sexta-feira, 23 de janeiro de 2009

Voo às cegas

Míriam Leitão
DEU EM O GLOBO


Se escaparmos da crise global, teremos uma crise feita pelo governo Lula. O governo está aumentando o risco fiscal com medidas como a anunciada ontem. Vai transferir dinheiro de dívida interna e externa do Tesouro para o BNDES, que tem tomado decisões sem transparência e discutíveis sob vários aspectos. O gasto público não tem rumo, não tem projeto. É um voo às cegas.

Numa crise há dois riscos: um governo paralisado e um governo hiperativo. No caso brasileiro, estamos incorrendo nos dois riscos ao mesmo tempo. O governo está paralisado diante daquilo que ele deveria fazer, como redução dos custos trabalhistas e tributários das empresas; e hiperativo em ações que aumentam a exposição dos contribuintes ao risco. E não demonstra ter um plano de voo.

O país corta o orçamento do Ministério da Ciência e Tecnologia quando o país mais precisa de investimento em inovação e em ciência, por inúmeros motivos, e ao mesmo tempo transfere montanhas de dinheiro para a estatal de petróleo, que é a empresa com maior capacidade de captação que existe no país. A Petrobras limpou o caixa da Caixa e agora receberá R$20 bilhões do BNDES.

O Tesouro vai aumentar a dívida pública para dar um cheque de R$100 bilhões ao BNDES, para ele financiar empresas. Mas a primeira pergunta a ser feita em época de recursos escassos é: qual é o critério de alocação de recursos do banco que recebe tal cheque do Tesouro? Tomemos, por exemplo, a operação anunciada esta semana. O BNDES viabilizou a operação da compra da Aracruz pela VCP. As duas empresas tinham algo em comum, além do papel e celulose que produzem. Tiveram enormes prejuízos com derivativos cambiais. Juntas, uniram os prejuízos que o mercado calcula em torno de R$10 bilhões. O negócio foi feito com a ação da Aracruz sendo comprada por R$18 quando valia R$5,60. E o BNDES não foi apenas o financiador, ele já era sócio e aumentou sua participação numa empresa que, agora, terá um prejuízo maior.

Numa entrevista a Guilherme Barros, da "Folha", o presidente do BNDES, Luciano Coutinho, deu uma explicação robusta para ter viabilizado a operação: "Não podemos ficar de braços cruzados e deixar as empresas se estourarem. Em vez de deixar as empresas se espatifarem, o nosso objetivo é que elas tenham um papel objetivo no contexto global." A propósito: as empresas se espatifaram por escolha própria.

O economista Alexandre Marinis, que acompanha com lupa e preocupação as contas públicas, discorda inteiramente da operação que está sendo montada para essa megainjeção de dinheiro no BNDES.

- Eu questiono abertamente a intenção do governo de utilizar empréstimos do BNDES para amenizar o impacto da crise no Brasil. Todos sabem que o BNDES empresta o grosso dos seus recursos para grandes empresas, que têm melhores condições de levantar recursos, mesmo em meio a uma crise de liquidez, do que as micro, pequenas e médias empresas.

O economista Armando Castelar lembra que setores que mais empregam, como comércio e serviços, estão longe de serem os que recebem mais recursos do BNDES. Ele lembra que algumas grandes empresas, que têm acesso ao banco, estão capitalizadas, como a Vale. Mas como o crédito está caro, vai ser mais fácil e barato recorrer ao BNDES, que vai transferir recursos, como sempre, para as grandes empresas. Ele diz também que a queda do investimento não é por falta de crédito, mas sim porque há falta de demanda.

De cara, pelas contas de Castelar, a medida anunciada ontem tem um custo fiscal de R$4 bilhões. O Tesouro vai se endividar a custo mais alto (12,75%) do que o que receberá do banco (8,75%). Isso sem falar no risco de crédito que vai incorrer se o BNDES consolidar a linha neo-hospital que adotou para salvar empresas que podem se "espatifar".

O economista José Márcio Camargo acha que a grande pergunta não está sendo feita.

- O que deve ser perguntado é se essa é a forma mais eficiente de usar o dinheiro público para evitar a crise. Estudos dos últimos 60 anos provam que a forma mais eficiente de incentivar o consumo é reduzir a carga tributária sobre empresas e pessoas. Um plano de investimento, mesmo se for bem-feito, mesmo se houver demanda, vai demorar pelo menos uns sete meses para ser iniciado.

As dúvidas são muitas cada vez que o governo tira alguma ideia mirabolante da cartola. As medidas de redução de impostos adotadas até agora foram sempre benefícios a setores escolhidos, o que é um incentivo injusto e discricionário.

- O governo tem a ilusão de que as grandes empresas manterão o emprego e elas não farão isso. Os jornais já mostram que os setores que mais demitiram foram os que mais receberam recursos do BNDES. Todo mundo sabe que as principais geradoras de mão-de-obra são as micro, pequenas e médias empresas, justamente as mais desabrigadas no meio da crise, sem acesso a crédito, sem recursos do BNDES, sem benefícios do governo - diz Marinis.

O Brasil foi atingido por uma crise que veio de fora. Pode, agora, aprofundá-la com medidas insensatas com o pretexto de evitar a crise.

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