domingo, 8 de fevereiro de 2009

Respostas à crise: o uso de Keynes

Pedro S. Malan
DEU EM O ESTADO DE S. PAULO

"Nunca a conjuntura foi tão pouco conjuntural" (André Lara Resende). O que é uma forma de dizer: há que ter senso de perspectiva quando se está em meio a uma crise econômica global do tipo que só ocorre em intervalos que se contam em décadas. Perspectiva não apenas para entender melhor como chegamos à situação atual, ver se há algo para aprender com as experiências de resolução de crises pretéritas; reavaliar como está o resto do mundo. Como também - e tão ou mais relevante - para olhar adiante, sabendo que "o que mais importa agora" é responder adequadamente à crise - o que exige um mínimo de perspectiva.

Relevância e urgência seriam razões suficientes para voltar ao tema de meu artigo anterior neste espaço (Respostas à crise e o crescimento). Há outras, que têm que ver com o uso, a meu juízo, indevido, que se vem fazendo entre nós das ideias do maior economista do século passado (J. M. Keynes) para defender um determinado tipo de resposta do Brasil à grave crise atual, com referência à forma como teria sido superada a crise dos anos 1930 - a mais grave até hoje conhecida e tema de revigorado debate entre os que buscam lições do passado para exigências do presente.

As situações e as respostas de hoje por certo não são nem poderiam ser as mesmas que as de quase 80 anos atrás. Entre 1929 e 1933, por exemplo, o PIB norte-americano declinou, em termos nominais, em mais de 50%, divididos quase meio a meio entre queda real e deflação (queda de preços). O desemprego nos EUA quando Roosevelt iniciou seu governo (março de 1933) chegava a 25% da força de trabalho. E, apesar do New Deal, houve uma recessão intensa nos EUA entre março de 1937 (início do segundo mandato de Roosevelt) e maio de 1938, contribuindo para que o nível do PIB nominal que os EUA haviam alcançado em 1929 só fosse superado em 1940, um ano após o início da 2ª Guerra Mundial.

Keynes tinha convicção sobre a crucial importância da recuperação da economia dos EUA para o resto do mundo. Instado por amigos americanos, escreveu bela carta a Roosevelt em dezembro de 1933. Convidado pela Universidade de Columbia, visitou os EUA em maio de 1934 e por três semanas, em contatos com empresários, financistas, políticos e altos funcionários da administração, inclusive com o próprio Roosevelt. Na sua principal palestra pública nessa viagem abordou o tema da retomada à luz de duas perguntas básicas: que medidas podem ser adotadas para acelerar o retorno à normalização das atividades empresariais? Em que escala, por meio de que expedientes e por quanto tempo são recomendáveis níveis anormais de dispêndio governamental?

Keynes argumentou que a confiança empresarial estava "singularmente escassa" e sugeria que por "pelo menos seis meses e provavelmente um ano" a retomada dependeria fundamentalmente dos estímulos supridos pelas autoridades na forma de gastos emergenciais. E insistiu na necessidade de aumentar a efetividade das políticas de retomada do crescimento em cinco áreas: investimentos em habitação, ferrovias e "utilities"; reabertura do mercado de capitais; redução da taxa de juros de longo prazo e manutenção da política cambial que fixara uma nova relação (desvalorizada em quase 60%) entre o dólar e o ouro, que prevaleceu até 1971.

É importante notar, para propósitos do debate atual, que Keynes falava em "problemas de ignição", em gastos governamentais temporários, emergenciais, contracíclicos, como se diz hoje. E escreveu na carta a Roosevelt: "No segundo capítulo desta história, os dispêndios do governo podem ser reduzidos à medida que o setor privado retome seu papel."

Mas o fato é que muitos, no mundo de então, e de hoje, viram, e veem, a sugestão de Keynes para sair da Depressão como uma "parte permanente do mecanismo de preservação da demanda". Vale citar a explicação de Keynes em correspondência (de 1934) dirigida ao chefe da Divisão de Pesquisa e Planejamento da National Recovery Administration: "A minha teoria (ênfase no original) é a mesma seja o dispêndio realizado pelo governo ou pelo setor privado... apenas no evento de uma transição para o socialismo alguém deveria esperar que o dispêndio governamental desempenhasse o papel predominante de forma mais permanente."

Keynes escreveu novamente a Roosevelt em fevereiro de 1938, com os EUA de novo em recessão. Além de advogar a sua já conhecida prescrição de aumento de obras públicas, especialmente em serviços públicos de infraestrutura (nos quais via as políticas recentes da administração como inibidoras do investimento privado), Keynes também sugeria que a administração Roosevelt adotasse um conjunto diferente de atitudes (mais positivas) para com o investimento privado.

Roosevelt encaminhou a carta a seu secretário do Tesouro, que respondeu a Keynes de forma lacônica. Este replicou em março de 1938 com as seguintes palavras: "... Você precisa ou dar mais encorajamento ao setor empresarial ou assumir mais de suas funções você mesmo... suas políticas recentes parecem presumir que você tem mais poder do que efetivamente dispõe." Sábio conselho, que retém surpreendente atualidade no mundo de hoje.

Estas longas digressões me vêm à mente ao ver com frequência, no nosso debate atual, o nome de Keynes, suas ideias e sua Teoria Geral... utilizados para justificar aumentos de gastos permanentes e recorrentes do governo, como contratação de pessoal, aumento de salários públicos, custeio de toda ordem, como se fossem gastos contracíclicos de inspiração keynesiana, destinados não só a responder à crise atual, como a assegurar, de forma permanente, níveis adequados de demanda efetiva e apropriados estímulos ao investimento. Uma postura que torna mais difícil alcançar o objetivo de redução (crível) da taxa de juros reais de longo prazo, tão necessária - entre outras coisas - ao crescimento sustentado da economia brasileira.

Pedro S. Malan, economista, foi ministro da Fazenda no governo FHC

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