segunda-feira, 4 de maio de 2009

Moldar-se e acomodar-se

Fábio Wanderley Reis
DEU NO VALOR ECONÔMICO


Uma velha regra do método sociológico, formulada pelo sociólogo francês Émile Durkheim, mandava "tratar os fatos sociais como coisas". Durkheim procurava realçar, com essa regra, o caráter "externo" e o aspecto de causalidade "objetiva" que marcaria os produtos da vida em sociedade, a cuja coerção a consciência dos indivíduos não poderia escapar.

Discussões mais recentes ligam esse traço objetivo e causal com o fato de que ele é a cristalização - que Jon Elster designa como causalidade "supraintencional" - das interações em que os agentes individuais e grupais atuam intencionalmente e buscam, no limite de modo "racional", objetivos próprios de qualquer natureza. Em contraste com esse tipo de causalidade, e "aquém" do nível do comportamento intencional e racional suposto especialmente pela ciência econômica, Elster fala da causalidade "subintencional", em que o comportamento humano é condicionado (eventualmente "determinado") por fatores de que se ocupam disciplinas como as ciências naturais e biológicas e a psicologia, em particular a chamada psicologia profunda. De qualquer forma, do ponto de vista do estudo da sociedade e da política, surge aqui o problema de como apreender adequadamente, para usar linguagem sugerida por Thomas Meyer, a tensão entre a possibilidade de "moldar" o contexto sociopolítico geral e a necessidade de tomá-lo como dado e "ajustar-se" ou "acomodar-se" a ele - e, naturalmente, o de como ir além da tensão por meio da "moldagem" que resulte realisticamente do "ajuste", ou do diagnóstico acurado dos mecanismos de causalidade em operação.

No plano da causalidade supraintencional, a crise econômica que vimos atravessando ilustra de maneira assombrosa como o comportamento intencional e supostamente racional de muitos redunda, com o funcionamento do mercado, em mecanismos causais deletérios no nível agregado. Se ela mostra, por outro lado, a necessidade de contar com o Estado como o foco de uma intencionalidade e racionalidade coletiva, os embaraços com que defronta a ação do Estado reiteram a evidência de que ele próprio é, em ampla medida, a resultante de fatos sociais "coisificados" que surgem como dados a que deve ajustar-se e que constrangem sua capacidade de iniciativa e moldagem.

Mas o noticiário da última semana, ou pouco mais, nos tem exposto intensamente ao impacto de fatores que operam antes no plano da causalidade subintencional. Há, para começar, o câncer da ministra Dilma Roussef, com respeito ao qual uma ocorrência alheia ao campo intencional do jogo de manobras e estratégias da política interfere nesse jogo ao ameaçar afastar uma candidata potencialmente forte da disputa presidencial de 2010. Não obstante as razões óbvias para que o assunto seja tratado com delicadeza, é fatal que ele seja objeto de especulações e cálculos nos meios políticos. Naturalmente, o desafio do equilíbrio entre moldar e ajustar-se assume feições pessoais dramáticas para a própria ministra, mas se coloca também para o governo e as forças políticas que a têm como candidata virtual.

Há, além disso, o susto mundial do surto de gripe suína. Dependendo da força que venha a adquirir, ele pode tornar em boa medida irrelevantes muitos dos problemas que têm recheado a agenda política e econômica de governos e atores variados em diferentes países. Ao lado dos efeitos imediatos que se têm feito sentir sobre a dinâmica econômica já comprometida pela crise, sua importância política potencial tem também transparecido nos poucos dias desde a emergência do tema no noticiário. Que responsabilidade atribuir a este ou aquele governo ou autoridade quanto a possíveis atrasos ou deficiências nas providências iniciais? Estarão diferentes governos, incluído o brasileiro, em condições de agir com rapidez e eficiência a respeito? Qual o eventual impacto do surto sobre as relações entre países?

Mas mesmo o entrevero ocorrido há dias no Supremo Tribunal Federal merece ser visto na ótica da causalidade subintencional, o que sem dúvida é parte importante do que o episódio teve de chocante. Afinal, o STF é o lugar por excelência em que se esperaria o comportamento racional e a operação zelosa e lúcida da intencionalidade na condução da deliberação sobre assuntos frequentemente de crucial importância. É lamentável, e daí o choque, ver seus integrantes envolvidos em bate-boca em que turvos motivos psicológicos afloram e lhes escapam ao controle. Numa dinâmica em que o presidente do colegiado e da sessão obviamente a conduziu desde antes de maneira inepta, fui pessoalmente impactado em especial por sua risada de escárnio fazendo fundo sonoro, a certa altura, para a imagem do ministro Joaquim Barbosa a dirigir-lhe acusações pesadas e inequivocamente ofensivas. Se é inadmissível que o presidente do STF tenha o escárnio como recurso na condução de suas sessões, as coisas se tornam mais feias diante da patente nota falsa do escárnio - o riso forçado e nervoso de quem se vê atingido e, levado ao descontrole, não encontra a reação apropriadamente sóbria que se esperaria das responsabilidades institucionais do chefe do poder Judiciário que ele próprio invocara semanas antes.

Como forma de ajustar-se ao desastre como dado, o ensaio de desagravo da sessão do dia 29 era provavelmente recomendável do ponto de vista institucional. Pena, de certo modo, que a própria psicologia do STF tenha impedido que fosse unânime mesmo na ausência de Joaquim Barbosa.

Fábio Wanderley Reis é cientista político e professor emérito da Universidade Federal de Minas Gerais. Escreve às segundas-feiras

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