segunda-feira, 15 de dezembro de 2008

Folhas mortas


Wilson Figueiredo
Jornalista
DEU NO JORNAL DO BRASIL

Fatos são em geral classificados na categoria de historicamente consumados quando deixam de produzir conseqüências políticas e caem como folhas mortas. Na passagem do quadragésimo aniversário da sua tenebrosa edição em 13 de dezembro de 1968, o Ato Institucional nº 5 traz de volta a velha observação de Marx sobre a recusa da História a se repetir como fato. O veto, no caso do AI-5, inclui a própria farsa como recurso alternativo. Pode- se considerá-lo o produto inevitável da contradição de governar, em nome da democracia, com recursos autoritários incompatíveis com o exercício da liberdade política. A diferença entre o legalismo aparente e o exercício dos meios democráticos fora do contexto ocorreu, desde as primeiras horas, na convivência entre o governo como fato consumado em abril de 1964 e os pressupostos legais que não se sustentariam. O conflito interno não se fez esperar entre os vencedores e só seria contido, quatro anos depois, sob o AI-5. Não se compunham em torno da utilização do poder sem mandato eletivo.

Nos quatro anos que se seguiram à deposição do presidente João Goulart, sob a alegação de abandono do poder (que é também a forma de culpar a vítima), quando ainda sobrevoava território nacional, o novo governo equilibrou-se com dificuldade na insustentável ambivalência: tinha de atender ao radicalismo que emanava dos quartéis e tranqüilizar a representação política (que o atendia) e a sociedade com as dubiedades decorrentes da falta de clareza.

Na eleição parcial de governadores em 1965, um ano depois do golpe, instalou-se a primeira crise, para valer, em torno da posse dos eleitos pela oposição em Minas e na Guanabara, ao arrepio das expectativas radicais já desinteressadas de salvar aparências. Prevaleceu a corrente militar ostensiva, que se fixou no nome do general Costa e Silva. O governo Castelo Branco pagou o preço adiantado da crise para não cair: o novo acordo se fez com o sacrifício, dali por diante, do voto direto na sucessão presidencial e dos governadores. Chamou-se AI-2 o contrato. O sucessor seria o ministro da Guerra. Para salvar a face, Castelo Branco garantiu a posse dos governadores de Minas e da Guanabara, eleitos pela oposição. Era o primeiro golpe no golpe anterior, e tornou inevitável o segundo, e definitivo. E não se encerrou aí. O passo seguinte foi a edição espetaculosa do AI-5 para restabelecer a unidade aparente.

Já estavam suficientemente claras àquela altura as divergências em relação à liberdade de imprensa. Ao governo Castelo Branco não interessava que a sociedade se fechasse em desconfiança política e os empresários se sentissem vulneráveis. Optou pelas relações triangulares entre governo, sociedade e imprensa. Embora não resolvesse impasses, adiava dificuldades. O AI-5 permitiu ao governo Costa e Silva dar o tom, compactar a dualidade de tendências e se programar antes de afastar-se por motivo de saúde. Mas também mostrou efeito direto no deslocamento da classe média para a oposição. Era com ela que o governo queria contar, mas a opinião pública descobriu na leitura direta dos fatos o sentido oculto. A classe média assumiu seu papel na história que, antes de ser escrita, é vivida.

Em vão, o AI-5 bloqueou todas as janelas democráticas para blindar o governo. Não foi por acaso, mas como conseqüência direta, que o governo Ernesto Geisel só encontrou a saída à sombra do mesmo AI-5. A solução estava na raiz do problema que havia levado à edição do sombrio documento. Na evolução lenta, gradual e segura se processou a volta a uma legalidade relativa, até que a Constituinte de 86/88 preenchesse os claros. Perdura como uma sombra, por deficiência visual da política, a ausência de percepção das diferenças entre o colapso de 64 e a saída às apalpadelas, duas décadas depois. Umas e outras – diferenças e semelhanças – se equilibraram na divisão da responsabilidade política por tudo que levou ao AI-5 e, para sair, se passou também dentro do processo histórico. O regime caiu por dentro, abalado pelas contradições de disfarçar traços fortes de ditadura com aparência de liberdades. Dia virá em que se dará o reconhecimento do peso da classe média na sedimentação da resistência da qual foi fator social decisivo. Não foi casual a participação eminentemente universitária dela, já no nível da cidadania, a partir do desmoronamento do universo comunista no leste europeu. Mas essa história ainda não começou a ser escrita.

Geddel e Wagner à beira da ruptura

Maria Lima
ELEIÇÕES 2010
DEU EM O GLOBO

Ministro escreve artigo e desafia o governador petista a retirar cargos cedidos ao PMDB na Bahia

BRASÍLIA. É cada dia mais insuportável a convivência, na Bahia, do PMDB do ministro da Integração Nacional, Geddel Vieira Lima, com o PT do governador Jaques Wagner. Após a derrota imposta aos petistas na eleição para a prefeitura de Salvador, com ajuda do DEM do deputado ACM Neto (BA), Wagner tem ouvido, sem revidar, desaforos e provocações do grupo de Geddel, para não chegar isolado na disputa pela reeleição em 2010.

Além de ter que administrar a ira do PT local, que pede a devolução dos cargos do PMDB no governo estadual, Wagner também vê a cúpula do PSDB nacional intervir no tucanato baiano para acabar com a aliança do partido com seu governo.
Geddel: não há problema em devolver cargos

O último desaforo que Wagner teve que engolir de Geddel foi um artigo publicado por ele há algumas semanas no jornal "A Tarde", dizendo que não teria problema nenhum de devolver os cargos. "No momento em que setores do PT esgarçam a relação com o PMDB, cabe reafirmar o óbvio: o governador se sinta absolutamente livre para proceder como lhe convier", provocou Geddel no artigo.

Wagner, em viagem recente a Brasília, jantou com o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que está acompanhando a movimentação de Geddel com preocupação e angústia, pois gosta muito do governador e, segundo interlocutores, sofreu por não poder atendê-lo na eleição de Salvador.

O artigo de Geddel foi uma resposta a artigos e entrevistas de dois deputados estaduais do PT, Geraldo Simões e Luiz Bassuma, que defenderam a entrega dos cargos. Pediram a Wagner que enquadrasse Geddel e tirasse os peemedebistas de seu governo. Quando chegou de uma viagem ao exterior, Wagner ligou para Geddel e disse que não demitiria ninguém.

- Eu lá sou homem de ser enquadrado? Temos o vice-governador eleito. Os cargos que nós temos conquistamos nas urnas. Construí minha vida política toda tomando pancada, por isso escrevi o artigo, para marcar uma posição. Mas o governador chegou, me ligou e disse que está tudo bem - respondeu Geddel.

Todos os secretários e indicados pelo PMDB continuam nos cargos, inclusive o secretário do Desenvolvimento, Raphael Amoedo, que estava na Suécia com o governador e levou um susto com a história da ameaça da devolução dos cargos feita por Geddel.

Segundo interlocutores de Wagner, como o governador disse que o PMDB só deixaria o governo se quisesse, pois não romperia com o partido, Geddel quis criar um fato político e armou uma operação para que o artigo tivesse repercussão, deixando o petista em posição desconfortável.

Para os petistas, a impressão que fica é que o artigo teve o objetivo de tentar aumentar a participação do PMDB, uma vez que o PP foi contemplado com uma secretaria, a de Agricultura, também cobiçada pelo PMDB. Hoje, Geddel tem mais de 50 cargos no governo Wagner, fora os que ele indicou no governo Lula.

- O governador não leva a mal, e acha que o ministro Geddel quer apenas ocupar os espaços que nunca teve na Bahia - diz um dos aliados de Jaques Wagner.

PSDB baiano busca aliança com DEM contra PT

As alternativas que estão sendo articuladas pelo presidente do PSDB, Sérgio Guerra, e pelo próprio governador de São Paulo, José Serra, para tirar o PSDB do governo Wagner e fortalecer o partido na Bahia incluem a adesão do ex-governador Paulo Souto, atual presidente regional do DEM, para comandar o partido e se cacifar como forte adversário do PT na disputa pelo governo em 2010. Isso garantiria também um palanque consistente para Serra. Souto confirma que, na atual situação, com os tucanos na aliança local com o PT baiano, a parceria nacional do DEM/PSDB se inviabiliza:

- O PSDB e o DEM têm um projeto juntos. Agora, o que ocorre na Bahia tem deixado todo mundo perplexo. O PSDB aqui é PT. Desse jeito, é muito difícil ter uma posição comum em 2010. As dificuldades de Alckmin em 2006 se repetirão com Serra em 2010.

Legislativo, Executivo e delegação


Fábio Wanderley Reis
DEU NO VALOR ECONÔMICO

O Senado Federal promoveu há pouco um ciclo de debates sobre o Poder Legislativo no mundo contemporâneo, tomando diversos aspectos das relações entre os poderes que têm sido objeto de preocupação. Em sessão de que eu próprio participei, destacavam-se temas aparentemente diversos, que vão das implicações do chamado "presidencialismo de coalizão" a uma suposta crise geral de representatividade do Legislativo e ao fato de que ele deve conviver com o exercício de atribuições normativas também pelo Executivo e pelo Judiciário.

Problemas ligados à atuação do Judiciário têm sido considerados aqui com alguma insistência. Quanto às relações Executivo-Legislativo, o tema do presidencialismo de coalizão sugere antes de tudo (supostamente em consequência da combinação de presidencialismo, federalismo, bicameralismo, multipartidarismo e representação proporcional) a fragmentação das forças políticas representadas no Congresso e, apesar de certas releituras e contestações, a debilidade do Executivo que derivaria da necessidade de organizar-se com base em grandes coalizões instáveis. Mas um tema também saliente quanto a essas relações tem sido o das medidas provisórias, e não é de todo casual que o simpósio no Senado tenha coincidido com a devolução algo dramática pelo presidente do Congresso da chamada MP das filantrópicas.

Há aqui algumas ponderações gerais pertinentes. Uma, de cunho doutrinário relativo aos princípios constitucionalistas, salienta o desiderato de que os diferentes poderes sejam autônomos e se relacionem em termos de equilíbrio e igualdade. Outra, de natureza factual, aponta para fatores que há tempos levam à expansão do Executivo pelo mundo afora, em conexão com fenômenos (passíveis de disputas sobre como caberia avaliá-los normativamente em cada caso) como o estado de bem-estar, a "tecnoburocracia", o neocorporativismo... Uma indagação importante é a de se essa expansão compromete necessariamente os princípios constitucionalistas quanto às relações dos poderes. E a mesma questão surge, naturalmente, se nos voltamos para as medidas provisórias. As condições de "urgência e relevância" contempladas na Constituição para o recurso a elas fazem delas instrumentos de governo efetivo em determinadas circunstâncias. Mas seu uso abundante e desatento aos critérios legitimadores ameaça redundar em desequilíbrio e em sujeitar o Legislativo a eventuais caprichos autoritários do Executivo.

As análises de ciência política a respeito não têm sido de grande ajuda. Procurando ligar o recurso às medidas provisórias pelo presidente às coalizões do nosso presidencialismo (como em artigo de 2005 de Carlos Pereira e outros, "Under what Conditions do Presidents Resort to Decree Power?"), as observações feitas acabam enredadas em suposições problemáticas e provavelmente enganosas sobre qual poder, nas relações Executivo-Legislativo, é o "mandante" e qual é o "mandatário" ou "agente", e portanto o subordinado. Assim, no primeiro mandato do presidente Fernando Henrique Cardoso, o fato de que o governo teria sido capaz de compor uma coalizão governamental "ampla e bem recompensada" resulta em delegação legitimadora pelo Congresso, que "responde" delegando ao presidente autoridade para governar por MPs, enquanto em casos de menor capacidade circunstancial de compor coalizão análoga o presidente teria de recorrer "unilateralmente" (autoritariamente?) a elas. Ora, é claro que um Congresso que "responde" ao poder do presidente dificilmente poderia ser visto como o "mandante" real na relação, e a idéia de "delegação" nada acrescenta ao aspecto factual das manobras mais ou menos exitosas deste ou daquele titular da Presidência nas circunstâncias de precariedade político-partidária - maior ou menor - que encontrará. Com a ressalva, naturalmente, da "delegação" correspondente ao fato em si de que a lei contemple o instrumento da medida provisória, que provavelmente requer, ele mesmo, explicação numa sociologia realista.

Isso sugere que a ênfase em "quem manda" é basicamente torta ou equivocada. Não obstante a óbvia importância constitucional da autonomia dos poderes e de seu equilíbrio, como condição de que não se tenha ditadura, ela não resulta em que eles devam brigar, como vemos com frequência em nosso conflagrado Estado-arena do momento. Preservadas, em particular, as condições de isenção e adjudicação competente por parte do Judiciário (oxalá as turbulências atuais se resolvam), o que cabe esperar das relações entre o Legislativo e o Executivo é antes que se articulem de modo apropriado, vale dizer, de modo a assegurar o governo a um tempo democrático e eficiente. E não há como deixar de repetir a respeito, à parte confusões novidadeiras, a velha observação de que o instrumento que nos tem faltado para isso são partidos políticos em que o enfrentamento do desafio de combinar a penetração eleitoral e a coesão real em torno de idéias (referidas, por certo, a interesses, tanto quanto possível adequadamente agregados, e às identidades correspondentes, talvez inevitavelmente definidas de maneira algo tosca) venha a propiciar a disciplina no comportamento parlamentar e ao governo como um todo maior organicidade e a busca consistente de políticas de maior alcance. O que também remete a uma sociologia atenta, em nosso caso, ao áspero e deficiente substrato social da política.

Fábio Wanderley Reis é cientista político e professor emérito da Universidade Federal de Minas Gerais. Escreve às segundas-feiras

Tradição anacrônica


Merval Pereira
DEU EM O GLOBO (14/12)

NOVA YORK. Amanhã, 41 dias depois da eleição popular e 36 dias antes da posse, uma anacrônica e antidemocrática instituição americana estará reunida para escolher o futuro presidente dos Estados Unidos. Se o leitor acha que o democrata Barack Obama já foi eleito em 4 de novembro, está redondamente enganado. Só depois que os 538 membros do Colégio Eleitoral consagrarem o seu nome, dando-lhe a maioria de seus votos, é que ele será considerado oficialmente escolhido. O Colégio Eleitoral é anacrônico a começar pela data de sua reunião, sempre na primeira segunda-feira depois da segunda quarta-feira de dezembro, data, assim como a da eleição (sempre na primeira terça-feira de novembro), marcada por antigas tradições, como o fim da colheita e o começo da estação das chuvas, que impediam os eleitores de se locomoverem com rapidez pelo país.

E antidemocrático pelas suas raízes e pelo potencial de eleger o candidato com menos votos populares, como aconteceu pela quarta vez em 2000, quando George Bush venceu tendo tido menos votos populares que Al Gore, graças a uma apuração fraudulenta na Flórida.

O sistema de colégio eleitoral é uma tradição americana que surgiu na Constituição de 1787, quando os treze estados que formavam o país acharam melhor não eleger o presidente diretamente pelo povo.

O jornal "New York Times", em editorial logo após a eleição de Obama em que defendeu o fim do Colégio Eleitoral, lembrou que uma das principais razões pelas quais os fundadores o criaram foi a escravidão.

"Os estados do Sul gostavam do fato de que seus escravos, que não poderiam votar, seriam contabilizados (como três quintos de uma pessoa branca) quando os votos do Colégio Eleitoral fossem apurados".

Havia também a crença de que os eleitores não tinham informação suficiente para eleger além de seus representantes locais, ficando para eleitores mais qualificados a tarefa de escolher o presidente.

O "New York Times" chamou a atenção também para outro aspecto redutor da representatividade do voto: no sistema "o vencedor leva todos os votos", que prevalece em 49 dos 51 estados, o voto da minoria não conta, mesmo que o candidato perdedor tenha recebido 49,9% dos votos.

Por isso, esse sistema desestimula o comparecimento às urnas de eleitores em estados em que há um vencedor previsível, como o candidato democrata em Nova York ou o republicano no Texas.

Na verdade, o termo "colégio eleitoral" não existe na Constituição. Tanto o seu artigo II quanto a 12ª Emenda se referem apenas a "eleitores". No Império Romano, de onde provém o conceito, "eleitores" escolhiam os imperadores.

Foi apenas no início de 1800 que o termo "colégio eleitoral" entrou em uso comum para se referir ao grupo de cidadãos que escolhem o presidente e o vice-presidente, e está registrado na legislação federal.

Atualmente, o Colégio Eleitoral inclui 538 eleitores, 535 para o número total de membros congressionais e três representantes de Washington, D.C. Os representantes são escolhidos pelos eleitores de cada estado no dia da votação, junto com o presidente e o vice, e não podem nem ter mandato nem exercer cargo público. Geralmente são líderes comunitários ou sindicais.

Esse "Colégio Eleitoral" não se reúne fisicamente ao mesmo tempo, mas nos seus diferentes estados, e seus votos são enviados ao Senado, que, em 6 de janeiro, os lê na presença do Congresso.

Na grande maioria das vezes, os eleitores dão seus votos ao candidato que recebeu mais votos naquele estado em particular, mas não existe nada na legislação que impeça um delegado de determinado partido de votar no candidato do outro.

Esses "eleitores" têm até um nome: não-confiáveis, e estão sujeitos a pesadas multas em alguns estados. Mas não há história de uma mudança de votos no Colégio Eleitoral que tenha alterado o resultado da eleição.

Mas, além de Bush, houve três outros presidentes que ganharam a eleição com menos votos populares que seu oponente:

Em 1824, John Quincy Adams, filho do ex-presidente John Adams, recebeu cerca de 38 mil votos a menos que Andrew Jackson, mas como nenhum candidato teve a maioria do Colégio Eleitoral, a decisão ficou com o Congresso, que escolheu Adams;

Em 1876, Rutherford B. Hayes perdeu a votação popular para Samuel J. Tilden por 264 mil votos, mas teve a maioria dos votos do Colégio Eleitoral devido ao apoio de pequenos estados e mais o Colorado, que, no primeiro ano fazendo parte da União, não realizou eleição popular e deu seus três votos eleitorais a Hayes;

- Em 1888, Benjamin Harrison perdeu a votação popular por 95.713 votos para Grover Cleveland, mas ganhou a votação eleitoral por 65. O Sul apoiou esmagadoramente Cleveland, mas no resto do país ele perdeu por mais de 300 mil votos.

Para um país que se propõe a ser modelo de democracia, e que escolheu o primeiro presidente negro de sua História, cuja campanha foi baseada principalmente na difusão de informações pelos mais modernos meios de comunicação instantânea, soa extemporâneo e ridículo continuar seguindo essa tradição.

Oportunidade de ouro


Luiz Carlos Bresser-Pereira
DEU NA FOLHA DE S. PAULO


Hoje, o Brasil tem condições melhores de sair da armadilha de altos juros e taxa de câmbio sobreapreciada

A CRISE financeira global atingiu a economia brasileira, que já está em desaceleração. Entretanto, a crise não será aqui tão grave quanto nos Estados Unidos, onde ela se originou, e -o que é mais importante- ela abre uma oportunidade de ouro para que o Brasil volte, afinal, a se desenvolver de forma sustentada e acelerada. Hoje, o Brasil tem condições melhores de sair da armadilha de altos juros e taxa de câmbio sobreapreciada do que tinha há três meses.

Esta crise financeira desencadeou-se nos Estados Unidos em conseqüência de um amplo processo de endividamento ou de alavancagem das famílias, das empresas, dos bancos e do Estado americano combinado com três bolhas especulativas (dos imóveis, das commodities e das ações) e com irresponsável desregulação financeira. Aqui, o aumento do endividamento não chegou a ser grande, e os bancos continuaram sólidos. Não chegou a haver uma bolha imobiliária -apenas a do mercado de ações. E houve uma explosão do consumo causada pelas medidas distributivas do governo e pelo aumento artificial dos salários em conseqüência da sobreapreciação do câmbio. Esse forte aumento do consumo explica a alta taxa de crescimento do PIB, mas era evidentemente insustentável.

Ao mesmo tempo, abriu-se uma oportunidade, porque a crise lá fora antecipou e tornou mais fraca a crise cambial para a qual a economia brasileira estava sendo encaminhada. E -o que é mais importante- levou a taxa de câmbio para um nível próximo do equilíbrio industrial (o nível que neutraliza a doença holandesa viabilizando indústrias utilizando tecnologia no estado-da-arte). Essa depreciação, que o governo não se sentia com forças para promover porque temia seus efeitos inflacionários, foi feita pelo mercado.

Por outro lado, a crise permitirá que o governo baixe os juros sem risco de inflação porque esta está controlada pela queda dos preços das commodities e pelo desaquecimento da demanda agregada. Nesses termos, tornou-se mais fácil para a economia brasileira escapar da armadilha da alta taxa de juros e da taxa de câmbio sobreapreciada -uma armadilha em que estamos mergulhados desde 1991, quando assinamos um acordo com o FMI que nos obrigava a abrir o país financeiramente, e, assim, perdemos nossa capacidade de neutralizar a tendência à sobreapreciação da taxa que existe nos países em desenvolvimento.

Desde aquela data, o Brasil já incorreu em três crises de balanço de pagamentos (1998, 2002 e 2008), sempre caracterizadas por violenta depreciação, seguindo-se uma progressiva apreciação do real até que o déficit em conta corrente volte a se manifestar e os credores internacionais percam a confiança no país.

Desta vez, ocorreu também perda de confiança, mas, como a crise cambial foi antecipada, ela foi amena: não nos obriga a reduzir a despesa pública (pelo contrário, ela deverá ser aumentada) e não nos obriga a aumentar a taxa de juros (pelo contrário, podemos baixá-la sem risco). Portanto, se o governo aproveitar a oportunidade e baixar com firmeza a taxa de juros para um nível civilizado, ignorando as pressões dos rentistas e financistas, e se, adicionalmente, impedir que a taxa de câmbio volte a se valorizar, o país terá escapado da armadilha macroeconômica em que se encontra há muito e terá condições de crescer sem bolhas: de forma sustentada e forte.

LUIZ CARLOS BRESSER-PEREIRA , 74, professor emérito da Fundação Getulio Vargas, ex-ministro da Fazenda (governo Sarney), da Administração e Reforma do Estado (primeiro governo FHC) e da Ciência e Tecnologia (segundo governo FHC), é autor de "Macroeconomia da Estagnação: Crítica da Ortodoxia Convencional no Brasil pós-1994".

Tavares Bastos, o gigante

Janayna Ávila
DEU NA GAZETA DE ALAGOAS / Caderno B

Homem que ajudou a fundar a imprensa nacional e escreveu seu nome na história do País

Com o espírito crítico que lhe era característico, Graciliano Ramos teria dito que “Alagoas é terra de náufragos”, pois era costume por aqui valorizar o que vinha de fora em detrimento das contribuições locais. O contrário disso – ou seja, o enaltecimento do que é “da terra” como única forma de afirmar uma identidade –, além de perigoso, pode soar mais como provincianismo do que mesmo como avanço. O intelectual alagoano Aureliano Cândido Tavares Bastos parece ter sido vítima de ambos os equívocos. Apesar de ter “batizado” a sede da Assembléia Legislativa de Alagoas e também uma escola estadual, seu legado ainda é desconhecido em seu lugar de origem. Mas, afinal, quem foi esse homem e o que ele fez?A trajetória de Tavares Bastos é pontuada por momentos de intenso engajamento político, pela preocupação com o desenvolvimento do País e, não raro, pela reflexão sobre o impacto das transformações vividas em seu tempo. Advogado, jornalista e político, sua luta contra a escravatura e a busca por mudanças que, na sua visão, colocariam o Brasil na vanguarda social e econômica, fizeram dele uma das mais importantes personalidades nacionais. Não por acaso, durante seu funeral, no Rio, em 1876, muitas foram as manifestações de pesar pela perda do homem que, embora tenha morrido aos 36 anos, já havia escrito seu nome na história do País – tanto que mesmo após um mês do anúncio de sua morte, dois jornais cariocas da época (A Reforma e Globo) continuaram a publicar transcrições de artigos e notas de homenagens divulgadas em periódicos espalhados por todo o território brasileiro.

Uma trajetória política marcada por idéias liberais

Jovem, com boa formação, cheio de idéias liberais, mas distante da terra natal. O que poderia parecer um obstáculo para a campanha política de Tavares Bastos (na verdade) pode ter sido uma vantagem. Ciente da situação, o jovem dedicou-se a escrever um texto onde se apresentava, fazendo referência ao nome do pai. Embora contasse apenas 21 anos, seu nome já era conhecido em todo o País graças aos artigos que publicava, com regularidade, em diversos periódicos. A notícia da vitória – ele teve quase todos os votos, cerca de 700, segundo levantamento de Carlos Pontes – foi recebida e comemorada em Maceió. Ele foi reeleito duas vezes: em 1864 e em 1867. Sua carreira política foi encerrada em 1870.

A AMIZADE DE TAVARES BASTOS COM O DESAFETO DE SEU PAI

Quando morava em Maceió, José Tavares Bastos, pai de Aureliano Cândido Tavares Bastos, teve um inimigo ferrenho: o conterrâneo João Lins Cansanção de Sinimbu, o Visconde de Sinimbu, que tinha sido seu colega no curso de Direito, em Olinda, mas que anos depois se transformou em seu principal inimigo político. Monarquista convicto, a personalidade de Sinimbu assemelhava-se, segundo levantamento do historiador Carlos Pontes, à de seu opositor: ambos eram inteligentes, sagazes e impetuosos. Deputados, eles lideraram, em Alagoas, dois partidos políticos irreconciliáveis: os lisos e os cabeludos, “inaugurando”, desde o século 19, um clima de conflito que, ainda hoje, marca o cenário político no estado. Os assassinatos por encomenda também já faziam parte da “paisagem política” alagoana naquela época.

Radical utópico para uns e estadista para outros

Em 1870, ano em que encerra sua trajetória política, o intelectual alagoano lança A Província, obra em que defende a idéia de que a herança ibérica do Brasil é a causa de todos os males vividos pelo País. No livro, Tavares Bastos aprimorou seu elogio ao modelo anglo-americano como solução para os problemas nacionais, especialmente na área econômica. De forma ingênua, acreditava também que, caso implantasse medidas à moda norte-americana e inglesa, os produtos fabricados no Brasil teriam ampla e irrestrita aceitação naqueles mercados. Para ele, o capitalismo era não apenas o meio de se alcançar o progresso material, mas também a cultura política do indivíduo livre.Para muitos pesquisadores – Bastos é tema de dissertações e teses em todo o País –, o projeto de modernidade do alagoano era romântico e de um idealismo muito radical, pois entendia a sociologia como fruto do pensar político, como analisa o pesquisador Luiz Werneck Vianna no ensaio Americanistas e Iberistas: A Polêmica de Oliveira Vianna e Tavares Bastos, publicado no ano de 1993.

REFERÊNCIAS

OBRAS PUBLICADAS POR TAVARES BASTOS››
Cartas do Solitário (1862)››
O Vale do Amazonas (1866)››
Reflexões sobre a Imigração (1867)››
A Província (1870)››
Reforma Eleitoral e Parlamentar e Constituição da Magistratura (1873)

O espírito jornalístico e a morte precoce

Em 1864, Tavares Bastos participou, como deputado, da histórica Missão Saraiva ao Rio da Prata, episódio que motivou críticas de seus colegas, para os quais o alagoano era oportunista. Pouco tempo depois, partiu em expedição para o Amazonas. As anotações que fez durante a viagem e sua abordagem analítica sobre uma região tão desconhecida resultaram no livro O Vale do Amazonas, publicado em 1866.A partir de 1869, intensifica sua colaboração com jornais liberais, como O Diário do Povo e A Reforma. É quando percebe que é no jornalismo, mais do que na política, que a luta pelas reformas poderia ganhar seu maior e principal aliado: o povo.

AS IDÉIAS DE TAVARES BASTOS

Nas Cartas, publicadas na obra Cartas do Solitário, Tavares Bastos (assinando com o pseudônimo O Solitário) costumava fazer cuidadosa análise sobre o contexto político, social e econômico do País. Não raro, fazia referências à literatura, o que conferia aos seus escritos um “sabor” que agradava em cheio aos leitores.