segunda-feira, 27 de abril de 2009

A hora da verdade pobre

José Arthur Giannotti
DEU NA FOLHA DE S. PAULO / MAIS!

Turbulência financeira deveria levar Estados a tomar decisões e oferecer oportunidade de mudanças políticas

Estamos acostumados à ideia de que a crise do sistema capitalista de produção é ensejo para que a sociedade capitalista se passe a limpo.

Na crise, o capital mostra o que ele é: um sistema quase automático de produção de riqueza que, em seu processo de reposição, expande o crédito, incha o capital financeiro, que, chegando às alturas, estoura para que as transações econômicas voltem a tomar pé na realidade, reajustando oferta e demanda dos bens produzidos e consumidos.

Não há responsabilidade pessoal no excesso. À medida que cada um trata de seus interesses, nada mais natural que procure as brechas do sistema visando a aumentar seus lucros, seu salário, os juros de seus investimentos, os benefícios sociais.

Mas a famosa equação segundo a qual a trama dos interesses privados resulta no reforço dos interesses públicos se desfaz durante a crise, quando se torna do interesse público salvar o que puder dos interesses privados. Mas quais deles?A redução da economia a seu tamanho real, inclusive com queima de ativos que se mostram inadequados à retomada do círculo econômico, prejudica toda a população, mas de forma tremendamente desigual, tanto do ponto de vista econômico como do social.

Um banqueiro, um investidor, um industrial podem perder milhões, mas os assalariados perdem seus empregos. A crise econômica se transforma em crise social.

Até o início do século passado, a crise social ameaçava o sistema político como um todo.

O espectro do socialismo rondava a Europa, mas, no final das contas, o resultado foi sempre um reforço violento do Estado, quer sob forma mais democrática, implementando políticas keynesianas, quer simplesmente sob forma ditatorial: nazismo ou socialismo real.

Hoje em dia o panorama é diferente. Os assalariados prejudicados não se organizam como classe antagônica ao capital, mas pressionam pela manutenção dos direitos sociais adquiridos, de sorte que reforçam o Estado sem reivindicar sua transformação.

Na Europa, mesmo que isso venha a prejudicar o processo de integração europeia, consolidam-se o foguetório do presidente francês Nicolas Sarkozy ou a caricatura do premiê italiano Silvio Berlusconi.

Na Ásia, com algumas exceções que nada têm a ver diretamente com a crise, firmam-se a ditadura comunista ou o jogo brutal do sistema político japonês. Na América do Sul, se reforça o novo populismo, que, já antes da crise, crescia para dar conta das demandas dos menos favorecidos.

Sociedade de consumo

Para todos importa salvar a sociedade de consumo. Vale o Estado que se tem, desde que consiga colocar a economia nos eixos.

Uma diferença ocorre nos Estados Unidos.

Obviamente, não há demandas por transformação do Estado, mas a política de Barack Obama rompe com a política de George W. Bush, promove maciça intervenção estatal no sistema financeiro -que, se não estatiza os bancos, é porque talvez possa ter controle sobre eles sem que haja completa transferência da propriedade para as mãos do Estado.

Uma das alterações básicas na dinâmica do jogo político ocorre justamente porque a questão da propriedade deixa de ter a importância de antigamente. Os meios de produção se socializaram não porque passaram para o controle democrático da população, mas simplesmente porque caíram nas mãos das burocracias impessoais.

Os bilionários do momento são apenas pontas do iceberg tecnoburocrático que conseguiram montar. Bill Gates desapareceria em pouco tempo se a Microsoft não conseguisse produzir a renovação de seus produtos no ritmo imposto por seus adversários.

O núcleo da propriedade está nos meios da renovação tecnológica que tende a se repor por si mesma.

No entanto, ao menos uma mentira foi desmascarada: a pretensão neoliberal de que os mercados possam crescer sem cair no abismo. Parece-me, contudo, no sentido inverso do que se tem pretendido. Por si só o capital tende a se globalizar.

Com o desenvolvimento da tecnociência, em particular com a extraordinária expansão dos meios de comunicação eletrônicos, era inevitável que o sistema produtivo globalizasse suas bases e o sistema financeiro passasse a operar continuadamente.

As regulações anteriores, inclusive o acordo de Basileia [acordo de 1988 que regulamenta a atividade bancária, substituído em 2004 pelo Basileia 2; atualmente se discute a criação de um acordo de Basileia 3], se tornaram obsoletas; a inventividade dos operadores financeiros levou ao limite a expansão imaginária da riqueza social.

Esse fenômeno de autoalimentação fantasiosa do capital financeiro, que Marx admiravelmente descreveu como a forma mais perfeita da alienação do capital, caminhou por si só até que ele próprio encontrasse seus limites.

As hipotecas sobre hipotecas sobre hipotecas avançaram até pôr em xeque o sistema de crédito. Quando esse faliu, a economia como um todo se travou.

Discurso e ideologia

A ideologia neoliberal, o Consenso de Washington e suas outras manifestações apenas legitimavam o que se dava per se. As políticas de contenção do crédito e de ajuste das cadeias produtivas só tiveram efeito na margem.

Fosse qual fosse a ideologia dos governantes, todos eram levados pelo mesmo roldão.

Exemplo significativo é o caso brasileiro, pois desde Collor [1990-92], passando por Fernando Henrique até Lula, a mesma política econômica foi mantida nas suas bases. As diferenças se deram no gogó. Agora a ideologia evaporou porque a travação imaginária do capital se colocou em xeque.

Não tenho ilusões. A crise demanda intervenções políticas, que tendem a se fazer, contudo, nos quadros de um Estado preexistente. Ela passará conforme o capital for reforçado e renovado.

Mas, nesse movimento de reflexão, se cria a oportunidade de reformar o sistema e o jogo políticos, à medida que eles revelam suas dimensões imaginárias e opressoras.

O reforço da política, mesmo passageiro, permite que se aprofunde ou se mistifique a democracia, o controle popular dos mecanismos econômicos e da trama das instituições burocráticas.

A hora é agora. Mas não vejo no horizonte, quer na verborragia do governo Lula, quer no vazio abissal das oposições, uma brecha que de fato aumente o controle popular sobre nossos processos de governar.

Pelo contrário, a política entre nós se torna uma deslavada mentira.

José Arthur Giannotti é professor emérito da USP e coordenador da área de filosofia do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento. Escreve na seção "Autores", do Mais!.

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