quarta-feira, 22 de julho de 2009

Democracia com entulhos

Wilson Figueiredo
DEU EM OPINIÃO & NOTICIA

No sistema presidencialista de governo, o problema ocorre quando, na sucessão de poder, a oposição quer vencer e o presidente cisma que não pode perder. Foi e continua a ser assim onde quer que a alternância do poder esteja em jogo e onde as instituições andem longe da maturidade. Os brasileiros já pressentiram que em 2010 a coincidência entre eleição e tensão política tenderá a aumentar por efeito natural de uma oposição desconjuntada e um governo que, não conseguindo um terceiro mandato, não se contenta em apenas concorrer. Não abre mão da vitória. Agarra-se à possibilidade de ir mais longe do que seja permitido para continuar, quando nada, por quantos governos estejam à vista. Já a oposição gosta de brincar de cabra cega.

(Não por acaso, desde o começo deu para perceber, por trás dos fatos, discreto temor de que o processo eleitoral, imprudentemente antecipado, pudesse tomar rumo indesejável no tortuoso projeto político brasileiro. Eleição e tensão andam juntas em todas as democracias em que, por efeito da gravidade, a cidadania se equilibra com dificuldade).

Se, como tudo indica, o governo Lula está disposto a fazer o sucessor, da maneira possível e a bom preço, terá de aumentar sua aplicação e ajustar a campanha ao estilo eleitoral mais contundente, aqui e ali apenas esboçado, mas certamente com uma carga de perigo sem antecedentes próximos. Eis a questão. Por sua vez, as pesquisas atenuam, mas não excluem, incertezas que não podem bancar com o mínimo de garantias. Com dezesseis meses pela frente, o futuro da sucessão (e o que ela já envolve) apresenta uma incógnita que não pode mais, como na Antiguidade, ser confiada aos cegos para não se ofuscarem com a visão do presente. No começo do que se esboça com sombras, identifica-se o difuso temor de que o rumo eleitoral imprudentemente antecipado é portador de temores cujo epicentro se localiza dentro do círculo de giz da democracia brasileira. Observa-se que a oposição fez mau negócio ao assumir a ética de circunstância para lutar contra os costumes que se enraizaram no Congresso e florescem no Senado, com algumas diferenças mas sem atentar para a coincidência de que está no mesmo balaio de privilégios. É a velha história do roto falando do esfarrapado. Era inevitável o pressentimento de que alguma coisa de sentido indecifrável estava faltando e não demoraria a se apresentar. Já não falta. Apenas se atrasou mais do que os 15 minutos de tolerância universal.

A oratória oposicionista no Senado perdeu o fôlego ao se aplicar restritamente a denúncias personalizadas, incapazes de gerar conseqüências morais e políticas imediatas. São os costumes, e não as pessoas, que deveriam preocupar os atores. A democracia fez com a ética, há mais tempo, uma dívida que não tem mais condições de honrar ao empenhar no Brasil, mais uma vez sem garantia, apenas de boca, seu insuficiente saldo republicano.

O temor decorre da circunstância de que o país que soube eleger, sem crise, um governo de esquerda com viés de direita, se embaraçou ao não patrocinar, pelo centro, a solução eleitoral personalizada na pessoa do presidente Lula, segundo a qual, se não pode ser ele, será quem ele indicar. Não se trata do problema que a esquerda no Século 20 deixou para o seguinte resolver, por falta de bom-senso capaz de assimilar a democracia e prestigiar a fórmula de resolvê-lo normalmente: ganhe quem tiver mais votos, aceite a derrota quem confiar na promessa de que não faltarão oportunidades graças à alternância do poder.

Não é possível que a democracia no Brasil ainda não seja capaz de garantir, no Século 21, a alternância como fonte única e confiável de renovação do poder pelo voto. E, muito menos, que o atual estágio democrático, depois do saldo de dois mandatos supostamente de esquerda, desacredite a Constituição que vem sendo decantada, mediante pequenos ajustes, pela própria experiência, desde antes da vitória do PT e de Lula (ou na ordem inversa, Lula e PT) assimilada sem maior dificuldade.

Não está ainda diagnosticado o velho conflito ético de fundo, no qual o governo disfarça uma carta na manga e a oposição se exprime com sotaque que as urnas não entendem. É apenas uma questão de tempo, pois o Brasil trabalha contra relógio, à medida que as urnas se aproximam e as pesquisas redesenham alternativamente com mais nitidez a vitória e a derrota possíveis. O primeiro abalo foi, como não podia deixar de ser, mais do que uma idéia vadia, a provocação de um terceiro mandato esquizofrênico de Lula. A confiança vai precisar se apresentar em novos termos ou, se houver preferência, como resposta eloquentemente ociosa à carta de Lula aos brasileiros em 2002, não mais referida por ninguém. Deve estar recolhida ao arquivo histórico. O que se pressente é - ainda incipiente, e não vocalizada, - a suspeita de que a trégua está amordaçada por baixo do desentendimento, atrás da qual se confrontam, em desconfiança consolidada, oposição e governo: até as CPIs já estão contaminadas aos olhos oficiais e intolerantes na maneira de lidar com a oposição residual de uma democracia cheia de entulhos.

Até quando, Catilina?

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