segunda-feira, 31 de agosto de 2009

Uma gota de discórdia

Christian Carvalho Cruz
DEU EM O ESTADO DE S. PAULO / ALIÁS

Crítico do sistema de cotas nas universidades brasileiras esquadrinha a história do racismo

SÃO PAULO - Cinco anos atrás, ao matricular sua filha em um colégio paulistano, o sociólogo e colunista do Estado Demétrio Magnoli se deparou com uma "aberração". Por orientação do Ministério da Educação, o formulário trazia um campo pedindo a raça do aluno. Magnoli tascou um "humana" na ficha e voltou para casa decidido a escrever Uma Gota de Sangue - História do Pensamento Racial (Editora Contexto, 400 págs., R$ 49,90), que chega às livrarias na quarta-feira, 2.

Libelo contra o que o autor chama de mito das raças - a necessidade de diferenciar seres humanos por sua ancestralidade, por uma única gota de sangue -, o livro mergulha fundo nas origens do racismo e seus desdobramentos nos tempos atuais. "Raças não existem. O que existe é o mito da raça, uma invenção recente, nascida há 150 anos junto com a expansão das potências europeias na África e na Ásia e usada para conquistar poder político e econômico", diz Magnoli.

Uma Gota de Sangue mostra como essa invenção teria sido desinventada no pós-guerra e reinventada pelos movimentos multiculturalistas de 30 anos mais tarde, culminando em um tema caro a Magnoli: a crítica ao sistema de cotas raciais adotadas em universidades públicas brasileiras. Para ele, uma política de Estado que "cria uma clientela eleitoral" e "instala o ódio racial no meio da classe média baixa trabalhadora".

O autor sustenta ainda um polêmico paradoxo: o de que os defensores de leis raciais de hoje resgatam o discurso que ontem ajudou a justificar a segregação entre brancos e negros. "Para os multiculturalistas, a igualdade é uma falsificação, pois não existe no mundo real; no mundo verdadeiro as pessoas não são iguais, dizem. Por isso eles querem abolir a igualdade, preferem a diferença. É um pensamento do século 19", afirma. "Mas raça e igualdade são palavras de mundos distintos. Igualdade é democracia. Raça é diferença. Ou existe igualdade, ou existe raça." A seguir, os principais trechos da entrevista de Magnoli ao Aliás.

A INVENÇÃO DA RAÇA

"O conceito contemporâneo de raça como famílias humanas separadas pela ancestralidade que mantêm relações hierárquicas entre si surgiu e se consolidou no quadro do evolucionismo darwinista da segunda metade do século 19. A ciência oficial criou a raça. Esse período coincidiu, e não por acaso, com o imperialismo europeu na África e na Ásia.

Muitos imaginam que o conceito de raça surgiu com a escravidão moderna. É falso. A ideia de raça não veio para explicar ou justificar a escravidão e sim para explicar e justificar o imperialismo europeu, que vinha na esteira do iluminismo e da ideia de igualdade natural entre os seres humanos. Isso tinha consequências explosivas. Como dominar uma nação se todos são iguais? Não pode haver dominação. Então precisaram de algo que relativizasse a igualdade, que, afinal, ‘é um bom princípio, mas a ciência nos mostra que ele é falso, pois na verdade não existem pessoas iguais’.

Curioso notar que só nas sociedades fundadas sobre a ideia de igualdade se torna necessário invocar o mito da raça. As sociedades fundada sobre a diferença, como todas até o iluminismo, não precisam dele. O ‘racismo científico’ se fez necessário para justificar um dos grandes processos do mundo contemporâneo, o da expansão do poder econômico das grandes nações europeias.

DESINVENÇÃO E REINVENÇÃO

"O conceito de raça foi desinventado no final da 2ª Guerra como reação ao nazismo, ao Holocausto, aos campos de extermínio. O mundo olhou para trás e disse: ‘Essa ideia de que a humanidade está dividida em raças produz sangue em grande escala, não aceitamos mais isso’. A raça então foi desconstruída, combatida nas grandes declarações sobre direitos humanos, algo a ser abolido das sociedades democráticas. Mas 20 ou 30 anos depois ela foi reiventada pelo multiculturalismo e suas políticas descritas como ações afirmativas. Essas políticas voltaram, agora sob a alegação de fazer o bem, às ideias raciais do século 19. No momento em que a genética decifra o DNA e afirma que a raça não existe, que a cor da pele é uma adaptação superficial a diferentes níveis de insolação, e que é controlada por 10 dos 25 mil genes do ser humano, a raça reaparece pelo viés cultural, como algo essencial e imutável de um povo, como gene novamente. A Bolívia, por exemplo, está se reinventando com base num conceito racial, está se tornando um país polarizado entre ameríndios e brancos. No Brasil essa proposta está codificada como Estatuto da Igualdade Racial - uma frase inviável. Raça e igualdade são palavras de universos distintos. Igualdade é democracia. Raça é diferença. Ou existe igualdade ou existe raça. O perigo do multiculturalismo é que ele quer eliminar o mestiço. Os multiculturalistas dizem que ‘esse negócio de igualdade é uma falsificação, pois não existe no mundo real; no mundo verdadeiro as pessoas não são iguais’. Eles querem abolir a igualdade, preferem a diferença. Um pensamento do século 19.

A REVIRAVOLTA OBAMA

"Nos anos 60, o que Martin Luther King fez o tempo todo foi pedir que os Estados Unidos respeitassem o princípio da igualdade previsto na Constituição americana, ou seja, ele pretendia abolir o conceito de raça da política. Barack Obama foi mais longe ao se definir como mestiço. Foi uma afirmação revolucionária, porque a mestiçagem não existe no censo e nas leis americanas.
Lá, ou você é branco ou é negro, pois para se fazer leis raciais elimina-se a mestiçagem, definindo claramente a raça de cada um. E a mestiçagem é a indefinição, a não-raça. Então, quando Obama diz que é mestiço, filho de mãe branca e pai negro, ele dá um passo além de Luther King. Não se trata só de eliminar a raça da política, mas também da consciência das pessoas.

O BRASIL SE QUER MESTIÇO

"No Brasil, os racialistas propõem que as estatísticas demográficas tomem pardos e pretos como negros. Eles precisam transformar o quadro intermediário, cheio de tons indefinidos, em algo mais simples, com duas cores, para sustentar o mito da raça. Só que 42% dos brasileiros se dizem pardos, ou seja, não se classificam em raças. Vão dizer que se declarar pardo é uma proteção contra a discriminação racial, que é pior com os negros. Mas comparando os censos de 1940 e 2000 vemos que a proporção de brasileiros que se declaram pretos se reduz e a dos que se declaram brancos também. Dizer que o número de pardos aumenta porque as pessoas querem ‘embranquecer’ para fugir do preconceito é um argumento de quem lê as estatísticas só até a metade. O Brasil caminha para um momento em que 90% da população vai se dizer parda. E esse é o grande problema para lideranças do movimento negro que defendem as leis raciais. Não se faz lei racial num país em que as pessoas não definem sua raça.

NÃO SOMOS RACISTAS

"Há racismo no Brasil. O que não há é um conceito popular de que estamos separados por raças, como nos EUA. Assim, não somos racistas no sentido de a maioria dos brasileiros não interpretar o Brasil pelo prisma da raça; e também no sentido de o Estado brasileiro não ter feito leis raciais ao longo da história. Não somos racistas, embora existam racistas no Brasil. O racismo aparece na operação ilegal de certas instituições, claramente a parte da polícia que ainda prefere parar o jovem negro a parar um jovem branco. Mas o fato é que o racismo no Brasil está sempre ligado à questão socioeconômica. A violência policial baseada no preconceito racial é muito clara nas periferias e favelas. Pessoas que não têm pele branca, mas vivem em bairros de classe média, estão menos sujeitas a uma abordagem racista da polícia. Cada vez que o racismo se manifesta aqui é um escândalo, o que mostra o caráter antirracista da nação. Isso é uma vantagem, mas os defensores de leis raciais acham o contrário. Dizem que é melhor um racismo explícito à la americana do que o racismo envergonhado à la brasileira. O racismo explícito ajuda a definir interesses de raças - necessários aos que se dizem líderes raciais.

A ETERNA QUESTÃO REGIONAL

"No Brasil a desigualdade é essencialmente socioeconômica - e é terrível . Não é racial. A maioria dos pretos e pardos do País está no Norte e no Nordeste, as regiões mais pobres, enquanto a maioria dos que se declaram brancos está no Sul e no Sudeste, as regiões mais ricas. A partir disso algum perturbado poderia sugerir a criação de cotas para nordestinos. Os filhos de Tasso Jereissati, Ciro Gomes e José Sarney adorariam, porque as cotas sempre favorecem a nata do grupo privilegiado por elas. Eu não estou dizendo que não haja maior incidência de pobreza entre pretos e pardos. Há, mas em função do que ocorreu no fim da escravidão - quando os descendentes de escravos, por falta de ensino público abrangente e por falta de reforma agrária, não foram incluídos na sociedade que se modernizava - e não em função do racismo atual.

DISCRIMINAÇÃO REVERSA

"As cotas raciais não são um meio válido para corrigir diferenças socioeconômicas porque nunca reduziram pobreza em lugar nenhum onde foram implantadas. Elas beneficiam a nata do grupo privilegiado. A cota racial para ingresso em universidades públicas não está tirando vaga dos ricos, dos filhos de empresários. Esses, ou fizeram colégios e cursinhos tão bons que conseguirão passar no vestibular mesmo com um número de vagas menor em disputa ou cursarão universidade no exterior. O que a cota faz é instalar uma competição dentro da classe média baixa, uma competição racial dentro de um grupo social que veio do ensino público, entre os filhos de trabalhadores da classe média baixa. São aqueles que terminam o ensino médio. Não sejamos demagogos: vamos tirar os miseráveis dessa história, porque eles não terminarão o ensino médio, eles não serão beneficiados pelas cotas. Então, quem acaba beneficiado é o jovem de classe média baixa da cor ‘certa’ em detrimento do jovem de classe média baixa da cor ‘errada’. É a discriminação reversa.

À CAÇA DE VOTOS E PODER

"Os racialistas dizem estar fazendo justiça social por meio do sistema de cotas. É falso. O que as leis raciais visam é criar zonas de influência política e eleitoral. Isso acontece no Brasil, cada vez mais na Bolívia e em outros lugares onde falar em nome de uma etnia ou raça é desenvolver uma clientela política, é dizer ‘votem em mim porque eu defenderei os interesses desse grupo que eu acabei de definir’. A função é produzir lideranças políticas, carreiras política, poder político. Você não precisa falar para a sociedade como um todo, explicando que vai defender os interesses gerais dos cidadãos e assim competir com um monte de gente que diz a mesma coisa.

FRONTEIRA NO ÔNIBUS

"Ações afirmativas socioeconômicas, como cotas sociais e políticas de melhoria rápida e dramática das escolas públicas nas periferias, ajudariam mais os pobres a ingressar no ensino superior.
Fazer isso por meio de ações afirmativas raciais leva o aluno branco a olhar para o lado e pensar
‘Este é quem não tinha o direito de estar aqui, mas está porque tem a cor que agora virou "certa"; e eu estou separado dele não só pela cor da pele, mas pelas leis deste país, que o colocam num grupo com certos privilégios; ele está aqui porque alguém da minha cor de pele, mas com a mesma renda dele, não está’. Esse é um grande risco: cotas raciais traçam uma fronteira dentro dos ônibus, dentro dos bairros periféricos, no meio do povo, porque vizinhos de bairro e colegas de trabalho com a mesma renda vão se olhar e entender que estão separados pela cor da pele.
Isso é instalar no meio do povo o ódio racial."

Nenhum comentário:

Postar um comentário