terça-feira, 27 de outubro de 2009

Rituais vazios

José Arthur Giannotti
DEU NA FOLHA DE S. PAULO / +MAIS!

Esvaziamento dos discursos políticos é fenômeno universal que transforma líderes em profetas

Sabe-se que a política possui seus rituais.

Os soberanos, os príncipes e os chefes de Estado demarcam seus respectivos territórios formalizando certas condutas que distinguem os que mandam e os que obedecem.Nas democracias contemporâneas os chefes procuram mostrar que atuam no mesmo plano de seus subordinados, mas não é por isso que sub-repticiamente deixam de marcar as diferenças.

No que nos concerne, que se observem em particular as roupas do presidente Lula, que quase não repete um terno e se cobre de chapéus segundo as circunstâncias.Se usa um chapéu do Exército na viagem inspetora-eleitoral às obras do rio São Francisco, é porque pretende sinalizar que todo o esforço da transposição das águas se faz mediante a colaboração militar, portanto, sob seu comando formal.Tudo nele simboliza, ao mesmo tempo, proximidade com o eleitor e distância nos modos de seu ser.

No entanto, quanto mais o discurso político se esvazia de sentido, tanto mais essa sinalização do poder se converte num ritual vazio.

O fenômeno é universal, com a exceção notável dos EUA. Note-se, por exemplo, o que Sarkozy [presidente francês] diz a cada momento. Não lhe interessa se o que diz à tarde contradiz o que foi dito pela manhã, importa que seja ele quem enuncia a situação a ser trazida para o nível do discurso.

Não sabe de nada

Entre nós, como nos inclinamos a ser a caricatura do mundo, esse esvaziamento do discurso de nossos "grandes caciques" é flagrante.

Ninguém acredita, nem ele mesmo, que o presidente do Senado, José Sarney, não sabia das irregularidades cometidas durante suas gestões. Mas assim mesmo ele declara não saber de nada, e todos nós terminamos sabendo de tudo como se não soubéssemos de nada.

Vale tão só o ritual do falar purgante.

O presidente Lula, desde a crise do mensalão, é mestre nesse purgar pelo discurso vazio.

Nesta semana, a imprensa anuncia que a defesa do ex-deputado Roberto Jefferson voltou a pedir que o Supremo Tribunal Federal inclua o presidente Lula entre as testemunhas do processo do mensalão. Obviamente, o presidente usará de suas prerrogativas de responder por escrito, reafirmará sua ignorância do caso e tudo continuará como está.

Mas os advogados cumprirão a tarefa de dar uma conotação política ao processo, oferecendo uma oportunidade ao presidente de repor o testemunho no plano da indefinição conveniente a seus propósitos.

A fala desse poder mente, pretende ser verdadeira, mas todos sabem que ela é mentirosa. Isso porque as palavras não estão valendo pelo que denominam, mas, antes de tudo, porque simbolizam a chefia que, exibindo-se como fazedor, está além da verdade e da mentira. Desde os filósofos gregos sabe-se que o discurso político se desdobra no nível da retórica; pretende antes convencer do que falar a verdade.

Mas não é por isso que deixa de se revestir com o manto do verdadeiro, pois somente assim, imaginando que estão no verdadeiro, as pessoas podem agir de forma coletiva, assumindo um mesmo paradigma. Mas, se o paradigma da verdade e do interesse verdadeiro deixam de operar, o que a fala inconsequente simboliza?

Como esse discurso retórico pode ainda ter efeito quando as pessoas deixam de acreditar no que estão dizendo e ouvindo?

Marginais

Tudo parece indicar que a fala da chefia não pretende se responsabilizar pelo que está sendo feito. O que faz é o chefe, este e não outro, e, se suas frases são contraditórias, isso vem demonstrar que o feito resulta tão só dele, de seu ser, não de suas palavras, vale dizer, das determinadas opções que foi obrigado a dizer.

A ação política deixa então de ser coletiva para se tornar um dom a ser recebido por aqueles que acreditam. Estes sabem que o benefício não pode ser generalizado, mas, graças à mediação da chefia, podem se apropriar das margens do que os poderosos já possuem.

Não pedem igualdade, apenas participação, ainda que seja pela margem. Participam do jogo político reafirmando sua condição de marginais, contentando-se com os restos de um sistema produtivo que alimenta uma sociedade de consumo.

Pierre Clastres, em seu estudo sobre os guaranis, nos conta que, no fim da tarde, o chefe se levantava e começava a discursar ao léu, sem eira nem beira.

Os índios continuavam ocupados em suas tarefas cotidianas, mas, entre eles e o divino, um elo estava sendo tramado.

Como Clastres estava com a cabeça no ser e tempo, de Heidegger, ele dizia que o chefe guarani falava do ser.

Na política atual os "caciques" estão se tornando profetas do vazio. E como o nada, assim como o ser, não tem outra determinação a não ser ele mesmo, pode aparecer como a tela onde projetamos todas as nossas carências como se elas já estivessem sendo resolvidas.

Lula configura o outro do desastre do ensino brasileiro, do aparelhamento do Estado, o outro da derrocada de nossas infraestruturas, o outro da falência de nossas instituições políticas, o outro além do bem e do mal.

E também o outro dos velhos caciques, que agora sobrevivem tão só mediante essa alteridade comprometida.

Ele e seus companheiros tingem e cobrem a política brasileira com seu manto de verdade falsa, ocultando assim o debate que seria preciso fazer sobre os gargalos atuais que atrasam nosso desenvolvimento. E com a falta de diálogo, eles continuam decidindo como querem e como lhes convém.

Essa política tem resultado em notável inclusão social, mas acompanhada de forte enervamento de nossas jovens instituições democráticas. Como evitá-la?

José Arthur Giannotti é professor emérito da USP e pesquisador do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento. Escreve na seção "Autores", do Mais!.

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