domingo, 16 de agosto de 2009

Aplicação da lei e censura

José Arthur Gianotti
DEU EM O ESTADO DE S. PAULO


Nenhuma regra se ajusta a seus casos sem deixar zonas de indefinição. Até mesmo a aplicação de uma lei física encontra resultados que variam num intervalo, cuja variação se determina em função do uso do resultado. O marceneiro não mede suas tábuas como o mesmo rigor de um fabricante de aparelhos óticos. O que dizer de uma norma jurídica?

É de esperar que a variação seja mais ampla. Por isso a jurisprudência desempenha papel crucial na determinação desse intervalo, pois o juiz aplica a lei tendo em vista tanto seu enunciado como a aplicação já feita por seus antecessores. Lembremos apenas o caso dos contratos leoninos. Um contrato vale pelo que foi acordado entre as partes, mas, se uma delas tiver ganhos ou perdas além de limites razoáveis, é a vontade do tribunal que estabelece o novo parâmetro.

A mídia, assim como os movimentos sociais, joga com essa ambiguidade. Sem pretender contestar o Estado de Direito, ela leva em conta a aplicação da lei em vista de seus próprios interesses, sejam interesses públicos, sejam interesses privados. A notícia sempre diz respeito a uma situação desviante, cabendo então aos interessados corrigir os exageros e encontrar os responsáveis por eles.

Até quando um jornal deve publicar uma notícia que fere a imagem de um cidadão? Além do mais, se este for um político, isto é, um homem público, a publicação da notícia não pode inviabilizar sua própria identidade política, destruindo assim sua carreira?

Cada categoria assume seus próprios riscos nessa negociação com a lei. O cidadão comum pode achar que tal despesa com sua saúde pode ser descontada de seu imposto de renda, a Receita Federal pode simplesmente glosá-la. Um grupo de sem-terra se arrisca invadindo uma propriedade que considera improdutiva, poderá ser desalojado legalmente e pagar o preço político de sua ação. Mas não existiria como movimento se não forçasse os limites da lei para fazer com que ela se incline na direção desejada por sua ideologia e seus interesses.

O mesmo se dá, mutatis mutandis, com a mídia. Ela não existiria se apenas informasse casos constatados e julgados. Um jornal não se confunde com um boletim científico ou um jornal oficial. Obtida uma informação interessante, cabe ao jornal publicá-la; obviamente assumindo os riscos se ela for exagerada, se informar além do intervalo aceito pelos costumes e pela jurisprudência.

Este jogo entre as regras e seus casos depende assim da estabilidade, flexibilidade e prontidão das instituições. Uma notícia veiculada por um jornal tradicional e carrancudo não tem a mesma importância, não possui o mesmo sentido público, quando vem a ser publicada por um tabloide especializado em escândalos. E os dois tipos de jornais existem segundo as tradições regionais. O grau de tolerância para o inusual e intempestivo varia de país a país.

Isto significa que cada país tem a imprensa que merece, vale dizer, aquela que opera num nível de indefinição que o jogo político da população conseguiu definir. Não se segue daí qualquer conformismo. Um país é também aquilo que ele quer ser. Não existe como coisa, mas como rede de instituições que valem conforme a liberdade que logram prometer, o espaço público que consegue abrir. Já que todos possuem uma esfera pública, é nela que um país comprova o que ele vem a ser.

Desse ponto de vista, o Brasil vive uma indefinição que pode nos jogar ladeira abaixo. Não se travam entre nós tensões vigorosas entre o público e o privado; pelo contrário, desde os tempos em que se falava da lei de Gerson - que cada um cuide do seu - cada dia mais os homens públicos, sejam eles professores, políticos e juízes, deixam transparecer sem pejo o caráter privado de suas ações. O público somente se performa no interesse privado.

Nossa situação se torna mais trágica quando as próprias normas institucionais passam a servir a tais interesses. O decreto do Senado vira secreto; a falta de decoro parlamentar deixa de ser transgressão a ser examinada pela Casa para se resumir tão-só num instrumento de pressão política; o presidente da República se lança numa campanha eleitoral como se estivesse dando publicidade a seus atos de governo e assim por diante. O caso do Judiciário é patético. Os casos não são decididos com devida precisão e isenção, mas se arrastam de tal maneira que enervam os direitos dos litigantes. E magistrados politicamente corretos ou incorretos usam o emperramento das leis para prestarem serviços a seus amigos ou a companheiros ideológicos.

Por exemplo, o Estado está proibido de divulgar reportagens sobre Fernando Sarney, que, se sentido prejudicado, conseguiu na Justiça esse impedimento. Não vejo censura do ponto de vista legal, o demandante se viu prejudicado em seus direitos e apelou para a Justiça. Mas a censura de fato se instala quando o recurso demora a ser aceito e demora ainda mais para ser julgado.

Muito bem. Suponhamos que a Justiça decida e mantenha a proibição. Permanece a informação sobre transgressões presumidas. Ora, essa presunção ainda é notícia e deve ser publicada pelo jornal. Não como um fato ocorrido - isto o Estado está proibido de dizer -, mas como presunção, como um caso a ser verificado. Quando um processo corre em segredo de justiça, ele deixa de ser secreto se a notícia vaza, e cabe então ao Poder Judiciário punir o responsável por esse vazamento. O jornal deixaria de cumprir sua função pública se esperasse o julgamento de fato, que, aliás, somente se fará de forma equilibrada sob pressão da opinião pública. A Justiça se tece nesse jogo, mas, como tudo parece indicar, ela está servindo tão-só aos interesses privados.

*José Arthur Gianotti é filósofo

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