segunda-feira, 27 de abril de 2009

Na democracia da chupeta, a ordem é desfrutar

José de Souza Martins*
DEU EM O ESTADO DE S. PAULO / ALIÁS

O país do abuso despudorado da coisa pública tem até hino nacional da mordomia: a marchinha ?Mamãe Eu Quero Mamá?

O uso de recursos públicos para benefícios privados, como neste caso das passagens aéreas pagas pela Câmara para viagens de parentes de parlamentares até para o exterior (e o caso dos celulares), escandaliza muito mais pela surpresa que demonstraram os escandalizantes com o escândalo noticiado. As manobras, legais é bom que se diga, para dar um revestimento de decência e correção ao abusivo bem demonstram quanto se trata do que é tido como direito costumeiro, o direito de abusar. O erro não estaria no conteúdo, mas na forma. Por isso, suas excelências até abrem mão da mordomia, porém recompensando-se com o aumento dos vencimentos.

Não é só o Legislativo que vai além das pernas no uso da coisa pública. O Executivo também abusa. Muitos ainda se lembram de Lula transportando amigos dos filhos em avião do governo para viagem a Brasília e temporada no próprio Palácio da Alvorada, como se o palácio presidencial fosse hotel turístico, pago pelo povo para desfrute de parentes, cupinchas e cortesãos.

Foi o próprio Partido dos Trabalhadores que difundiu o rótulo de maracutaia para definir a pilantragem que se esconde por trás de ações que mostram o supérfluo e escondem o essencial. É relativamente recente o conceito popular de "mordomia" para designar os benefícios pessoais dos que, no poder, estendem por conta própria o elenco dos privilégios associados ao exercício da função pública. Existe até mesmo o hino nacional da mordomia, o Mamãe Eu Quero Mamá, do alagoano José Luís Rodrigues Calasans, o Jararaca, da dupla Jararaca e Ratinho. Embora mais antiga, a música só foi gravada em fins de 1936. É o hino do deboche brasileiro em relação aos que, no poder, ultrapassam o limite da decência no uso do que é público. É o nosso "quero meu dinheiro de volta" do neoliberalismo da sra. Thatcher. Mas aqui, ao contrário, muitos querem entrar na mamata, palavra brasileira que nos diz quão arraigada é entre nós a relação entre poder e desfrute.

O abuso no exercício do poder tem tido seus críticos e adversários, os arautos da decência no cumprimento de mandatos políticos. Mas a nódoa do abuso carimba todos os políticos, até os que não merecem, com a marca destrutiva da rejeição pública da instituição maculada.

A coisa entre nós é antiga e faz parte de uma sólida cultura política que não separa o público do privado. O que inclui a corrupção, o nepotismo, o uso descabido da coisa pública, o clientelismo. São práticas que desfiguram a representação política e reduzem nossa democracia ao meramente teatral, em que quem vota elege quem não foi votado. A cultura da mordomia é a cultura do desprezo pelo eleitor e pelo cidadão, pois é uma prática anticidadã que difunde a concepção de que a política é uma fraude e a representação política é uma trapaça, mesmo que isso seja injusto em relação a muitos políticos.

As práticas todas do clientelismo constituem forma de distribuir favores no varejo para desfrutar privilégios no atacado. Uma coisa legitima a outra, cooptando o eleitor. Essa é uma cultura de minimização do cidadão, forma de atá-lo ao cabresto de um poder que não reconhece nele a republicana condição de sujeito de vontade própria. Muita gente boa entrou nessa. Rui Barbosa, senador da República, foi aquele que disse: "De tanto ver triunfar as nulidades (...) de tanto ver agigantarem-se os poderes nas mãos dos maus, o homem chega a desanimar da virtude, a rir-se da honra, a ter vergonha de ser honesto". Mas que desdisse o dito ao escrever um dia ao barão de Jeremoabo, no sertão da Bahia, pedindo-lhe que reservasse todos os votos da região para si. Votos de cabresto, o eleitorado na canga do mandão político, roubado em sua vontade política.

Os truques legais para manutenção da farra do poder têm sido vários. Na República Velha, os políticos inventaram a chamada verificação de poderes. Não bastava ser eleito pela suposta vontade popular. O próprio Legislativo tinha que legitimar o voto e assegurar, ou não, ao eleito que eleito estava. Quem pudesse representar risco ao poder estabelecido e às conveniências internas, que faziam da representação política não uma representação da vontade popular dos cidadãos, mas a legitimação da ordem e dos acordos estabelecidos, tinha pouca possibilidade de assumir o mandato. Foi necessária a Revolução de Outubro de 1930 para romper essa malandra distorção do poder.

A base dessas distorções estava no caráter estamental do poder político. Durante larguíssimo período, na Colônia, só podiam votar e ser votados os chamados "homens bons", limpos de sangue e puros de fé, os senhores de terra e de gente, os chamados "pais da pátria", os bem nascidos. A imensa massa do povo era mal nascida, gente sem qualidade, como se dizia, constituída de escravos indígenas, negros e de pessoas livres, mas consideradas degradadas pela mestiçagem, não raro recenseadas como bastardas. Mesmo os brancos que fossem oficiais de profissões manuais estavam interditados para o poder, porque se atribuía um caráter diabólico e degradante aos trabalhos feitos com as mãos, na ação de trabalhar e transformar.

O mundo do bem era o mundo da ordem, cada qual e cada coisa em seu lugar, estamental, as camadas sociais rigidamente superpostas por razões de nascimento. O mundo do trabalho era o mundo subversivo da desordem, da produção, da transformação de coisas em coisas diversas, o mundo da imaginação.

O que estamos presenciando no Brasil, nesses abusos cometidos no âmbito do poder, é justamente a contínua regeneração da sociedade estamental, a reestamentalização do Brasil, o contínuo restabelecimento de uma ordenação social baseada em privilégios. Mesmo que os privilégios já não sejam os do nascimento, como se vê na Presidência, na Câmara e no Senado, ficaram eles "grudados" nas instituições, de modo que quem lá chega, em vez lutar para revogá-los e democratizar a concepção do mandato político, trata de agarrar-se a eles.

Sentem-se mais eleitos para desfrutar do que para representar.


*Professor titular de sociologia da Faculdade de Filosofia da USP e autor, entre outros títulos, de A Aparição do Demônio na Fábrica (Editora 34)

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