sexta-feira, 5 de junho de 2009

NOMES E USOS DA CIDADE

Maria Alice Rezende de Carvalho1
DEU NO BOLETIM CEDES/IUPERJ

Recentemente, um considerável número de estudos sobre a cidade tem destacado a dificuldade de se entender a experiência urbana contemporânea a partir do modelo da cidade industrial de massa. Como se sabe, a chamada revolução industrial de fins do século XVIII forçou a concentração populacional em um mesmo território, segmentando socialmente e diferenciando funcionalmente espaços e habitantes. Nascia a cidade especificamente moderna.

Esse modelo de cidade, contudo, não foi o resultado “natural” da crise das sociedades tradicionais e do nascimento das fábricas. Sua emergência, ao contrário, era imprevisível e decorreu do embate de agências intelectuais e políticas muito poderosas, representadas por filantropos, literatos, socialistas, autoridades sanitárias e policiais, lideranças operárias e empresariais, educadores e religiosos.

Tal debate foi crucial à modelagem não apenas da nova cidade, como da própria era moderna. Em primeiro lugar, porque os argumentos mobilizados por aqueles atores deslocaram hábitos mentais antigos e estabeleceram explicações racionais para as ocorrências. Mas, sobretudo, porque, em o fazendo, formularam princípios prescritivos quanto à ordem que a sociedade deveria assumir. De modo que analítica e moralmente, ou seja, tanto no plano cognitivo, quanto no plano normativo, forjaram um modelo de cidade que se impôs ao mundo e que, ao avançar, apagou os rastros da sua invenção. De contingente, portanto, passou a “natural”, prescindindo de qualquer fonte de justificação.

A cidade, enfim, era a evidência da natureza utilitária da maioria da humanidade e da sua capacidade de associação para realização pacífica de seus interesses. Os grandes boulevards dignificarão essa representação do utilitarismo.

Foi apenas nas últimas décadas do século XX, quando os pressupostos da modernidade começaram a ser questionados, que os artefatos modernos conheceram um processo de gradativa “desnaturalização” – dentre os quais, as cidades. A partir daí, erigiram-se duas grandes vertentes de discussão sobre as vicissitudes contemporâneas do urbano. São, em parte, faces da mesma moeda: de um lado, a vertente que questiona teoricamente a noção de cidade, tendo em vista sua afinidade genética com outras noções em declínio, como a de trabalho ou mesmo a de planta fabril, em uma economia dita informacional. Nesse caso, opera-se com a crítica disciplinar sistemática, mobilizando-se a teoria sociológica para evidenciar, por exemplo, os limites heurísticos do conceito de cidade. Há, também nesse flanco, uma variante menos sistemática e mais fenomenológica, que comparece, por exemplo, no trabalho recente de Mike Daves, intitulado “Planeta Favela”. Nele o rendimento heurístico da noção de cidade é questionado pela saturação de retratos empíricos da sua falência vis-à-vis a eclosão planetária de favelas.

A outra vertente é a que toma a história como um instrumento crítico, de modo a descortinar formas concorrentes de representação do mesmo fenômeno, que, contudo, permaneceram ocultadas pela hegemonia de certa configuração.

No que se refere especificamente à noção de cidade industrial de massa, a crítica histórica parece ser mais promissora, uma vez que a Sociologia, como disciplina, é parte do problema. Foi a Sociologia, afinal, que afirmou a universalidade daquele tipo de cidade, de tal modo que a ela se poderá chamar de “cidade sociológica”.

Assim, para a finalidade desse texto, será importante considerar que a cidade que conhecemos, aquela a que nos habituamos e que, inclusive, tendemos a considerar “natural”, é uma forma de pouco mais de 200 anos. E que a ela estão associados os signos da economia, da coordenação que o mercado imprime à vida social. Antes disso, porém, a experiência urbana não foi desimportante. Ao contrário.

No Ocidente, pelo menos a partir do século XIV, algumas cidades se destacaram por sua magnificência, em um contexto em que o mercado era bem menos saliente do que a política, do que o exercício do poder. Portanto, uma das possibilidades de relativizar a onipresença da “cidade sociológica” é reafirmar a importância contemporânea da política, ou melhor, da cidade como espaço da política, na expectativa de que uma nova disputa entre representações, a exemplo da que ocorreu no início do século XIX, possa ampliar nosso repertório analítico e nosso horizonte de experiências.

O texto, a seguir, trata de representações acerca das cidades brasileiras.

Considera que o tratamento sociológico conferido a elas, sendo também uma narrativa em competição, é muitíssimo recente e, de certo ponto de vista, “despolitizador” do debate que envolveu, desde a origem, o mundo urbano brasileiro. Em outras palavras, a academização do conhecimento acerca das nossas cidades retraiu – ao que parece, e a despeito de suas intenções – o campo de disputa envolvido na caracterização de suas potencialidades. O tema talvez valha uma história.

A cidade colonial brasileira nasceu como entreposto comercial e centro administrativo, subtraída, portanto, das fricções políticas que eram inerentes às formações urbanas do renascimento europeu. Aqui estiveram originalmente ausentes as disputas entre “graúdos” e “miúdos” que marcaram a Florença renascentista, assim como Paris, Reims ou Castres, onde o termo “menus” e a situação tributária a que aludia foram fontes de violentas revoltas.

De fato, à diferença de outras regiões européias, o chamado renascimento português, não conhecendo descontinuidades profundas em relação ao mundo feudal, manteve as cidades quietas. E a nova estratificação ligada à economia, à propriedade urbana, ao dinheiro, à influência no espaço citadino combinou-se mais docilmente ao princípio da hierarquia que presidira o período precedente. O próprio império ultramarino dos séculos XV e XVI jogou papel relevante na conformação desse quietismo urbano, pois pôde manter inalterada a trama de direitos corporativos, ao tempo em que assegurava ao rei luso novos territórios materiais e simbólicos, juridicamente desimpedidos para o pleno exercício do seu poder.

Nesse império ultramarino, como se sabe, as colônias africanas perdurarão como feitorias, com a função quase exclusiva de suprir de escravos as lavouras americanas. As vilas brasileiras, porém, conheceram crescente complexificação social e, logo, política, do que dão testemunho as rebeliões nativistas do século XVIII e início do século XIX, que acabaram por embalar o projeto de parte da elite metropolitana de “emancipar” o Brasil e conferir-lhe posição idêntica a de Portugal no âmbito de um império federado. Mas o traslado da Coroa portuguesa e o subseqüente rompimento com as Cortes de Lisboa, em 1822, impuseram dinâmica política diversa. O Brasil tornou-se independente, preservando, no entanto, o arranjo econômico-social do mundo agrário, na expectativa de que, entre outras coisas, a expansão daquela ordem impusesse contenção à buliçosa experiência citadina brasileira.

Pode-se dizer, portanto, que durante o século XIX, nossas cidades foram alvo de desdobrados cuidados das autoridades metropolitanas e, após a independência, tema relevantíssimo do debate entre antagonistas políticos da hora (partido português vs. partido brasileiro; luzias vs. saquaremas; republicanos vs. monarquistas). Assim, a despeito de sua anêmica conformação política original, o mundo urbano brasileiro, tão logo se desfez do quietismo português, revelou-se um ambiente de tensões e animado por disputas políticas.

Nas regiões economicamente dinâmicas, como foram, em períodos diversos, Minas Gerais, Pernambuco e Bahia, por exemplo, tem-se a célere constituição de um estrato de funcionários da justiça e ordem pública – sintoma do crescente enraizamento populacional nas cidades e do esforço em estender o alcance da Coroa até lá, contrariando, muitas vezes, interesses das classes senhoriais locais. As cidades e vilas mineiras ilustram esse processo, assim como aquelas, menos lembradas, do Recôncavo baiano. Nas demais regiões, sobretudo as do norte ou do “Brasil de dentro”, a que se costuma atribuir a inexistência de vestígios de uma cultura de fixação, ainda lá se destaca o ambiente da urbe, embora mais movediço, cujo soerguimento e colapso tendiam a acompanhar as rotas econômicas mais promissoras.

De qualquer modo, no começo do século XX, a literatura que pretendeu entender as grandes linhas geratrizes do Brasil, ecoou essas percepções remanescentes do Império e tomou a cidade como embrião do corpo político nacional, muito antes de apontá-la como vórtice da evolução econômica e praça de negócios.

Capistrano de Abreu, ao narrar a saga dos caboclos brasileiros na confluência das três bacias hidrográficas do país, Euclides da Cunha, em seus estudos sobre a Amazônia, e Oliveira Vianna, no clássico “Populações Meridionais do Brasil”, para mencionar apenas alguns exemplos dessa floração de intérpretes brasileiros, têm, em comum, o diagnóstico de um povo livre, que vaga ainda sem forma, matéria bruta do Estado-nação e da embrionária autonomia jurisdicional da cidade vis-à-vis a grande propriedade. Tratava-se, evidentemente, de uma representação metafórica da potencialidade política do povo, para quem a conquista da cidade seria o momento de encontro com o Estado e não com o mercado, como alertava Oliveira Vianna no contexto liberalizante da República Velha.

O tema da precedência da política, assumido pelo ensaísmo brasileiro dos anos 1910 e 1920, conheceu renovação nos estudos de antropólogos americanos convidados a lecionar na Universidade de São Paulo durante a década de 1930,
sobretudo Emílio Willems, autor de “Uma Vila Brasileira”, e Marvin Harris, com o seu “Town and Country in Brazil”. Suas pesquisas levavam em consideração, basicamente, traços culturais de pequenas comunidades brasileiras, nas quais buscavam surpreender a política como ethos, isto é, como um hábito da vida coletiva, ainda pouco tocada pelas formas impessoais de coordenação social.

Destacaram, assim, padrões tradicionais de comportamento, principalmente a centralidade da família no concernente à definição de práticas e ideais. Sua expectativa era a de acompanhar o início de um processo de individualização e secularização, de destruição, enfim, da “estrutura de laços coletivistas” em prol de “certo número de ações de ênfase mais individualista”, como escreveu Willems.


Os resultados dessas pesquisas começaram a ser publicados nas décadas de 1940 e 1950, incorporando aspectos conceituais e metodológicos que já continham, em alguma medida, uma crítica à teoria da modernização e à crença em uma destruição completa dos padrões retrógados da mentalidade a partir do desenvolvimento mercantil. Se observado, por exemplo, o trabalho de Antônio Cândido – “Parceiros do Rio Bonito” –, ver-se-á que a análise de um pequeno vilarejo brasileiro serve, ali, ao propósito de apontar um continuum modernizador, que não permitia a mobilização do repertório conceitual do folk e também não avalizava crenças na completa superação do tradicional.

De forma similar, os estudos mineiros sobre cidades renovariam o diagnóstico da precedência da política. Minas Gerais, por aquela época, se definiria pelos estudos políticos de pequenas cidades brasileiras, embora, lá, o espaço privilegiado para essa reflexão não tenha sido a universidade, como em São Paulo, mas a Revista Brasileira de Estudos Políticos, cujos autores foram os intelectuais reunidos em torno do jurista Orlando de Carvalho, seu editor. Tal fato parece ter determinado a aproximação daquele círculo intelectual com a tradição municipalista, distanciando-se da visada antropológica que presidia a pesquisa urbana em São Paulo. Mais tarde, quando a revista se abriu à influência da literatura norte-americana, seria a sociologia política dos partidos e eleições que dominaria o campo de estudos urbanos mineiros, refreando, mais uma vez, o viés etnográfico que costumava cercar aquele objeto.

Em suma, encerrada a primeira metade do século XX – o país mergulhado no esforço desenvolvimentista do período JK – cidade e política eram, ainda, termos indissociáveis no Brasil. É, portanto, muito recente, entre nós, a emergência da cidade “sociológica”, isto é, de uma noção de cidade naturalizada e impermeável a outras formas de experimentação do urbano. Principalmente àquelas que a tomam como um espaço de associação, autonomia e inovação, e não apenas de individuação, dependência e rotina. De fato, no Brasil, a cidade sociológica, por excelência, é a cidade de São Paulo, onde o paralelismo dos fenômenos da urbanização e da industrialização tende a acompanhar, embora com a distância temporal de um século, o padrão europeu. E onde, de forma mais contundente, a sociologia disciplinar disputou com a política a questão da cidade.

1 Professora do Departamento de Sociologia da PUC-Rio, membro da coordenação do Centro de
Estudos Direito e Sociedade (CEDES/IUPERJ) e Presidente da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais (ANPOCS), biênio 2009-2010.

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