quarta-feira, 14 de janeiro de 2009

A crise como possibilidade de um projeto nacional de desenvolvimento

Carlos Lessa
DEU NO VALOR ECONÔMICO


No início do milênio era majoritária, no Brasil, a percepção de que o modelo de desenvolvimento estava esgotado. Mudança era a palavra síntese das aspirações brasileiras ao bem-estar, à civilização e a uma sociedade que expurgasse os vestígios históricos inconvenientes.

Creio que o presidente Lula foi fiel a uma diretiva que, à falta de outro nome, chamarei neopopulista. Instituiu o programa Bolsa Família, que hoje beneficia mais de 11 milhões de famílias (há um saldo de duas a três milhões de famílias a serem incorporadas ao programa). É positiva a interatividade do Bolsa Família com a escola pública primária. É de grande coerência a elevação sistêmica do salário mínimo real, que é no Brasil o elemento que precifica o trabalho dos autônomos e informais e um argumento poderoso nas mesas de negociação sindical. Ao longo dos dois mandatos de Lula, a execução do programa Luz para Todos integrou milhares de localidades a redes elétricas. Outras iniciativas, em relação ao pequeno produtor rural, por exemplo, se alinham segundo a diretiva neopopulista. É meritória a firmeza com que o presidente Lula resiste às tentativas de mutilação do sistema de Previdência Social. Os encantos da Casa das Garças não lhe seduzem.

Observo, com preocupação e restrições, o crédito consignado e o desconto em folha. Sei do desejo popular pelo acesso a um crédito que lhe permita a aquisição de móveis, eletrodomésticos, computadores, automóveis e motocicletas. Na cultura popular, os denominados bens duráveis de consumo formam o patrimônio mais sólido da família pobre brasileira; servem de hipoteca para o comércio birosqueiro que lhe fornece o básico quando a volatilidade e a insegurança do trabalho informal geram um hiato de renda. Sei também que o sonho popular é desfrutar desses bens como escada de um patamar de vida melhor. O nosso típico comprador a prazo observa o tamanho da prestação; é displicente quanto aos juros implícitos ou explícitos no financiamento dessa aquisição. Além do mais, tenta ser um ótimo pagador, pois considera "sujar a ficha" um veto ao seu sonho patrimonial.

No Brasil, não há a prática da hipoteca na compra de bens duráveis. O candidato à compra, enquanto paga suas prestações, é um fiel depositário. Se não pagar, perde o bem e todas as prestações já pagas. No crédito consignado, o vendedor e o financiador estão tranqüilos, pois a previdência pública garante; no desconto em folha, a garantia é dada pela carteira assinada e pelo desempenho da empresa contratante.

A venda financiada pode estimular uma retomada de investimentos das empresas desses setores. Isso anima a indústria de máquinas e equipamentos e as engenharias voltadas ao planejamento e montagem industrial; novos empregos são criados, há tendência à melhoria salarial e novas vendas financiadas são realizadas. Em resumo, o endividamento familiar pode ser o ponto de partida de um circulo virtuoso de crescimento. Em contrapartida, pode dar origem a uma bolha análoga àquela que, tendo estourado, está na partida da atual crise econômica mundial.

Se as empresas, intimidadas pela crise, interrompem ou adiam seus investimentos, com isto destroem empregos e irradiam a sensação de tempos difíceis para todos os ramos empresariais. As famílias já endividadas tendem a encolher seus gastos correntes. Novos candidatos ao crédito relutam ou esperam uma promoção mais atraente. Se a queda do investimento privado for acentuada e acelerada a destruição de empregos, a bolha dos ativos financeiros pode se dissolver.

A crise mundial, em sua vertente de crédito, já se disseminou pela economia brasileira por variados caminhos. A bolha tupiniquim não pode se dissolver, porém a progressão e a intensidade da crise mundial tornam esta ameaça muito presente, sobretudo porque é desconhecida a extensão em que empresas atuantes no Brasil estão diretamente afetadas pelas fogueiras de derivativos e pela desaparição de ativos fictícios.

Porém, ao mesmo tempo, o Brasil pode rejeitar a política monetária orientada por metas de inflação, que nos situa em primeiro lugar no pódio mundial dos juros básicos; a sinalização e a prática de reduções substanciais da taxa Selic terá um efeito anticíclico extremamente positivo no Brasil. Entretanto, precisa ser acompanhada de uma centralização das operações de câmbio e uma política positiva e ativa de controle do movimento de capitais internacionais. O Banco do Brasil deveria ser o operador desta centralização e o Banco Central, ouvindo o Congresso Nacional, fixaria as principais diretivas.

Não podemos permitir que haja "um cristianismo sem inferno" para os especuladores, nem que filiais estrangeiras que se nutrem no mercado interno brasileiro façam movimentações especulativas de capitais; não podemos, sob hipótese nenhuma, permitir um ataque especulativo ao real após a destruição de nossas reservas internacionais. Creio que irão se multiplicar práticas de dumping e, de um modo geral, haverá um retorno a procedimentos protecionistas. Desde logo, o Brasil tem de trabalhar com estas hipóteses.

Se nosso BC passar a considerar a deflação mundial como um risco de crescente peso, políticas defensivas de setores agropecuários devem ser pensadas. Aparentemente, a crise mundial expulsou os neo-especuladores da globalização financeira da Bolsa de Mercadorias de Chicago; o discurso sobre o preço das commodities voltou a ser fundamentalista. Simultaneamente, procedimentos clássicos de controle de preços passaram a ser adotados.

O governo americano aumentou, substancialmente, sua reserva de barris de petróleo, tornando mais difícil as operações da Opep. A China manteve sua siderurgia a pleno vapor e passou a estocar os excedentes de aço produzido. Tanto a Rússia quanto a França já fixaram como diretrizes, nessa crise, preservar suas empresas essenciais. A Vale do Rio Doce, em vez de sua pretensão de ser a maior mineradora do mundo, deveria retornar a seu papel de empresa estratégica brasileira. Os puristas dirão que o Banco do Brasil e a Petrobras são hoje empresas de capital aberto, o que sugere a alta prioridade do fundo soberano brasileiro operar a recompra das companhias estratégicas para o desenvolvimento brasileiro.

Ao neopopulismo já executado com algum êxito, o presidente Lula dispõe da potencialidade do Brasil emergente em um projeto nacional de desenvolvimento que preserve e construa salvaguardas de uma crise mundial que, além de severa, irá reestruturar o grande jogo internacional.

Carlos Lessa é professor-titular de economia brasileira da UFRJ. Escreve mensalmente às quartas-feiras.

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