quinta-feira, 26 de março de 2009

Vícios e virtudes

Carlos Alberto Sardenberg
DEU EM O GLOBO

O Brasil quebrou nas crises internacionais anteriores. O roteiro era o seguinte: fuga de capitais, redução brutal dos financiamentos externos, desvalorização do real, choque de inflação e forte elevação da dívida externa quando medida em reais. Resultava daí a dupla resposta do governo: alta dos juros para combater a inflação e, sobretudo, para impedir mais saída de capitais; e corte de gastos públicos de modo a sobrar mais dinheiro para o governo comprar os dólares com os quais saldaria os compromissos externos. Alta de juros e corte de gastos terminavam em recessão.

Desta vez, houve forte restrição dos financiamentos externos, saída de dólares e a consequente desvalorização do real. Mas não houve inflação, e a dívida pública caiu, de modo que o governo pode reduzir juros e até aumentar seus gastos.

Entre um momento e outro, a principal diferença está nas contas externas. Com a bonança global dos últimos anos, o Brasil acelerou suas exportações, que geraram substanciais superávits comerciais. Com a sobra de dólares, o Banco Central iniciou uma forte política de compra de divisas. Quando a crise estourou, o BC tinha reservas de US$207 bilhões, número superior ao total da dívida externa pública e privada de médio e longo prazos.

E mais: a dívida externa pública estava reduzida a US$90 bilhões, de modo que o governo, pela primeira vez, era simplesmente credor em dólares. Assim, com a desvalorização do real (e a consequente valorização do dólar), o governo agora ganha dinheiro. Ou seja, a dívida pública, medida em reais, diminui em vez de aumentar. E isso dispensa a política de cortar gastos. Ao contrário, libera gastos.

De outro lado, a desvalorização do real não provocou inflação porque houve uma forte queda de preços internacionais. Assim, o dólar ficou mais caro, mas o produto lá fora ficou mais barato em dólar, uma coisa compensando a outra.

Finalmente, os muitos anos seguidos de aplicação da política econômica clássica (metas de inflação, superávit primário, redução do endividamento e câmbio flutuante, com mais abertura externa) consolidaram seus efeitos. Na entrada da crise, o Brasil já era grau de investimento.

Tudo considerado, o Brasil colheu as virtudes da ortodoxia e da globalização. Em vez de quebrar (e cair nas mãos do FMI), apenas desacelera, num ciclo normal.

Fora isso, o Brasil se beneficia de seus vícios. É isso mesmo. A crise é do comércio externo e do crédito - e o Brasil tem pouco comércio e menos crédito.

Coreia do Sul e México, por exemplo, estão apanhando mais. A economia coreana exporta o equivalente a 50% do seu Produto Interno Bruto. No México, a exportação passa um pouco dos 40% do PIB.

No Brasil? As vendas externas (US$198 bilhões no ano passado) equivalem a 13% do PIB. Portanto, a queda nas exportações, que já ocorre, afeta menos a atividade econômica local.

Mas o lado mais evidente dessa "vantagem" dos vícios está no departamento do crédito. No ano passado, o crédito total no Brasil chegou a 41% do PIB. Na Coreia, o crédito doméstico equivale a 110% do PIB. Portanto, investimentos e consumo dependem muito mais do fluxo de empréstimos do que no Brasil. Logo, se o crédito seca, o problema é maior lá.

Outras comparações: no grande ano de 2007, quando o mundo todo cresceu espetacularmente, o crédito concedido nos EUA para a compra de casa própria chegou a 86% do PIB. Para a aquisição de carros, 9,2%.

Na Coreia do Sul, o crédito imobiliário representava 53% do PIB. Para automóveis, 17%. E no Brasil? O ano passado foi considerado um dos melhores para o setor imobiliário. Só pelo Sistema Financeiro de Habitação - empréstimos com base nos recursos da caderneta de poupança - foram financiadas quase 300 mil casas, no valor total de R$30 bilhões. Isso dá a ridícula relação de 1% do PIB. Se consideradas outras modalidades de financiamento, incluindo as casas populares, subsidiadas, o total financiado não chega a 3% do PIB.

Logo, a falta de crédito abala pouco. E continua sendo um defeito.

Também dizem que nosso sistema bancário é mais sólido. Mas claro que é sólido: não empresta e quando empresta cobra esses juros!

Carlos Alberto Sardenberg é jornalista.

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