segunda-feira, 8 de dezembro de 2008

Serra amplia liderança para 2010; Ciro cai, e Dilma sobe


DA REDAÇÃO
DEU NA FOLHA DE S. PAULO

Governador paulista lidera com taxas que variam de 36% a 47%, conforme o cenário

O deputado Ciro Gomes caiu de 5 a 6 pontos percentuais, enquanto a ministra da Casa Civil ganhou cinco pontos; Heloísa Helena ficou estável

O governador paulista José Serra (PSDB) reforçou sua condição de candidato favorito à sucessão presidencial em 2010 após as eleições municipais nas quais reelegeu Gilberto Kassab prefeito de São Paulo, consolidando sua aliança com o DEM.

A menos de dois anos da eleição, Serra lidera com taxas que variam de 36% a 47%, conforme o cenário. O segundo colocado, o deputado Ciro Gomes (PSB), caiu de cinco a seis pontos percentuais, enquanto a ministra da Casa Civil, Dilma Rousseff (PT), subiu cinco pontos e varia hoje de 7% a 12%. A ex-senadora Heloísa Helena (PSOL) manteve-se estável.

No cenário 1, Serra subiu de 38% para 41%, enquanto Ciro caiu de 20% para 15%. Heloísa

Helena manteve seus 14%, e Dilma subiu de 3% para 8%.

O governador mineiro Aécio Neves (PSDB) -que, com certa dificuldade, conseguiu eleger Marcio Lacerda (PSB) para a Prefeitura de Belo Horizonte- também melhorou um pouco seu desempenho: ele oscilou de 15% para 17% no cenário em que aparece como candidato do PSDB -ainda está atrás de Ciro (25%), mas aparece empatado com Heloísa Helena (19%).

Quando Ciro é retirado da disputa, Serra chega a alcançar 47%, contra 17% de Heloísa e 10% de Dilma; se Aécio é o candidato do PSDB, Heloísa assume a liderança com 27%, contra 23% do governador mineiro e 12% da ministra da Casa Civil.

Por fim, no cenário em que tanto Serra quanto Aécio são apresentados como candidatos (no mês passado o PMDB convidou o governador mineiro a se filiar ao partido), Serra lidera com 36%, com Ciro (14%), Heloísa (13%) e Aécio (12%) embolados em segundo. Dilma aparece mais atrás, com 7%.

Serra lidera em todas as regiões, mas tem seu melhor desempenho no Sudeste (no qual chega aos 50% dos votos no cenário sem Ciro) e no Norte/ Centro-Oeste (onde obtém 47% no cenário sem Ciro). Aécio vai bem no Sudeste -atinge 33% na simulação sem Ciro.Ciro é mais forte no Nordeste (onde alcança 34% quando Serra não é candidato), região em que Heloísa Helena também se destaca (chega a 35% quando disputa contra Aécio e Dilma).

A intenção de voto em Serra diminui conforme aumenta a escolaridade -o oposto do que ocorre com Aécio e Dilma. O perfil dos eleitores da ministra da Casa Civil ainda é muito diferente da base política que elegeu Lula, o que sugere que hoje a maioria da população ignora que o presidente tem defendido sua candidatura em 2010.

Apesar disso, na pesquisa espontânea Dilma já aparece com 2% -o mesmo percentual de Geraldo Alckmin (PSDB), que, dois anos atrás, teve 39% dos votos no segundo turno da eleição presidencial. Lula tem 25% de menções espontâneas, seguido de Serra com 6% e Aécio com 4%. Ciro Gomes, Heloísa Helena e Fernando Henrique Cardoso aparecem com 1%.

Eleições passadas

Nas últimas eleições presidenciais, o candidato que liderava as pesquisas dois anos antes do pleito em geral teve êxito, embora Lula, que liderava as pesquisas em 1992, tenha perdido em 1994.

Em dezembro de 1996 a emenda da reeleição ainda não tinha sido aprovada, mas 38% dos eleitores apoiavam a recondução de Fernando Henrique Cardoso ao cargo em 1998 (que venceu com 53% no 1º turno).

Em dezembro de 2000, Lula liderava as pesquisas com 26% a 30% das intenções de voto, enquanto Serra tinha 6%. Em 2002, Lula venceu o tucano por 61% a 39% no 2º turno. Em 2004, o apoio a Lula variava de 41% a 45%. Ele venceu Alckmin por 61% a 39% no 2º turno.

O Datafolha ouviu 3.486 pessoas com 16 anos ou mais em 180 municípios do país. A margem de erro máxima da pesquisa é de dois pontos percentuais.

Da reeleição ao fim das ilusões


Wilson Figueiredo
Jornalista
DEU NO JORNAL DO BRASIL


Com a asa pesada de chumbo desde o tempo do mensalão, o relator da reforma política na CCJ – deputado João Paulo Cunha (PTB, SP) – apronta o parecer sobre as 40 propostas, direta ou indiretamente, relacionadas com a reeleição, a duração de mandato e demais conexões de interesses menores. Apronta intransitivamente, à sombra da frondosa reforma política. A base parlamentar oficial e os três partidos de oposição estão de acordo em resolver pelo voto tudo que puder favorecer os políticos, mesmo com afronta aos brios nacionais. O ponto de partida será a extinção do segundo mandato consecutivo e, no lugar da reeleição, encaixar o mandato de cinco anos que vigorou de 1946 a 1964. Mas há outras ponderações.

Em princípio, o preço para arquivar a reeleição é barato, e a democracia pode pagá-lo com o troco de que dispõe. Sem reeleição, cinco anos são perfeitamente suportáveis num mau governo. Se o governo for bom, acabará acomodado em algum lugar na História do Brasil. O relator foi além da missão de tirar da sala o bode de mau cheiro denominado reeleição, que se insinuou desde o primeiro presidente pelo voto direto. A idéia ficou por perto e só se estabeleceu depois que Fernando Henrique se esbaldou. Quando Lula passou a ser presença obrigatória em todas as sucessões, a reeleição se beneficiou da ilusão de que o confronto plebiscitário era a garantia contra a esquerda. Foi, mas, ao contrário, a advertência de que estavam começando outro século e outro ciclo. O presidente Lula não se dá por achado. Planta-se na encruzilhada de hipóteses de candidaturas e da crise internacional, em que todos exorcizam fantasmas portadores de DNA do capitalismo.

É geral, mas vaga, a concordância com a retirada do bode eleitoral inserido na reforma. Não é o fim nem o começo de nada. O perigo é misturarem-se propostas queremistas do terceiro mandato e nostalgia social-democrata com decisões de pequeno calibre municipal. A premissa é a remoção do segundo mandato com que a social-democracia acreditou fazer história para trás. A conseqüência: o grau maior de imprevisibilidade. E depois que a crise passar? A reeleição foi a dissipação da vitória de Fernando Henrique Cardoso. Lula, ao contrário, foi social, mas do resto só depois se terá noção segura. A reeleição dele nada ficou devendo, em matéria de frustração, à do antecessor. Cada qual teve a ajuda agregada pela mão da crise financeira internacional. O roto nada tem a dizer do esfarrapado. Lula não confirmou nenhuma das expectativas à esquerda e, queira ou não, desse lado vai sair sem capital de giro.

O parecer do relator estende uma cortina de fumaça para esconder o desperdício de expectativa democrática dos dois beneficiários da reeleição: os mandatos de Fernando Henrique foram festivais de democracia, mas de novo-rico (inclusive pelo segundo mandato), e os de Lula quermesses sociais, festa de arraial cívico-rural, com a incorporação da faixa social de baixo ao que se entende como consumo elementar. Palavrório de dois falastrões. Não há indício de que a reeleição esteja com os dias contados. Que não se descarte a hipótese de que o terceiro mandato se recuse a sair da cabeça dos que trabalham à sombra. O benefício maior será a restauração do mandato de cinco anos, já devidamente testado. A eleição de vices por um lado e presidentes por outra chapa deixou vulnerável a Constituição de 1946. Que não se repita o precedente equivocado que fez de João Goulart um estranho no ninho de Jânio Quadros. O que parecia sutileza democrática foi a semente da tentadora renúncia presidencial para encurtar o caminho, e o fermento da crise crônica que não precisou mais esperar.

Entre as razões do relator não se incluem hábitos políticos que distanciam a democracia de seus fins. Democracia está mais para renovação do que para reeleição. Cinco anos são suficientes para um bom governo e, com mais razão, para maus governos. João Paulo Cunha passa ao largo e finge não perceber, no anonimato das pesquisas, um resíduo de popularidade em que fermenta a idéia do terceiro, que o presidente condenou oralmente. Mas apenas de palavra, sem nada escrito para documentar.

Triplo Marx


Frei Betto
DEU EM O GLOBO


O arcebispo católico de Munique, Reinhard Marx, lançou há pouco um livro intitulado "O capital". A capa contém as mesmas cores e fontes gráficas da primeira edição de "O capital", de Karl Marx, publicada em Hamburgo em 1867.

"Marx não está morto e é preciso levá-lo a sério", disse o prelado por ocasião do lançamento da obra. "Há que se confrontar com a obra de Karl Marx, que nos ajuda a entender as teorias da acumulação capitalista e o mercantilismo. Isso não significa deixar-se atrair pelas aberrações e atrocidades cometidas em seu nome no século XX."

O autor do novo "O capital" qualifica de "social-éticos" os princípios defendidos em seu livro, critica o capitalismo neoliberal, qualifica a especulação de "selvagem" e "pecado" e advoga que a economia precisa ser redesenhada segundo normas éticas de uma nova ordem econômica e política.

"As regras do jogo devem ter qualidade ética. Nesse sentido, a doutrina social da Igreja é crítica frente ao capitalismo", afirma o arcebispo. E acrescenta: "Um capitalismo sem marco regulatório é hostil às pessoas."

O religioso reflete bem a posição oficial da Igreja Católica perante o capitalismo: criticam-se seus "abusos", como se esses não fizessem parte de sua própria essência, baseada na acumulação privada da riqueza.

E quem haverá de pôr o guizo no pescoço do gato? O Estado capitalista é capaz de exercer a função de "marco regulatório" e impor limites à especulação e à exploração? Se um governo democrático-popular o faz, como ocorre hoje em países da América do Sul, desencadeia-se a grita geral de que é "populista" e "totalitário".

O livro se inicia com uma carta de Reinhard Marx a Karl Marx, a quem chama de "querido homônimo", falecido em 1883. Roga-lhe reconhecer agora seu equívoco quanto à inexistência de Deus. O que sugere, nas entrelinhas, que o religioso admite que o autor do "Manifesto comunista" se encontra entre os que, do outro lado da vida, desfrutam da visão beatífica de Deus.

O lançamento da obra coincide com a turbulência financeira que, de certa forma, confirma as teorias de Karl Marx quanto às crises cíclicas do capitalismo. Contudo, o arcebispo ressalta que seu homônimo acertou muito pouco em suas previsões revolucionárias, como o surgimento do socialismo em países de avançado desenvolvimento capitalista. O que se viu foi o contrário, o socialismo florescer, primeiro, num país semifeudal como a Rússia.

Falta ao livro explicar por que a Igreja Católica da Alemanha jamais excomungou Hitler, que se dizia católico, e também se equivocou ao aplicar boa parte de seus fundos no banco Lehman Brothers, cuja falência confirma, sim, as previsões do velho Marx.

Tudo indica que a obra de monsenhor Reinhard fomentará um novo interesse pelas do seu homônimo, assim como nas décadas de 1960 e 1970 muitos jovens, encantados em abraçar o marxismo, foram aprendê-lo no livro "O pensamento de Karl Marx", escrito, para refutá-lo, pelo jesuíta Jean-Yves Calvez. Sua edição portuguesa, em dois tomos, era disputadíssima em meus tempos de prisão sob a ditadura militar.

Entre um Marx e outro convém não se esquecer de um terceiro que figura entre os dois: Groucho Marx. Em matéria de concepções materialistas, o humorista americano não merece reparos: "Há coisas mais importantes que o dinheiro, mas... custam tanto!"

Que o digam aqueles que, ao ocuparem funções de poder, abandonaram suas antigas concepções socialistas e, hoje, liberam R$8 bilhões (metade a União, metade o governo de São Paulo) para salvar da crise a indústria automobilística instalada no Brasil. Por que não destinar tais recursos à ampliação do metrô, que favorece a coletividade?

Só mesmo Groucho Marx para explicar: "Estes são meus princípios; se você não gosta deles, eu tenho outros."

FREI BETTO é escritor.

A crise enfim chegou? Sorriam, brasileiros


Augusto Nunes
DEU NA GAZETA MERCANTIL

"Você é feliz?", perguntou o jornalista a Tonia Carrero. "Sou", fez uma ligeiríssima pausa a grande atriz. "Várias vezes ao dia." Bela, talentosa, vencedora, rica, bem-sucedida - o que estaria faltando a essa rainha dos palcos? Nada. Ocorre que Tonia pensa. Quem tem a cabeça em bom estado, e não concede férias ao cérebro, sabe que não existe a dor que nunca passa, mas é impossível ser feliz o tempo inteiro. É assim com as pessoas. É assim com os países.

Não com o Brasil, ressalvam os resultados da pesquisa divulgada na quinta-feira pelo Datafolha. O governo Lula é considerado ótimo ou bom por 70% dos entrevistados - o maior índice obtido por um presidente desde o fim da ditadura. Estão satisfeitos com a situação econômica 61%. E somam 78% os que crêem que 2009 vai ser ainda melhor. "Os brasileiros, até agora, não sentiram os efeitos da crise", deduz Mauro Paulino, diretor do Datafolha. Bem ou mal, 72% sabem que problemas financeiros andam tirando o sono de muita gente. Só que longe daqui.

Já faz algum tempo, Lula deu por resolvidos problemas acumulados em cinco séculos de incompetência, avisou que logo cuidaria do pouco que restava, comunicou que nunca antes neste País houve um governante tão formidável e ordenou ao Brasil que fosse feliz todos os dias. Quem tem motivos para não viver em estado de graça no paraíso que Deus poupou de catástrofes naturais e Lula blindou contra desastres econômicos? Só os napoleões de hospício, os que babam na gravata e os que acordam e dormem torcendo pelo insucesso do ex-operário genial.

A seqüência de pesquisas avisa que a tribo dos descontentes hoje não passa de 7% , e caminha para a extinção. Em contrapartida, a grande maioria não se limitou a acatar a decretação da felicidade geral e permanente. Resolveu ficar mais feliz sempre que se conjugam um claro sinal de perigo e uma maluquice do Grande Pastor. A marca dos 70% foi alcançada ao fim dos três dias em que Lula jurou que haverá emprego para todos, a Vale demitiu 6 mil, Lula explicou que a crise vai fortalecer o Brasil e a inflação ficou mais musculosa.

Deve-se presumir que, graças à medonha conjunção dos astros ocorrida na quinta-feira, a próxima pesquisa acusará outro salto no índice de popularidade do presidente. Excitado com a cavalgada do dólar, com a queda da produção industrial e com outras evidências de que a marolinha quer ser tsunami quando crescer, Lula fundiu a indigência intelectual com o apreço pela vulgaridade e foi à luta.

"Quando o mercado tem uma dor de barriga, e nesse caso foi uma diarréia braba, quem é chamado? O Estado", perguntou e respondeu, aos berros e com o rosto avermelhado, no meio do improviso inverossímil. Sem pausas, incorporou um médico examinando o doente em estado grave para justificar o otimismo inabalável. "O que você fala? Dos avanços da medicina ou olha pra ele e diz: meu, sifu?". Sabe-se agora que o doutor Lula acha que o Brasil doente sifu. Só não diz a verdade para poupar o paciente.

Se fizer outro discurso desses numa semana ruim, o País passará da felicidade à euforia e Lula finalmente chegará aos 100%.

Augusto Nunes - O autor escreve nesta seção às segundas e quartas

Instituições e estouvamento


Fábio Wanderley Reis
DEU NO VALOR ECONÔMICO


Dias atrás, em entrevista, o presidente da Capes, Jorge Guimarães, fez declarações de alguma repercussão sobre a concessão de bolsas de doutorado em economia no exterior. Segundo ele, nossos doutorandos se viriam formando segundo um modelo "que faliu o mundo" e que se teria mostrado "totalmente anticientífico, para dizer o mínimo", donde a necessidade de reexame da política da Capes a respeito.

É fácil apontar o que isso pode conter de distorção. Apesar de que Jorge Guimarães fale de "perguntar à área de economia", pode haver, e houve, a leitura segundo a qual se trataria de uma agência estatal a dizer o que é boa ciência econômica, com base em avaliação discutível sobre o que ocorre em determinado momento em seu campo próprio de estudo. Mas o tema envolve a questão da relação entre o Estado, como representante da coletividade nacional e supostamente atento aos seus interesses gerais, e a comunidade dos que se dedicam à atividade científica em diversos campos.

No limite, há dois extremos negativos, o da imposição de diretrizes feita autoritariamente pelo Estado aos especialistas e o de um "tecnocratismo" em que os especialistas ou peritos, tomando como não problemáticos os fins a orientarem seu trabalho de pesquisa e ensino e baseando-se em sua qualificação especial quanto ao conhecimento "técnico" dos meios para a busca daqueles fins, reclamam autonomia nas decisões pertinentes. Se a questão é enquadrada pelo desiderato de uma sociedade e um Estado democráticos, a ponderação decisiva é a de que os fins da atividade científica, como quaisquer outros, podem, sim, surgir como problemáticos do ponto de vista da sociedade, e há um espaço legítimo para a política (e para os interesses que nela se dão, que os cientistas com frequência abominam) na fixação dos fins a serem perseguidos. A presunção tem de ser a de que são os cidadãos os melhores juízes dos seus interesses em qualquer área, e em última análise deve caber a eles, ou a seus representantes num Estado democraticamente constituído (sobretudo se são públicos os recursos de que dependem as atividades), as decisões sobre os fins: se necessário, que os peritos se expliquem quanto aos meios, ou quanto aos aspectos "técnicos" dos problemas. E que possa haver o equilíbrio apropriado entre sensibilidade e responsabilidade democráticas, de um lado, e, de outro, a autonomia necessária à prática científica.

O assunto apresenta pontos de contato com outro que tem dado muito mais pano para mangas, o do ativismo do Judiciário, que se vem tornando militante e, com seus prós e contras, complicando a definição da área de competência dos diferentes poderes e suas relações. Com a invocação de filósofos alemães, Gilmar Mendes tem falado de uma "representação argumentativa" da sociedade a ser exercida pelo STF, em contraste com a representação resultante do voto popular que se teria no Legislativo. Se lida como envolvendo a suposição de que não há "argumentação" no exercício da representação parlamentar, a posição pode ser acusada de arrogância e, também ela, de "tecnocratismo": seria esse o caso se prevalecesse a suposição de que o Judiciário, ou o STF, dispõe de uma competência "técnica" especial, a do conhecimento das leis, que lhe permitiria de alguma forma apreender e acomodar os próprios fins da coletividade e representá-los "virtualmente". Mas as coisas são confusas.

Para começar, é claro que o debate e a argumentação são parte importante do enfrentamento e das eventuais manobras que compõem a atividade parlamentar - e há até quem sustente, reivindicando perspectivas afins ao chamado "realismo legal", que o debate marcado pelo empenho de dar representação real aos interesses diversos, apesar (ou por causa) de distanciar-se da idealização do debate conduzido pelo "juiz imparcial" e supostamente orientado apenas pelos melhores argumentos, torna-se um debate melhor. Mas o realismo legal é ele mesmo equívoco, remetendo tanto a essa representação "estratégica" de interesses quanto à disposição por parte do juiz de ir "além" da letra da lei em prol de "valores" supostamente mais altos. Ele serve, assim, de fundamento ao próprio ativismo do Judiciário: não se trata apenas de colocar em prática a lei cujo conhecimento seria o apanágio do STF, mas também de sua reinterpretação e mudança pela corte na condição de "porta-voz do povo" e segundo valores que emergem da "interpretação ativa" da Constituição realizada cotidianamente por todo cidadão. Indo mais longe, a dinâmica de uma representação argumentativa passa, na verdade, de "virtual" a, em certo sentido, "real", e fatalmente precária como tal, ao valer-se de audiências públicas em que os "amigos da corte", definidos a critério do próprio órgão judicial, são chamados a manifestar-se.

Do ponto de vista de uma sociologia jurídica, não caberia negar o que há de justificado, em geral, no recurso a postulados realistas, que seriam, ademais, presumivelmente um requisito mesmo para a construção de normas e instituições melhores. Mas, assim como se mostram complicadas as relações entre sociedade, Estado e comunidade científica a que enviam as declarações do presidente da Capes, assim também é dificilmente aceitável que sejam as próprias cortes de Justiça, sem mais, a transformarem de maneira estouvada o princípio talvez saudável de um realismo sociologicamente informado (que, de partida, remete a disciplinas em que os juízes não têm por que pretender especial competência ou qualificação) em novas normas e procedimentos de duvidosas consequências para a segurança jurídica. É imperioso que, com as reformas que se façam necessárias, nosso Legislativo venha a reafirmar com vigor o seu papel.

Fábio Wanderley Reis é cientista político e professor emérito da Universidade Federal de Minas Gerais. Escreve às segundas-feiras

Paralisado diante da crise


Luiz Carlos Bresser-Pereira
DEU NA FOLHA DE S. PAULO

A única coisa boa para a economia brasileira nesta crise financeira global foi a depreciação cambial

O GOVERNO brasileiro parece paralisado diante da crise econômica mundial. Já abandonou a tese da "blindagem", mas continua com a esperança de que ela nos atingirá docemente porque a crise começou nos Estados Unidos, e não aqui. É verdade que o BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social), desde outubro, percebeu que teria que captar mais recursos e ampliar suas aplicações para compensar o natural retraimento dos bancos comerciais.

E que o Ministério da Fazenda vem procurando proteger os dois setores privados mais atingidos pelo encolhimento do crédito: a indústria automobilística e a de construção. Mas essas medidas são tímidas e não contrabalançam a política monetária do Banco Central.

Não obstante a crise já estivesse clara desde o segundo semestre de 2007, até há dois meses o Banco Central continuava a aumentar a taxa de juros porque ainda acreditava que a demanda interna estivesse aquecida. Agora os jornais informam que sua disposição é a de mantê-la no nível atual, não obstante os indicadores de desaquecimento da demanda sejam claros. Na verdade, o Banco Central já deveria estar associado ao Ministério da Fazenda e ao BNDES na luta por evitar a recessão, que já é triste realidade nos Estados Unidos e na Europa. E, assim, já deveria ter iniciado a baixa da taxa de juros brasileira em pelo menos um ponto percentual a cada mês. A desculpa é sempre a mesma -a inflação-, mas agora o argumento é outro: a depreciação cambial.

A única coisa boa para a economia brasileira nesta crise financeira global foi essa depreciação.

Nesse caso, o mercado corrigiu uma taxa de câmbio que se havia gravemente apreciado e fazia o país voltar à condição de déficit em conta corrente. A depreciação será origem de alguma inflação, mas não há razão para temer uma aceleração maior. O "pass-through" da variação da taxa de câmbio para a inflação é inferior a 10%. Por outro lado, o efeito inflacionário da depreciação está sendo compensado pela queda dos preços das commodities e pelo rápido desaquecimento da demanda em curso.

Diferentemente dos Estados Unidos e do Japão, cuja taxa de juros já é muito baixa, no caso do Brasil a alta taxa de juros oferece um amplo campo de manobra para a política monetária.

Enquanto aqueles países já estão na clássica armadilha da liquidez, o Brasil está longe desse ponto. Ao não enfrentar de frente o problema da recessão em marcha, o governo brasileiro está mais uma vez perdendo a oportunidade de voltar a taxas de juros civilizadas. E -o que é mais grave- está ameaçando o país de mergulhar em uma recessão perfeitamente evitável.

Para não agir, o Banco Central argumenta que sua única responsabilidade é a de controlar a inflação. Assim o determina a sagrada política de metas de inflação. Enquanto o quadro internacional era muito favorável, o Banco Central podia "brincar de meta de inflação" sem conseqüências muito graves para a economia. A economia crescia de maneira insuficiente, ficávamos muito atrás dos outros Brics, mas não havia crise. O quadro atual, porém, é outro, e exige do governo políticas de sustentação da demanda fortes e determinadas. Políticas que não estão acontecendo.

Luiz Carlos Bresser-Pereira , 74, professor emérito da Fundação Getulio Vargas, ex-ministro da Fazenda (governo Sarney), da Administração e Reforma do Estado (primeiro governo FHC) e da Ciência e Tecnologia (segundo governo FHC), é autor de "Macroeconomia da Estagnação: Crítica da Ortodoxia Convencional no Brasil pós-1994".