quarta-feira, 25 de março de 2009

O governo dos cupins

EDITORIAL
DEU EM O ESTADO DE S. PAULO

O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso acaba de acrescentar ao léxico político nacional um expressivo neologismo: cupinização. O termo é adequado para designar, como ele fez, as consequências do aparelhamento do Estado nacional sob o governo Lula. Aparelhamento, como se sabe, é uma modalidade do tradicional loteamento dos cargos estratégicos da administração pública pelos partidos (e caciques) que integram a fronda governante. A versão original combina uma forma de pagamento pelo ingresso das legendas no esquema de poder, com o incentivo, na mesma moeda, para a atração de novos parceiros, cujos votos no Congresso são caros - no duplo sentido da palavra - ao presidente da República. É a clássica fisiologia, aparentemente inseparável do presidencialismo de coalizão brasileiro. Já o aparelhamento é a ocupação do Estado pelo apparat do partido dominante - que, no caso específico do PT, se entrelaça com o baronato do sindicalismo, formando uma crosta na hierarquia federal.

Embora não haja separação estanque entre as duas coisas, a fisiologia é o portal por onde passam os recursos públicos desviados para os partidos, os clãs que os lideram e os interesses privados que a eles se agregam para manter relações de mútua conveniência. A rede se sustenta em dois pontos. Primeiro, na capacidade do donatário mais graduado na estrutura administrativa, nas estatais e nos fundos de pensão de distribuir à patota outros empregos valiosos, ampliando o círculo de lealdades ao seu redor. Segundo, no capital - de novo em duplo sentido - que isso lhe permite acumular para se sair bem na conquista de mandatos eletivos, do que ele depende para tudo mais. O aparelhamento, por sua vez, corrompe o governo de uma forma quem sabe ainda mais profunda, ao colocá-lo a serviço de uma ideologia e da ambição do partido que a encarna de nele se perpetuar, além, naturalmente, de consolidar, sob o teto do Estado, os laços entre as elites dirigentes e as dos setores sociais afins - no caso, a cúpula das burocracias sindicais.

O resultado é a silenciosa erosão interna da área estatal e da presumível aptidão de seus ocupantes para desempenhar as funções que as leis lhes conferem e a sociedade dela tem o direito de esperar em troca de seus impostos. É assim que "a substituição de técnicos por militantes vai minando a estrutura pública", argumenta Fernando Henrique para justificar a analogia com a deterioração das estruturas físicas pela ação do cupim. Isso por certo não ocorre da noite para o dia, mas a cupinização produz outro efeito, este sim imediato e visível a olho nu na era Lula: a desintegração da competência potencial do Estado. As peças dessa engrenagem se encaixam com naturalidade. De um lado, é o nexo entre aparelhamento e perda acentuada da capacidade de gestão da máquina, ainda mais com a conhecida inapetência de quem deveria conduzi-la para assegurar que os seus programas, quando exequíveis, se transformem em fatos, com um custo mínimo em tempo e dinheiro. De outro lado, o nexo entre o aparelhamento e a degradação da política.

Quando o partido que elege o presidente e se apropria do Estado não é hegemônico no sistema político, como é o caso do PT, que nem sequer tem as maiores bancadas na Câmara ou no Senado, a contrapartida do aparelhamento bem-sucedido é o acumpliciamento com a fisiologia no Executivo - a partilha dos despojos do poder - e com as piores práticas no Legislativo. A clique que desmanda no Senado, por exemplo, é toda ela lulista; não teria por que não ser, confortável que se encontra nesse ambiente de promiscuidade. E Lula, com a anuência obsequiosa da companheirada, é mais do que omisso: para "amarrar o Congresso" aos seus interesses, aponta Fernando Henrique, mostra-se indulgente com as malfeitorias que desmoralizam a instituição perante a sociedade, "passa a mão na cabeça de quem faz coisa errada". Ele considera "bambo" o sistema de representação e defende uma mudança nas regras eleitorais.

Mas a reengenharia eleitoral provavelmente pouca diferença fará enquanto o presidente da República e o seu partido tiverem da democracia a visão instrumental que os faz se sentir no direito de lotear o Estado e de confraternizar com os expoentes do que a política nacional tem de mais conspurcado.

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