído esse bloco. As contribuições podem ser postadas nos comentários dessa matéria ou enviadas pelo e-mail secretariado@pps.org.br. Confira abaixo a íntegra da nota.

Nota da Comissão Executiva Nacional do PPS

A Comissão Executiva do Diretório Nacional do Partido Popular Socialista (PPS) decidiu trabalhar pela construção de um Bloco Democrático e Reformista, capaz de organizar um movimento nacional que vença as eleições presidenciais de 2010 e governe o pais, iniciando um ciclo virtuoso de transformações na economia e na sociedade.

Nos últimos seis anos, o atual governo se beneficiou de uma conjuntura financeira internacional que oferecia liquidez a todas as economias do mundo, graças a alavancagens jamais vistas no mercado, fazendo uso dos recursos fartos disponíveis, além de uma política fiscal de juros altíssimos e um verdadeiro populismo cambial, que transformou o país num entreposto de ganhos para os fluxos de capitais globalizados. Além de negar o discurso ético, o Executivo atropelou as instituições republicanas com a compra de parlamentares e partidos no episódio conhecido como o “mensalão”, a fim de controlar o Legislativo; criou e assenhoreou-se de dezenas de milhares de cargos públicos, usou os ganhos dessa ciranda para cooptar a sociedade organizada, trabalhadores e empresas para o interior do aparelho de Estado, ao mesmo tempo em que ofereceu e continua com políticas compensatórias para os mais pobres.

O mais grave, no entanto, é que o governo e o partido que o hegemoniza abandonaram as reformas estruturais que o Brasil tanto necessita, capazes de permitir ao país efetivamente alcançar seu desenvolvimento e ser menos desigual.

Agora que a crise econômica “atravessou o Atlântico”, resta à sociedade e ao próximo governo construir uma outra perspectiva de desenvolvimento, fazer uma gestão transparente e com responsabilidade na condução da política econômica, resistindo ao economicismo que é prisioneiro do mero crescimento econômico, e tenha reflexos concretos nas políticas sociais.

Assim, o PPS convoca os brasileiros para a formação deste Bloco Político de oposição ao atual governo e aberto à participação de partidos, lideres sindicais e comunitários, gestores públicos em todas as instancias, intelectuais, jovens, mulheres, universidades e escolas, lideranças religiosas, que apóiem seu programa e objetivos. No que diz respeito aos membros do PPS, cada um deverá ser portador desta proposta e assumir o dever de informar seus objetivos à sociedade, usando todos os meios possíveis de comunicação e informação.

Brasília, 2 de dezembro de 2008

Diversidade e cidadania


José Serra e Linamara Rizzo Battistella
DEU NA FOLHA DE S. PAULO

Dos 25 milhões de brasileiros com deficiência, pelo menos 4 milhões estão no Estado de São Paulo

A DECLARAÇÃO Universal dos Direitos Humanos, marco histórico do respeito à diversidade, proclama a igualdade de todos os seres humanos em direitos e dignidade. No mundo de hoje, sob essa inspiração, governos e organismos internacionais combatem a exclusão e tentam criar sociedades para todos. Mas as tendências à desigualdade e a lentidão das mudanças impõem estratégias muito determinadas para garantir os avanços mínimos aos setores mais vulneráveis da sociedade.

Dos 25 milhões de brasileiros com deficiência, pelo menos 4 milhões estão no Estado de São Paulo. Para que as políticas públicas cheguem a essas pessoas de forma resolutiva, o governo de São Paulo criou, no início deste ano, a Secretaria dos Direitos da Pessoa com Deficiência. Seguiu o exemplo da prefeitura da capital paulista, onde, em 2005, criamos uma secretaria municipal voltada ao mesmo propósito (chefiada pela atual vereadora Mara Gabrilli).

O exercício da cidadania da pessoa com deficiência tem mão dupla. De um lado, a sociedade deve prover a todos a inclusão; de outro, o portador de deficiência deve ter efetivo poder em relação ao seu direito de acesso a bens, produtos e serviços.

A política que traçamos no Ministério da Saúde em 2001 resultou na criação, neste governo, da Rede de Reabilitação Lucy Montoro, que terá unidades em seis macrorregiões do Estado.

Esses hospitais, além de dispor de médicos fisiatras e equipes multidisciplinares completas, trabalharão para mudar paradigmas e dar acesso às modernas tecnologias para a vida independente e a inclusão no mercado de trabalho.

Já há dois em andamento: um em Campinas, o outro na cidade de São Paulo. Até o final do governo, teremos concluído e colocado em funcionamento todos os seis centros, cuja capacidade será de 450 mil atendimentos por mês.

Serão centros de referência, incorporando todas as tecnologias mais modernas, formando e aperfeiçoando os profissionais da área e exercendo um poderoso efeito na expansão do atendimento de reabilitação, apoiados por uma unidade móvel lançada hoje que percorrerá as mais diversas regiões do Estado, ampliando o acesso aos serviços da rede.

O caminho percorrido até aqui não foi tão longo. Embora os registros históricos no Brasil nos remetam ao século 19, quando da fundação do Real Instituto de Meninos Cegos (1857), somente na década de 1980 foi definido o Ano Internacional da Pessoa Deficiente (1981), seguido pela Década da Pessoa Deficiente (1982-1992).

Desde então, houve um efetivo amadurecimento do Estado na definição de políticas voltadas à inclusão social, que acompanhou o fortalecimento do SUS (Sistema Único de Saúde), incorporando, em 1992, os procedimentos legais para a oferta de órteses, próteses e meios auxiliares de locomoção.

No governo Fernando Henrique Cardoso, as políticas públicas nessa área deram um salto.

Com a edição, em 1999, do decreto nº 3.298, que regulamentou a lei nº 7.853/89, o Ministério da Saúde criou as redes estaduais de assistência à pessoa com deficiência, privilegiando serviços hierarquizados e descentralizados. Pela primeira vez, previu-se que as políticas de governo deveriam dar atenção integral à pessoa com deficiência, um trabalho que não se limita ao aspecto da saúde. Visa, sobretudo, a sua inclusão plena em todas as esferas da vida social.

Isso significa tornar a sociedade mais acessível às pessoas com deficiência sob vários pontos de vista: arquitetônico -sem barreiras ambientais; comunicacional -sem barreiras na comunicação interpessoal, escrita e virtual; metodológico -sem barreiras nos métodos e técnicas de estudo ou trabalho; instrumental -sem barreiras nas ferramentas de trabalho, estudo ou lazer; programática -sem barreiras embutidas em leis, normas, decretos e regulamentos; e atitudinal -sem preconceitos, estigmas, estereótipos e discriminações.

Inclusão é um valor de toda a sociedade que acolhe pessoas com e sem deficiência. Só haverá cidadania a partir do reconhecimento de que somos todos diferentes. O acesso igualitário aos serviços, à tecnologia, ao mercado de trabalho e à garantia da integralidade na saúde, na educação e na moradia acessível não é um favor: é um direito.

JOSÉ SERRA , 66, economista, é o governador de São Paulo. Foi senador pelo PSDB-SP (1995-2002), ministro do Planejamento e da Saúde (governo Fernando Henrique Cardoso) e prefeito de São Paulo (2005-2006).

LINAMARA RIZZO BATTISTELLA , médica fisiatra, é secretária estadual dos Direitos da Pessoa com Deficiência, professora associada da Faculdade de Medicina da USP e presidente honorária da ISPRM (International Society of Physical and Rehabilitation Medicine).

Reforma de autor


Dora Kramer
DEU EM O ESTADO DE S. PAULO


Alguém entre os conhecidos do senhor e da senhora, gente cuja intimidade com a linguagem das alíquotas limita-se ao doloroso ato de pagar imposto, sabe dizer no que consiste a proposta de reforma tributária em discussão no Congresso?

Pois é. De vez em quando há mesmo desses debates herméticos que parecem feitos para humilhar os não-iniciados. Percebemos a importância do tema, mas não captamos o espírito da coisa em toda sua grandiosidade.

Educadamente, boiamos, por exemplo, enquanto os especialistas trocam argumentos sobre as regras da navegação de cabotagem, destrincham em detalhes os cálculos do fator previdenciário ou se exaltam por causa dos metros cúbicos do Rio São Francisco em vias de transposição.

No caso da reforma tributária é impossível dispensar um entendimento ainda que simplificado, resumido a vantagens e desvantagens em jogo, dado tratar-se do bolso do contribuinte.

Mas, sobre o assunto a que de repente o governo resolveu dar caráter de urgência urgentíssima depois de seis anos de plácida indiferença, de concreto só se depreende que tem política eleitoral no meio.

As explicações ficam por conta do Bonifácio.

São Paulo é contra porque, argumenta a equipe do governador José Serra, o diabo mora nos detalhes da proposta. Minas Gerais aceita, desde que sejam feitos “ajustes”, o governo reúne governadores do Norte, Nordeste e Centro-Oeste para “isolar” São Paulo, mas ninguém sabe exatamente para quê.

Nem o presidente Luiz Inácio da Silva, que reúne sua coordenação política e pede a aprovação o “mais rápido possível” porque seria um “sinal importante para a economia”. Serviria, no dizer do ministro da Articulação Política, José Múcio, para combater a “síndrome da crise”.

Não há acordo mínimo em torno de coisa alguma por parte dos governadores, dos parlamentares, dos setores produtivos, cada um defende um naco de uma sigla dentre as inúmeras incompreensíveis, mas a prioridade, passou a insistir o governo, é total. É preciso aprovar o “texto-base” ainda este ano, deixar os “pontos polêmicos” para depois, fazer alguma coisa, como diz o ministro da Fazenda, Guido Mantega, “o quanto antes”.

Uma discussão riquíssima em adjetivos e conceitos vagos, vontades prementes, mas paupérrima em termos de conteúdo.

Objetivamente: qual efeito terá a aprovação do “texto-base” - vale dizer, a proposta assinada pelo relator Antônio Palocci - de qualquer maneira em 2008 se os pontos polêmicos alteram todo o conteúdo? Ademais, que urgência se impõe neste momento que já não tenha se imposto há muito tempo sem que merecesse tal grau de aflição e empenho?

Segundo o presidente Lula, exatamente o fato de a polêmica se estender há muito tempo. Mais não diz sobre sua disposição para organizar e arbitrar os contraditórios. Apenas reclama dos “óbices” criados pelos adversários e os acusa de defender a reforma só “da boca para fora”.

Não obstante ser este o único modo conhecido de expressão audível, o governo é dos primeiros a falar muito e fazer nada em prol da reforma tributária. Deixa o assunto caminhando à deriva, não articula possibilidades, faz de conta que não vê as dificuldades e, quando o interesse político se impõe, alega ter feito a sua parte e cobra os votos da maioria.

A reforma que será votada não importa, desde que seja aprovada. Para dar ao presidente Lula, e também ao relator Antônio Palocci em seu processo de reabilitação, a autoria para efeito de registro histórico.

O objetivo, portanto, é a conquista da chancela. Tal como já ocorreu com a reforma da Previdência no setor público. Votada na base do “texto-base” no primeiro mandato, está até hoje incompleta, mas consta no portfólio de reformas aprovadas pelo governo Lula.

Uma proposta de reforma tributária aprovada sem eixo, sem efeitos conhecidos sobre o desembolso geral, cheia de atalhos e agrados setoriais, desprovida de uma lógica que sirva de base para uma explicação com começo, meio e fim sobre seu significado, resulta em nada sob o aspecto substantivo.

Pode até ter um tênue presente, mas desmancha em seguida.

Se ninguém se acerta agora, se o governo não se dispõe a dirimir atritos por receio de desgaste político, não será em 2009, muito menos em 2010 que haverá possibilidade de o entendimento entre as forças políticas transformar o “texto-base” numa genuína reorganização do sistema de tributos.

A peça publicitária, porém, está garantida. Para todos os efeitos, consta que o governo mandou sua proposta, assim como fará em breve com a reforma política. Se não completou o serviço, culpa do Congresso, o irresponsável de plantão.

Ou mais especificamente da oposição que, com sua vastíssima maioria, paralisa os movimentos dos 15 partidos da aliança governista, neutraliza os 80% de popularidade do presidente da República, anula o poder indutor de um governo, enfim, como se sabe, não deixa o homem trabalhar.

A porta principal


Nas Entrelinhas :: Luiz Carlos Azedo
DEU NO CORREIO BRAZILIENSE


O diabo no meio do redemoinho, porém, é a proposta de acabar com a reeleição e aumentar todos os mandatos para cinco anos, com exceção dos do Senado, que seriam reduzidos

Por mais que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva esbraveje contra os agourentos da crise, os fatos são teimosos: a realidade mudou. De um lado, a crise mundial já provocou recessão nos Estados Unidos, Itália, Alemanha e Japão, entre outros países, e as nossas indústrias estão com atividade reduzida, algumas até parando. De outro, começou a contagem regressiva para a sucessão presidencial de 2010 e todas as ações políticas miram esse objetivo, o que acaba por absorver a energia do próprio governo federal. Manda o bom senso, portanto, fazer o possível e esquecer os projetos mirabolantes.

Final da linha

Nos últimos 18 anos, o Brasil transitou do modelo autárquico de substituição das importações para o projeto de integração à economia globalizada. Esse processo foi iniciado pelo presidente Collor de Mello, com a abertura para as importações, e avançou durante os governos FHC e Lula. Com o Plano Real, o presidente Fernando Henrique Cardoso aproveitou a poupança externa e o estímulo fiscal para estabilizar a moeda. Mas capotou na crise cambial de 1999, quando o estímulo fiscal chegou ao limite, pressionando a taxa de juros e a carga tributária. O governo Lula deu seqüência ao mesmo projeto de integração, na base do “mais do mesmo”: juros altos, câmbio flutuante e superávit fiscal. Graças à grande liquidez global e à elevação dos preços das commodities agrícolas e minerais, usou a poupança externa para ampliar o mercado interno. Crédito direto, gastos públicos, crescimento da massa salarial e programas sociais como o Bolsa Família garantiram o sucesso da empreitada.

Agora, o tempo fechou. Acabou o crédito mundial abundante, as taxas de juros do mercado internacional estão subindo. A partir dos Estados Unidos, instalou-se uma crise financeira nos países desenvolvidos que atinge a periferia emergente. China, Rússia, Índia e Brasil, em diferentes escalas, estão sentindo o tranco. Pior: a China replica para o Brasil e outros países o impacto que sofre com a redução do consumo nos Estados Unidos. O setor siderúrgico brasileiro, por exemplo, está em retração. A crise mundial será longa; não estamos fora disso.

Nova agenda

A taxa de crescimento do PIB brasileiro, que está prevista para 5,2% este ano, deverá cair a 2% em 2009, apesar da retórica oficial otimista de que cresceremos 4%. O governo Lula enfrenta a borrasca. Mas ela é como a chuva em Santa Catarina, não tem dó nem piedade. É maior do que as medidas anticrise adotadas. Não só aqui, é maior no mundo inteiro. Alavancado pela liquidez internacional, com elevadas taxas de juros domésticas, o nosso atual modelo econômico não é capaz de viabilizar os investimentos e o consumo. O Brasil precisa reinventar sua economia; o governo Lula não tem tempo para isso.

A crise mudou o eixo do debate político. A aposta do governo Lula para consolidar a hegemonia do bloco PT-PMDB e eleger seu sucessor é o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), um misto de fomento da atividade produtiva e plataforma eleitoral. O objetivo é consolidar a candidatura da ministra-chefe da Casa Civil, Dilma Rousseff. Esse esquema funcionou com sucesso no primeiro turno das eleições municipais. No segundo turno, engasgou. Pode ser a salvação da lavoura para enfrentar a crise, mas já não exerce o mesmo fascínio de antes junto aos aliados. Apenas empata o jogo.

Entretanto, o governo desengavetou duas reformas. Uma é a tributária, que especialistas consideram temerária por causa crise, mas que possibilita a construção de um discurso contra o “Sul Maravilha”, principalmente São Paulo. O risco desse embate no Congresso é consolidar um conflito entre os estados meridionais e o resto do país, divisão com raízes históricas, que a União sempre combateu, mas agora quer alimentar. A outra é a política, cujas intenções são obscuras.

Aparentemente, o fim das coligações e a janela para o troca-troca partidário abririam caminho para consolidação de dois blocos partidários, um governista e outro de oposição. O diabo no meio do redemoinho, porém, é a proposta de acabar com a reeleição e aumentar todos os mandatos para cinco anos, com exceção dos do Senado, que seriam reduzidos. É uma espécie de saída pela porta dos fundos. A porta da frente é discutir tudo isso e o novo modelo econômico na campanha eleitoral de 2010, sem mudar as regras do jogo.

O jogo do governo vai recomeçar do zero


Villas-Bôas Corrêa
DEU NO JORNAL DO BRASIL


Talvez não seja o melhor momento para uma primeira e cautelosa tentativa de avaliação das repercussões políticas da calamidade que assola Santa Catarina e castiga o Espírito Santo e o estado do Rio, quando as abnegadas equipes de socorro ainda buscam encontrar dezenas de pessoas desaparecidas e os milhares de desabrigados que perderam tudo e não sabem como emendar o fio da vida.

Mas, acredito que seja preferível trincar os dentes e avançar do que esconder o rosto para não enxergar a realidade. É de uma evidência transparente que o presidente Lula terá que rever todo o seu esquema tático de campanha, centrado na prioridade assumida e confirmada da eleição da ministra Dilma Rousseff para sua sucessora nas urnas de 2010.

Além da antecipação que agora se revela como temerária, o presidente terá de rever datas e táticas, e recomeçar abaixo do zero. Com as obras de reconstrução de uma imensa e próspera faixa do nosso território, o Programa de Aceleração do Crescimento, o PAC, talismã da candidata oficiosa, passa a segundo plano. Ou, na mais lisonjeira das hipóteses, dividirá a prioridade com uma enxuta listagem de obras de absoluta e indiscutível urgência.

Mas, o mutirão que desafia o governo é de intimidar o maior ministério da gastança de todos os tempos, com exageros que raspam na leviandade. Os 37 ministros, em sua maioria, são tão desconhecidos da população como o que fazem. O que se sabe por alto é o custo exorbitante do monstrengo, que poderia ser reduzido à metade.

Quando o National Bureau of Economic Research, com o seu aparato técnico, anuncia aos quatro cantos que a recessão nos Estados Unidos já vem se arrastando por meses, com a produção desacelerada, o crescimento dos índices de desemprego e a estagnação dos salários, o silvo de alarme dá a volta ao mundo.

Na mídia, todos os dias a cota de advertência cutuca os desatentos. Inútil querer jogar para a platéia com a bola quadrada.

A buraqueira no cronograma de obra do PAC, em Santa Catarina, vai exigir, tão logo soe a hora de refazer as contas, não apenas créditos milionários para o reparo do que as enchentes levaram de água abaixo, mas a retomada do cronograma do PAC, com os seus reajustes. Durante todo o mês de novembro, em Florianópolis, Vale do Itajaí, Blumenau e amplas áreas da região, além do socorro às vítimas, com a ajuda do movimento de solidariedade que mobilizou o país, o balanço das obras destruídas dobra o desafio para o mutirão que, na primeira etapa, apenas cuidará de recompor o que estava em obras e virou monturo.

Durante o ano, os tratores ficaram 100 dias parados nos atoleiros das rodovias estaduais. Em reverência à verdade, o Departamento de Nacional de Infra-Estrutura de Transporte (Dnit-SC) torna pública a sua frustração: a meta de fechar o ano com 70% das obras do PAC concluídas encolheu para 50%.

E o governo, sentindo a ardência do risco de uma degringolada nos índices recordistas de popularidade do presidente Lula, abre o cofre, que não é hora de pensar em economia. Até onde a vista alcança, novos cenários ampliam o horror da tragédia. Os portos de Itajaí e Navegantes, responsáveis por 4% das exportações brasileiras, somam perdas no total de US$ 370 milhões, no ritmo de US$ 31 milhões por dia.

O governo está perdido, ou zonzo, frente a um quadro que se desmancha diante de seus olhos, como se a tinta escorresse pela tela.

E não há como remendar os rombos antes que a normalidade seja restaurada.

Um pulso firme, de braço amigo


Rosângela Bittar
DEU NO VALOR ECONÔMICO

A receita já existe há meses e vem sendo transmitida boca a boca, sem formalidades inúteis. Primeiro, tem que ser alguém muito ligado ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva, isto é uma necessidade e uma exigência; o escolhido tem que possuir autoridade política e liderança partidária; é preciso ser um quadro com capacidade para conduzir alianças, no plano nacional e nos Estados. Com estas características, o indicado terá que ter força para aproximar o presidente da República e o partido. Assim, ficará viabilizada, sem maiores riscos, a sucessão, e garantidas as conquistas do governo.

Este é o perfil declarado do futuro presidente do PT, definido pelos próprios dirigentes partidários e assessores do presidente, com negociações em estágio avançado. O nome que pode a ele se amoldar, no entanto, não está oficialmente confirmado, embora seja unânime a conclusão de que só há um: Gilberto Carvalho, chefe do gabinete do presidente da República.

Numa ala do partido, informa-se que Lula vetou a saída de Gilberto alegando que ele está muito bem no Palácio e é melhor procurarem outro candidato. É verdade, disse mesmo. Outras opiniões abalizadas, porém, avaliam que o presidente sabe que não há outro nome e está vendendo caro o passe de seu mais próximo auxiliar. Vender caro significa que quer unanimidade e facilidade para o trabalho de quem vai presidir o partido na sucessão presidencial. E, mais perto da eleição, para não haver desgastes desnecessários desde hoje, vai ceder.

O sucessor indicado por Lula até este momento, a ministra Dilma Rousseff, da Casa Civil, tem que ser preparada interna e externamente. Dilma existe menos no PT do que nacionalmente, onde as pesquisas já lhe dão de 8 a 10% de conhecimento e apoio. Será do presidente do PT, a partir de determinado momento do processo, a tarefa de aproximá-la mais do partido, sobretudo das bases, que Lula comanda apenas com o discurso mas esta é uma habilidade que ninguém mais consegue reproduzir. Ao mesmo tempo em que prepara o candidato, o dirigente petista terá a função de organizar o partido, fortalecê-lo para não perder tudo o que considera haver conquistado nos dois mandatos presidenciais.

Neste aspecto a crise econômica atual é considerada um fator importante na definição de rumos. Acredita os petistas que se o governo conseguir gerir bem a crise, não deixar que tenha impactos sobre três pilares que considera características de suas gestões - emprego, baixa inflação e distribuição de renda - manterá retraídos os problemas maiores. Se houver, porém, influência da crise e o PT começar a ter medo de perder a eleição, desesperar-se com a proximidade da desocupação da máquina, o futuro será cada vez mais uma incógnita.

O novo presidente terá que ser capaz, também, de não deixar o processo de eleição direta, mesmo com uma base que Lula ainda consegue comandar, transformar-se numa guerra interna a estraçalhar a coesão do partido, que o presidente considera fundamental para ter êxito na disputa.

Isto não significa que estão proibidas as prévias para escolha do candidato à sucessão, sempre um fator de tensão. Mas as expectativas têm que estar sob o controle de Lula. Assim, o nome do momento é Dilma, que o presidente do PT terá que fazer passar sem traumas pelas instâncias do partido. Se, em outro momento mais à frente, for o de Antonio Palocci, por exemplo, - que pode ser deslocado do quadro de candidatos ao governo de São Paulo caso a crise econômica se agrave - o presidente do PT, sendo muito ligado a Lula, terá papel fundamental na mudança para o nome de quem pode levar o Brasil ao porto seguro.

Há, ainda, a nunca esquecida hipótese de ter o PT que transformar o trabalho em torno de um sucessor para, objetivamente, tornar viável o terceiro mandato para o próprio Lula.

Em diferentes alas partidárias colhe-se a opinião de que Gilberto Carvalho é mesmo a opção certa para qualquer destas tarefas. Marco Aurélio Garcia, assessor do presidente em assuntos de política externa, assumiu a presidência do PT na crise do dossiê armado pelo partido contra adversários políticos, foi considerado independente demais, cheio de idéias próprias, costurou pessoalmente o acordo com o PMDB que resultou na eleição de Arlindo Chinaglia para a presidência da Câmara, e voltou ao governo queimado entre os petistas.

O atual presidente, Ricardo Berzoini, não teria a menor condição para permanecer no cargo, já não é tão próximo a Lula e não lidera o partido, muito menos detém as condições necessárias para negociar alianças.

Na Presidência da República, gozando da confiança de Lula e com boa base no PT, há o secretário geral Luiz Dulci, que criou para si, porém, arestas em alas partidárias inteiras a partir das últimas eleições municipais. Tal como ocorreu com o petista Tarso Genro, ministro da Justiça, que já se incompatibilizara antes mesmo das últimas eleições. O atual secretário geral do partido, José Eduardo Cardozo, citado entre os presidenciáveis do partido, ainda é visto como alguém não totalmente absorvido internamente, depois de ter, nas avaliações internas, feito um discurso para o público externo nas crises éticas atravessadas pelo partido.

Nos últimos meses, têm aparecido com maior nitidez os movimentos do ex-ministro e ex-presidente do PT, José Dirceu, para voltar à cena partidária. Artífice das candidaturas Lula e das alianças partidárias que sustentaram os dois mandatos petistas na Presidência da República, Dirceu não tem perdido uma só oportunidade para se manifestar, por meios legalmente ainda à sua disposição, hoje, sobre todos os assuntos nacionais e partidários. Pode conseguir, até o processo de eleições diretas, resgatar seu espaço, mas ainda não conseguiu.

Um eleição sem José Dirceu e sem Lula é um desafio imenso para o PT, que tem a responsabilidade de apresentar seu projeto renovado. Não pode ser menos do que acredita estar fazendo, nem pode apresentar-se com resquícios oposicionistas que ainda o acompanharam nas últimas campanhas eleitorais.

Rosângela Bittar é chefe da Redação, em Brasília. Escreve às quartas-feiras

Uma empulhação no Congresso


Fernando Rodrigues
DEU NA FOLHA DE S. PAULO


BRASÍLIA - O modismo agora no Congresso é a tese da "coincidência de mandatos". Trata-se de unificar as eleições de todos os cargos eletivos do país: vereador, prefeito, deputados, governador, senador e presidente. Os mandatos passariam a ter cinco anos, sem reeleição para os postos executivos.

O Brasil adotou os quatro anos de mandato com chance de uma reeleição só a partir do pleito de 1998. Dez anos são insuficientes para determinar se o modelo é bom ou ruim. Mudar agora só confirmaria a obsessão nacional pela constante alteração nas regras -contrariando o slogan lulista segundo o qual o brasileiro não desiste nunca.

Adversários do modelo sempre sacam do coldre o sofisma sobre a alta taxa de reeleição entre os prefeitos e governadores que disputam no cargo um segundo mandato. Mas essa é a lógica do sistema. O ciclo político é de mandatos com oito anos com uma espécie de mata-burros no meio. Administradores rejeitados ficam pela estrada.

Marta Suplicy que o diga.

A tese a favor da coincidência de mandatos pode ser resumida em dois pontos: 1) o Brasil pára a cada dois anos, por que as eleições de prefeitos e de vereadores são separadas das outras, e 2) custa muito caro fazer tantas eleições.

Primeiro, o Brasil não pára em ano de eleições. Mais de 5.500 prefeitos foram eleitos em outubro.

Nenhuma cidade entrou em colapso por causa das campanhas. Sobre o custo das eleições, o valor é bem menor do que a soma das emendas ao Orçamento apresentadas por deputados e senadores.

Em democracias desenvolvidas, quanto mais se vota, melhor. Na cabeça de muitos no Congresso, o raciocínio é o oposto. Querem os eleitores votando menos. Suas excelências seguem em marcha batida para consolidar aquela triste máxima: toda vez que um deputado tem uma idéia, o Brasil piora.

Visão democrática


Merval Pereira
DEU EM O GLOBO


NOVA YORK. A mudança de estratégia da política externa do futuro governo americano, explicitada pelo próprio presidente eleito, Barack Obama - que pretende espalhar "ideais que brilham como farol para o mundo: democracia e justiça; oportunidade e uma inabalável esperança, valores americanos que são nossos melhores produtos de exportação" -, vai dar prioridade à ajuda para o desenvolvimento de países aliados que tenham instituições democráticas fragilizadas pela pobreza e são presas fáceis de grupos delinqüentes, sejam terroristas ou traficantes de drogas e armas.

Também nos países em que os Estados Unidos travam guerras, como o Iraque e o Afeganistão, as ações militares serão acompanhadas de ações sociais e institucionais, para criar um ambiente em que seja possível prosperar a democracia. O colunista do "New York Times" David Brooks revelou ontem que essa nova estratégia responde a um sentimento generalizado entre as tropas americanas naqueles dois países, cujas impressões do campo de batalha transformaram-se em documentos de ampla circulação nos meios militares.

A conclusão é que não adianta ter poder militar para aniquilar o inimigo se o país não tem estruturas sociais e institucionais que o façam prosseguir sozinho. Países frágeis e falidos se tornariam refúgios para todo tipo de atividade ilegal. O secretário de Defesa Robert Gates teria sido mantido no cargo por causa da sua adesão anterior a esses conceitos, que tiveram em Barack Obama a melhor acolhida.

A imposição da democracia pela força seria uma tentativa inócua, mas criar condições sociais e institucionais para que a democracia floresça nesses países ameaçados seria uma maneira inteligente de combater os adversários da democracia. Não se fala em espalhar a democracia pelo mundo, como na gestão Bush, mas em dar condições aos governos ameaçados de fortalecer suas instituições e criar um ambiente de responsabilidade no serviço público.

É previsível que diversas agências americanas estarão trabalhando em conjunto nessa nova fase da diplomacia americana e, ao contrário do que acontecia ultimamente por receio de infiltração de terroristas, o governo Obama deve estimular a ampliação de intercâmbios universitários através do mundo.

Com relação à Colômbia, onde o governo Bush investiu muitos milhões de dólares num programa de combate à produção de cocaína que não teve efeito direto na contenção da droga, mas está sendo exitoso na parte de segurança interna e no combate à guerrilha, é provável que a nova administração mude seu foco, passando a ações mais construtivas na parte institucional e reduzindo o aspecto militar do projeto. Mesmo porque o presidente eleito já levantou muitas dúvidas com relação à violação dos direitos humanos no combate ao terrorismo na Colômbia.

Essa estratégia de reforçar os aspectos institucionais no combate ao terror tem tudo a ver com a guerra ao tráfico de drogas em países como o Brasil, e às gangues que dominavam as favelas do Haiti. A atuação das tropas americanas no Haiti foi desastrosa, deixando muito mais ressentimentos no país do que resultados positivos pela violência e truculência da ação. O Brasil assumiu o comando da Força de Paz a pedido dos Estados Unidos, e utilizou a estratégia de passar a prestar serviços básicos à população, depois de dominar as partes de Porto Príncipe que estavam controladas por gangues, o que foi fundamental para o êxito da força internacional de paz.

A primeira região a ser controlada foi a de Bel-Air, no centro da cidade, onde está o palácio governamental; em seguida veio o controle de Cité Militaire, e depois a maior favela do país, Cité Soleil, onde vivem cerca de 300 mil pessoas. A ação do Exército brasileiro no Haiti é considerada inovadora no campo militar, o desenvolvimento de uma nova doutrina de emprego das forças militares, que poderia perfeitamente ser utilizada no combate às quadrilhas de drogas que ocupam os morros do Rio de Janeiro.

O anúncio do governo Sérgio Cabral de que o tráfico foi enxotado do Morro Dona Marta, em Botafogo, e que o governo do estado ocupará o local não apenas com soldados, mas com ações comunitárias, segue o mesmo objetivo, de combinar a ação militar com o fortalecimento das instituições do Estado, seja ele nacional ou local, para permitir que a sociedade receba os benefícios de um governo democrático, com acesso aos serviços públicos fundamentais, como saúde e educação.

Não foi à toa que o presidente eleito Barack Obama, ao apresentar sua equipe de segurança nacional, ressaltou que, para ser forte no exterior, os Estados Unidos têm que ser fortes internamente, reforçando seu sistema de educação e as oportunidades iguais a todos.

Laicismo em doses diárias


Alberto Dines
DEU NO OBSERVATÓRIO DA IMPRENSA


Enquanto os leitores mais exigentes são obrigados a contentar-se com a caricatura do jornalismo americano oferecida às segundas-feiras no caderno do New York Times encartado na Folha de S.Paulo, o diário espanhol El País oferece todos os dias, por 8 reais, um show de bom jornalismo, inteligência e informação privilegiada (e sem infográficos, professor Di Franco!).

Enquanto nos bastidores trava uma guerra contra a influência da Opus Dei na mídia espanhola e ibero-americana, El País vem acompanhando com muita seriedade o despertar do laicismo na sociedade européia.

No domingo (30/11, na página 30 inteira e com destaque na capa), o jornal entrevistou o pai da aluna da escola pública em Valladolid que venceu a demanda judicial e obrigou a direção do estabelecimento a retirar os símbolos religiosos dos locais públicos. Fernando Pastor, porta-voz da Associación Escuela Laica agora denuncia as represálias contra sua filha: "Ahora insultan a mi hija en clase. No sé se aguantaré".

Dia seguinte, segunda (1/12), com duas páginas (e chamada na capa), o jornal madrileno investe contra a exibição de crucifixos nos espaços públicos dos governos e revela as sucessivas vitórias da sociedade civil espanhola para garantir o caráter não-confessional do Estado. O último feito é atribuído aos jovens casais que exigem a retirada do crucifixo em ambientes onde se celebram casamentos civis.

Na mesma edição, um editorial sereno e firme ("Aulas sin crucifijo", página 26) elogia o governo Zapatero por não converter a questão num conflito político. Basta que respeite a lei.

Secularização vs. Fanatismo

A secularização da Espanha é um fato novo e contrasta vivamente com uma história de fanatismo religioso e brutalidade. A Espanha institucionalizou a Inquisição no século 15 e a transformou num aparelho policial; promoveu pogroms contra judeus e mouros antes mesmo da expulsão de 1492; criou duas poderosas ordens religiosas opostas, porém com enorme penetração mundial (a Companhia de Jesus e a Opus Dei); e, como se não bastasse, a Igreja espanhola foi um dos baluartes do franquismo. E também vítima da paranóia de grupos extremistas republicanos.

Antonio Hernández Gil, o jurista que em 1977 mandou tirar o crucifixo da sala das Cortes, era profundamente católico. Teve a grandeza para perceber os perigos de um Estado confessional. Sabia que religião misturada à política inevitavelmente acaba em banho de sangue.

A chacina de Mumbai mostra que tinha razão.

O fantasma das rebeliões

José Luís Fiori
DEU NO VALOR ECONÔMICO


"O mais provável é que voltem à ordem do dia as revoltas e revoluções sociais. Elas não serão socialistas nem proletárias, mas adquirirão maior intensidade e violência nos territórios situados em "zonas de fratura"." - José Luís Fiori, Valor Econômico, 5/11/2008

Não existe uma teoria da revolução, existem várias. Mas quase todas reconhecem a existência de um denominador comum, na experiência revolucionária dos séculos XIX e XX: as revoltas acontecem - quase sempre - em sociedades fraturadas, com Estados enfraquecidos pelas guerras e por grandes crises econômicas, e situados em "zonas de fratura", onde se concentra a pressão geopolítica da disputa entre as grandes potências. É nestes territórios, que costumam nascer e multiplicar as rebeliões mais importantes e resistentes, que são sempre violentas, mas não tem homogeneidade ideológica e não produzem grandes mudanças estruturais imediatas, como costuma acontecer no caso das revoluções sociais e políticas bem sucedidas. Pois bem, se esta tese for correta, não é difícil de prever o novo mapa mundial das rebeliões, deste início do século XXI. Basta seguir os passos da competição geopolítica e econômica das grandes potências, depois do fim da Guerra Fria, e localizar os seus pontos de maior pressão competitiva, onde estas potências exercem de forma mais direta sua capacidade de dividir e mobilizar as forças locais, umas contra as outras, dentro dos Estados situados nestes "tabuleiros geopolíticos" mais disputados. Alguns destes pontos são mais visíveis, e de explosividade imediata, outros, são menos visíveis, e de combustão mais lenta

Tudo começa em 1991, com a desintegração da União Soviética e a entrada das forças da Otan ou dos EUA, na Europa Central, nos Bálcãs, no Cáucaso e na Ásia Central, onde se situa, neste momento, a região mundial de maior complexidade geopolítica, envolvendo os territórios do Afeganistão, Paquistão, norte da Índia, Caxemira e Tibete. Não há nenhuma grande potência que não esteja envolvida em alguma destas áreas, e nas disputas em última instância, pelo controle desta extensa região, utilizando ou incentivando grupos e organizações locais de todo tipo, numa sucessão de revoltas, rebeliões, atentados terroristas e guerras civis que não têm como parar, a menos de um acordo multilateral improvável, ou de uma retirada de todas as grandes potências envolvidas. Mas a retirada é rigorosamente impossível, do ponto de vista da lógica do sistema e dos interesses e posições que já foram ocupadas pelos participantes deste neste novo "grande jogo". Alfred Mackinder e Nicholas Spykman - os dois maiores teóricos geopolíticos anglo-americanos - definiram esta faixa de terra que vai do Báltico até a China como uma fronteira decisiva para o controle do poder mundial, situada entre as "potências marítimas" e as "grandes potências terrestres", ou seja, entre a Grã-Bretanha e os Estados Unidos, de um lado, e do outro, sobretudo, a Rússia e a China.

Logo em seguida, neste "mapa da pólvora", aparece a África Negra. Depois de 2001, os EUA mudaram sua política externa e aumentaram sua presença no continente africano. Mas esta mudança de posição não foi um fenômeno isolado. Foi seguida pela União Européia, Rússia, China, Índia e também pelo Brasil. Em poucos anos, o cenário africano mudou: aumentou a competição imperialista e, como nos séculos anteriores, as potências e suas grandes empresas utilizam a seu favor e muitas vezes incentivam as lutas tribais e as guerras locais entre os Estados que nasceram da decomposição dos seus próprios impérios coloniais. Neste momento, já estão em curso rebeliões e guerras civis no Congo, na Somália, no Zimbábue e na Nigéria, com participação de países e empresas de fora da África, e com o envolvimento direto de Angola, Ruanda, Namíbia e Burundi. Também neste caso não há perspectiva de acordo local ou de retirada das grandes potências, e o mais provável é que a África se transforme - uma vez mais - em território privilegiado da corrida imperialista e num verdadeiro "semilheiro" de rebeliões, de todo tipo.

E o que se pode prever com relação à América do Sul? Durante os séculos XIX e XX, foi uma região de influência anglo-americana, sem grandes disputas imperialistas. Mas neste início do século XXI, o cenário e as perspectivas mudaram. De forma lenta, mas implacável, a pressão da nova corrida imperialista que começou na década de 90 está alcançando a América do Sul, e deve produzir os mesmo efeitos do resto do mundo. Já fazem parte deste processo o envolvimento militar americano com a Colômbia, a reativação da IV Frota Naval dos EUA para o Atlântico Sul, a intensificação dos conflitos fronteiriços entre Venezuela, Colômbia e Equador, e os conflitos internos da Bolívia e da própria Colômbia. Mas também: a criação da Unasul e do Conselho de Defesa da América do Sul, e todos os projetos políticos e econômicos de integração regional assim como os grandes projetos de integração comercial e de investimento produtivo na região, da UE, da China, da Rússia, e demais países de fora do continente. Tudo indica que a América do Sul foi incorporada e não tem mais como escapar da pressão competitiva mundial, produzindo uma maior integração do continente, mas também uma maior disputa entre os seus Estados e, em particular, entre o Brasil e os Estados Unidos. Nesta mesma direção, algumas áreas da América do Sul também devem se transformar em "zonas de fratura" internacional, e aí podem surgir conflitos e rebeliões que envolvam as grandes potências e as empresas que competem pelo controle da região. No caso das regiões de maior densidade indígena, nos próximos anos, estas rebeliões tenderão a ser de direita, brancas e racistas.

Finalmente, sobre este pano de fundo de deve e pode calcular o impacto da nova crise econômica mundial. Será prolongado e deverá atingir todas estas "zonas de fratura", acentuando suas tendências mais perversas. Por isto, neste momento, apesar de que se fale muito de economia, existe um outro fantasma que ronda o mundo e assusta mais os seus dirigentes: o fantasma das rebeliões.

José Luís Fiori é professor titular do Instituto de Economia da UFRJ e autor do livro "O Poder Global e a Nova Geopolítica das Nações" (Editora Boitempo, 2007). Escreve mensalmente às quartas-feiras.