sexta-feira, 27 de fevereiro de 2009

O Erro

Pietro Ingrao
Tradução: A. Veiga Fialho
Fonte: Gramsci e o Brasil


Pietro Ingrao, nascido em 1915, é figura histórica do velho PCI e referência moral da esquerda italiana e europeia. Militante clandestino durante o fascismo, partigiano e depois deputado entre 1948 e 1992, chegou a ser presidente da Câmara de 1976 a 1979, nos “anos de chumbo” do terrorismo negro e do vermelho.

Na passagem abaixo, Ingrao empreende vigorosa autocrítica do comunismo, assinalando-lhe momentos luminosos na mobilização dos “de baixo” e passagens obscuras, derivadas da ruptura original com o princípio democrático. Ingrao examina desta perspectiva Lenin e Stalin, figuras centrais na história do comunismo do século passado. A passagem foi extraída de um importante depoimento dado a Antonio Galdo, intitulado Il compagno disarmato (Milão, 2004), no qual o velho dirigente advoga uma verdadeira distância crítica, por parte de homens e mulheres da esquerda, em relação à violência na política.

Dois livros de Ingrao foram publicados em português — As massas e o poder (Trad. Luiz Mário Gazzaneo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1980); Crise e terceira via (Trad. Carlos Nelson Coutinho. São Paulo: Livraria Editora Ciências Humanas, 1981) — e constituem ainda hoje, mesmo num contexto inteiramente mudado, pontos de referência para a reflexão sempre atual sobre democracia política e pensamento socialista. Em 2006 saiu na Itália seu grande livro de memórias,
Volevo la luna, do qual ainda não há tradução entre nós.

No interfone, na entrada do edifício de via Balzani, 6, está escrito um nome: Guido. Ingrao é muito ligado ao nome de guerra que tinha nos anos da clandestinidade (na documentação, porém, estava Vittorio Infantino), ainda que Togliatti não gostasse dele. “É alemão demais” — dizia o secretário do PCI. E no entanto o nome Guido, com o qual Ingrao quis chamar também seu único filho homem, permaneceu esculpido na família, quase como memória dos anos sombrios da conspiração comunista. Os anos durante os quais Ingrao conquista na ação a estima de Togliatti, que, apoiando-se nas novas gerações para construir o “partido novo”, considera-o um bravo companheiro, a ponto de lhe confiar, já em 1948, a direção de L’Unità. É um encargo prestigioso para alguém na casa dos trinta anos, porque na estratégia do secretário o jornal de uma força política de massas não é só um instrumento da propaganda política. É a bússola para os dois milhões de militantes que, ao cabo de poucos anos, inscrevem-se no PCI. É a voz da verdade, porque qualquer discussão entre companheiros termina num segundo se “L’Unità não disse isso”. E é um terreno fundamental de preparação da classe dirigente do partido: depois de Ingrao, virão, por exemplo, Alfredo Reichlin, Maurizio Ferrara, Giancarlo Pajetta, Aldo Tortorella, Claudio Petruccioli, Emanuele Macaluso, Gerardo Chiaromonte, Massimo D’Alema e Walter Veltroni. Todos diretores. Tal como Ingrao durante o “inesquecível 1956”. E de fato coube a ele escrever o editorial que censurava, de modo violento, os intelectuais, os operários e os estudantes húngaros que vinham às ruas só para invocar a liberdade. O artigo tem um título: “De um lado da barricada”, que indica uma precisa escolha de campo e não deixa espaço para qualquer forma de negociação. “Deve-se escolher entre a defesa da revolução socialista e a contrarrevolução branca em favor da velha Hungria fascista e reacionária” — escreve L’Unità. “Quando crepitam as armas dos contrarrevolucionários, fica-se ou de um lado ou de outro da barricada. Um terceiro campo não existe. Nós somos pelo socialismo, por aqueles que neste grave momento o defendem na Hungria com as armas na mão. Desejamos-lhes a vitória e conclamamos à solidariedade com eles todos os que odeiam a reação, o retorno ao passado, a violência branca.” Os raios do quotidiano do PCI antecipam a tempestade na Hungria, onde alguns dias depois as tropas soviéticas reprimiriam com sangue a revolução popular.

Jamais esquecerei aquele dia, 3 de novembro de 1956. Na redação soubera da notícia dos tanques que invadiam Budapeste para deter o protesto que irrompera em 25 de outubro. Percebi que se tratava de uma tragédia e assim telefonei a Togliatti pedindo um encontro. Antes de chegar na casa dele, em Montesacro, caminhei por muito tempo pelas ruas de Roma. Era uma tarde cinzenta, chuvosa. Triste. Diante da minha incerteza, das minhas dúvidas, Togliatti foi muito frio. Disse-me que não se devia ter dúvidas e, para cortar a conversa, usou esta frase: ‘Hoje bebi um copo a mais de vinho...’ Não tive força para reagir, voltei ao jornal e o preparei com enorme angústia. Na redação aconteceu uma discussão muito dura, até porque da periferia do partido, e mesmo das seções, chegavam sinais de forte contestação. As posições eram diversas, havia também aqueles que criticavam a URSS em nome do comunismo traído, mas convergiam num ponto comum: a exigência de uma crítica muito drástica e radical do stalinismo. Na cúpula do partido, a linha de Togliatti, de total adesão à invasão de Budapeste, foi corrigida graças às pressões de Giuseppe di Vittorio e de Umberto Terracini, mas o Erro permaneceu e a partir daquele momento nos acompanhou por toda a nossa história.

Meio século depois, aqueles dias representam a ferida mais grave nas recordações, lucidíssimas, de Ingrao. De um ponto de vista humano, significam a traição, a priori, daquilo que em seguida se tornaria um mandamento na longa batalha de Ingrao dentro do partido: o direito ao dissenso, a liberdade de ser contra. No plano político, escrever, ontem, um texto como “De um lado da barricada” significa reconhecer, hoje, o erro de uma leitura infundada do comunismo soviético e do seu pecado original. Mas, se há uma coisa que não falta a Ingrao é a coragem, o sentido de um desafio que se prolonga até inverter o ponto de vista de um passado que incomoda tanto que não pode ser cancelado.

O artigo de 1956 foi o Erro, com E maiúsculo, da minha vida. Porque lança uma luz sobre todos os atrasos, as incompreensões que cometemos não só sobre o específico drama húngaro, mas em geral sobre o leninismo e o stalinismo, isto é, sobre as duas figuras centrais na história do comunismo durante todo o século XX. Naquele momento não compreendemos, ou não quisemos compreender, que aquela ideologia nascera sob o signo do repúdio à democracia e com o uso sistemático de uma violência revolucionária que mata, reprime e destrói. Não percebemos, e poderíamos ter percebido, que sem limpar o terreno deste vício de origem do movimento comunista iríamos ao encontro de uma derrota dramática, como depois aconteceria inequivocamente. Eis por que falo de um erro fundamental, decisivo.

Portanto, em 1956, os comunistas italianos deveriam ter aberto os olhos e reconhecido uma violência que une, com um fio vermelho, a revolução de Lenin aos horrores do stalinismo.

Já Lenin afirmava a construção violenta do Estado e do poder político, e não se tratava só de uma resposta revolucionária ao sangue do capitalismo. Era uma idéia errada, erradíssima, de abuso e de esmagamento, que também atingiria, cedo ou tarde, uma parte do movimento operário. Tal como ocorreu, precisamente, em Budapeste, em 1956. E não só. Os massacres estavam fadados a se voltarem contra os próprios militantes, os próprios filhos. Os tanques na Hungria nos abriam os olhos para uma violência que devíamos recusar, e no entanto foi apregoada e inscrita nas nossas bandeiras.

Por outra parte, a história já confirmou ter sido Lenin quem assinou o decreto sobre o primeiro campo de concentração na Europa para aqueles que não compartilhavam suas idéias e, portanto, os gulags de Stalin já nascem com a Revolução de Outubro.

Antes nos iludíamos dizendo que havia uma diferença substancial entre os dois personagens centrais da história do comunismo e considerávamos Stalin o traidor dos ideais de Lenin. Não era verdade. Hoje, por sabermos a verdade, podemos captar melhor as diferenças entre Lenin e Stalin, a partir daquela que considero a mais significativa. Lenin, com sua revolução, teve em mente o poder dos sovietes e do partido, conquistado e defendido com a violência. Em vez disso, Stalin, com métodos ainda mais ferozes em relação a Lenin, tem em mente só o poder pessoal e do seu clã.

A autocrítica de Ingrao é radical, assinala a natureza, as raízes da ideologia comunista, e a investigação do erro não se reduz à leitura do passado, mas se torna um instrumento para olhar adiante. Mesmo que, noventa anos depois, a conta da verdade seja muito alta.

Os gulags não foram uma fábula, mas não vejo por que hoje deveria assumi-los no meu patrimônio, no meu sentimento de comunista, agora que não tenho nem mesmo o álibi de ‘não saber’. Ao lado desta derivação, o movimento comunista no século XX arrastou classes sociais inteiras para a luta política e social, e grande parte do crescimento da democracia, pelo menos na Europa, está ligada a esta participação, a esta batalha. Por que não deveria revisitar e reexaminar nossa história, ver as luzes e as sombras? Enfraqueço-me? Penso exatamente o contrário: a autocrítica me reforça. O arrependimento é uma palavra que não pertence à minha linguagem, tem um sabor de sacristia. Mas, se arrepender-se significa reconhecer os erros, então não tenho medo desta palavra. Tentar compreender onde erramos me ajuda a viver, a me sentir mais forte, a olhar para a frente. A reconstruir o passado para dar uma indicação sobre o futuro: pode-se aprender com os erros. E no horizonte futuro resta a necessidade de uma resposta às exigências, decisivas, de sentido da vida, de horizonte, num mundo vergado como então, como em todo o século XX, pela maldição de uma guerra. Passei uma vida batendo-me por coisas essenciais: o direito de se alimentar, crescer, se instruir, se cuidar, ser criativo no próprio trabalho. O movimento operário, no curso de um século, cresceu no contexto da reivindicação de necessidades fundamentais, a começar pelo grande tema do resgate do trabalho, e da exigência destas coisas nasceu a ideologia comunista, com seus erros, suas culpas, seus delitos. A violência armada, infelizmente, teve um lugar na história e na ideologia do movimento comunista. Em nome desta violência, o homem foi posto sob cadeias, quando nós o queríamos livre. Nossa derrota nasceu também daqui. Mas aquelas exigências permanecem presentes, continuam a ser atuais, e alguém terá de responder a elas...

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