segunda-feira, 5 de outubro de 2009

Do quanto somos (im)perfeitos

Renato Lessa
DEU NA FOLHA DE S. PAULO /+MAIS


Desconfiança generalizada em relação a a outras pessoas contrasta com o elevado padrão moral assumido individualmente pelos brasileiros

A crer em números, parece ser mais seguro emprestar seu carro a um amigo filiado ao PMDB do que a outro pertencente às hostes petistas. Com efeito, 93% dos respondentes simpáticos ao PMDB acham moralmente errado avançar um sinal de trânsito (ou furar um semáforo, o que vem a ser mais ou menos a mesma coisa). O escore petista limita-se tão somente a magros e preocupantes 71%.

Já os apoiantes do PSDB são os mais tolerantes no que diz respeito a fornecer dados inverídicos para a Receita Federal. Isso a despeito -ou a propósito, sabe-se lá- da fúria fiscalista que o consulado de seu partido impôs ao país, no século passado.

Para além do pitoresco -inevitável em qualquer tentativa de varredura de atitudes e opiniões em meio à população heteróclita-, há matéria para reflexão. Para já, gostaria de considerar os seguintes aspectos: a definição conceitual de corrupção, os marcadores de ética e moralidade, os perfis de admissibilidade quanto a práticas ilícitas e a distinção entre autopercepção e avaliação pública.

O que é corrupção

Para 43% dos respondentes, o termo refere-se a um conjunto de práticas fixadas na esfera pública. Para 21%, corrupção está associada a comportamentos individuais -levar vantagem, traição, deslealdade etc.

Um terceiro conjunto, de 19%, associa o conceito a "roubar bens/dinheiro". Quando questionados a respeito de que instituições concentram com maior ênfase práticas corruptas, os respondentes elegem os poderes Executivo e Legislativo, federal e estaduais. Há, contudo, alguma estratificação nessas respostas.

Quanto maior a escolaridade, maior a desconfiança institucional: o Poder Executivo federal é mencionado negativamente por 83% dos que possuem educação fundamental; aqueles com educação superior marcam 92%. A mesma progressão pode ser encontrada de acordo com variações da renda familiar e de classificação econômica.

Variações à parte, é possível dizer que a desconfiança é pesada e generalizada. Os campeões da pureza, tais como a Igreja Católica, as Forças Armadas e a imprensa, são julgados como corruptos por, respectivamente, 53%, 54% e 61% do total dos entrevistados.

Não é pouco. Ainda que algum viés de classe se manifeste na avaliação dos poderes públicos, a concentração das desconfianças gerais nesse âmbito parece reeditar o clássico juízo de Louis-Antoine-Léon Saint-Just: "Qualquer povo tem apenas um inimigo poderoso, e este é o governo".

Marcadores de ética

Os entrevistados foram submetidos a uma bateria de 32 ações hipotéticas condenáveis [genéricas, acrescidas de cinco ações de políticos, policiais e outros servidores] para revelar a ordem de suas aversões éticas e morais. O resultado agregado da simulação é curioso: há um padrão generalizado de repulsa às ações hipotéticas, com algumas variações significativas.

Vejamos: os menos educados e mais pobres demonstram maior rigorismo moral em todos os quesitos. Trata-se de variação, contudo, que não agride a sensação de certa homogeneidade.

Há, ainda, marcadores mais finos. Dois deles podem ser licenciosamente designados como "kantianos". O resultado não é de todo mau, mas um tanto desequilibrado: 74% concordam com a ideia de obediência à lei como algo superior ao interesse privado (adeptos de um imperativo categórico moral).

Já apenas 56% concordam com o diagnóstico de que as pessoas estão dispostas a "tirar vantagens" umas das outras (ou tomá-las como meios, e não como fins). O desenho revela assimetria entre autoavaliação e avaliação dos outros como sujeitos morais. A destacar, ainda, os mais velhos e a malta da classe D/E como antropologicamente mais otimistas.

Admissibilidade

Os entrevistados foram convidados a revelar admissibilidade -ou não- com relação a "práticas ilegítimas". De forma mais agregada, 83% dos respondentes admitem tê-las cometido, em diferentes escalas de gravidade (leve, média e pesada).

Trata-se de aspecto importante, pois revela forte adesão ao "ilegítimo", a despeito das respostas anteriores dotadas de maior rigorismo. Nada de errado com isso: não somos animais socráticos, para os quais o conhecimento do bem conduz necessariamente a seu cumprimento.

No entanto, há distinções importantes: quanto maiores os níveis de educação e de renda familiar e mais elevada a classificação econômica, maior a admissibilidade. Para uma imagem mais nítida, 93% dos que possuem educação superior admitem envolvimento; o escore cai para 74% para os que têm educação fundamental.

E mais: se tomarmos o envolvimento com práticas ilegítimas pesadas, os mais educados ganham dos menos educados por uma razão de 2,5; os de maior renda ganham dos de menor renda com uma razão de 4 e os de classe A/B ganham dos D/E por uma razão de 6,5.

Há algo aqui, ressalvada a insinceridade dos mais pobres.

Talvez uma pálida reedição de velha máxima de San Tiago Dantas, para horror dos demofóbicos: o povo enquanto povo é melhor do que a elite enquanto elite.

Assimetrias do mundo

Não ficamos de todo "mal na fita". Mas há coisas curiosas. O alto padrão de admissibilidade evapora-se quando os entrevistados são submetidos a 39 perguntas sobre diversos ilícitos. O que emerge é uma população ordeira que, no pior dos casos, admite delitos leves: contrabando, compra de produtos piratas, colar em provas etc.

É espantoso ver que 94% dos respondentes jamais ofereceram dinheiro para agentes públicos que, para 87%, jamais o solicitaram. Assim como Nelson Rodrigues duvidava dos vídeos dos jogos, eu duvido desses números.

Mas, como disse, não ficamos mal na fita. Há uma generalizada e consistente presença de marcadores morais e éticos. A variabilidade não elimina a evidência de que o piso é alto. Cremos saber o que é a corrupção e onde e quando se apresenta. No mais, desconfiamos dos outros.

Com efeito, 82% das pessoas dizem não admitir mudar seu voto por dinheiro, embora 79% estejam certas de que os brasileiros em geral estão dispostos a fazê-lo. É evidente a assimetria, já antes apontada, entre autoavaliação ética e moral e expectativa do comportamento dos demais. Os "demais" -outras pessoas, o governo, os políticos etc.- parecem ser, afinal, sempre piores. Enfim, somos falíveis e desconfiados, pero no assustadores.

Renato Lessa é professor de teoria e filosofia política no Iuperj e na Universidade Federal Fluminense e diretor-presidente do Instituto Ciência Hoje.

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