quinta-feira, 19 de novembro de 2009

Fausto Castilho*::Ensino em liquidação

DEU EM O ESTADO DE S. PAULO / ALIÁS

Para filósofo que instigou Sartre, a mercantilização impede a escolarização nacional: 'Eis nossa catástrofe'

Mônica Manir

Num domingo de Ferroviária x Santos no Estádio Fonte Luminosa, Jean-Paul Sartre chegou de kombi a Araraquara, interior de São Paulo, para incendiar mentes de um time de intelectuais que incluía d. Ruth Cardoso, FHC e Antonio Candido. Acompanhado, a contragosto, por Simone de Beauvoir e Jorge Amado, fora responder in loco à pergunta feita por um jovem professor da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da cidade. Fausto Castilho, então com 31 anos, havia usado um amigo como correio elegante para questionar Sartre, na passagem dele pelo Recife, sobre os fundamentos de esforço de aproximação entre o existencialismo e o marxismo. Resumindo, queria saber o seguinte, no bilhete escrito em francês: é possível superar a filosofia sem realizá-la?

"Ele disse aos jornais que iria a Araraquara fazer uma conferência sobre a pergunta mais difícil que havia ouvido no Brasil", conta o inquisidor, lembrando o 4 de setembro de 1960, quando a igreja do município, aterrorizada com a chegada de um pensador de esquerda, gritou pregações pelo rádio contra o francês. "A conferência acabou com a minha carreira na USP", brinca Fausto, que ainda percorreria longa trajetória acadêmica pela Unesp e pela Unicamp até se tornar professor emérito da última.

Entusiasta do pensamento educacional dos anos 20, ele participou decisivamente da criação do campus radial da Universidade de Campinas, transformando-se em crítico de faculdades estanques, utilitárias, mercantilistas. Para ele, universidades verdadeiras são pouquíssimas. Eleições para reitor, mera rotina administrativa. A USP Leste, uma excrescência. Quer uma mexida estrutural no eixo educacional brasileiro, que ele explica nesta entrevista e em detalhes no livro O Conceito de Universidade no Projeto da Unicamp. A quem possa interessar, a Ferroviária ganhou de 4 a 0 de Pelé no dia da conferência. Mas, a quem deseja saber se Sartre, afinal, respondeu àquele dilema a 300 km da capital, ele contemporiza: "Aí é que está, minha filha. Isso são outros quinhentos. Eu nunca quis revelar a resposta".

Esta foi a primeira vez na história da USP que as eleições para reitor se realizaram fora da Cidade Universitária. A transferência, em razão dos protestos dos alunos, funcionários e moradores de favelas, é uma vergonha para a universidade, como afirmaram alguns professores?

Não acho que seja uma vergonha. Mostra descontrole da situação. A reitoria não consegue estabelecer normas de funcionamento para a universidade. É o que se verifica.

As críticas mais contundentes nos protestos foram quanto ao segundo turno, que é decidido por um colégio restrito de professores. Isso faz dessas eleições um processo antidemocrático?

Há um ponto que legitima todo esse processo: a escolha do governador, que entra no último momento, na lista tríplice, mas que afinal de contas foi eleito por maioria pela totalidade do eleitorado paulista. Exigir uma democracia interna é impossível aqui porque a carreira universitária prevalece sobre qualquer outro aspecto. O mestre depende do doutor, o doutor do livre-docente, e assim por diante. É o fundamento da produção científica. Essa carreira depende mais da titulação por trabalho acadêmico do que por tempo de serviço, por exemplo. A democracia que os sindicatos e mesmo uma parte dos alunos pedem não existe em universidade nenhuma no mundo.

Avaliando mais detidamente as propostas dos que se candidataram a reitor...

Eu não vejo muita diferença entre elas.

Pois então, foi praticamente consensual que a USP do século 21 tivesse espírito mais formativo, com estímulo à atitude empreendedora em relação à própria educação.

Muito bem, eu acho que isso é correto desde que você passe a considerar, como indicaram os educadores dos anos 20, toda a escala da escolarização a partir da criança de 4 anos até a pós-graduação. Tem de reconsiderar a totalidade do eixo educacional. Enquanto isso não for feito, não haverá mudança nenhuma na educação brasileira. Todas essas medidas sugeridas hoje são paliativas. A própria substituição de reitores é meramente uma rotina de gestão administrativa. Trocar aqui, eleger ali, isso não leva a nada. É preciso que o Estado retome o controle nos termos que os educadores dos anos 20 propunham.

Por que remontar aos anos 20?

Porque eles detêm a chave interpretativa da universidade brasileira. A interpretação marxista, que peguei na minha juventude, tendia a estudar a USP a partir da Revolução de 32, como se fosse uma reação dos paulistas à derrota na revolução. Não tem nada disso. Mostro no meu livro que a concepção da ideia de USP é de 1925. Mais ainda: que a consolidação ocorreu em 1926.

O que foi essa chave interpretativa?

Os educadores dessa época, entre eles Fernando de Azevedo, tinham uma proposta de escolarização que desapareceu porque em 1965 a ditadura resolveu mercantilizar o aparelho de educação. Aí começa a catástrofe brasileira. A mercantilização não permite a escolarização nacional. Para esses educadores dos anos 20, a instância da democratização não é a universidade, mas o lycée francês, o gymnasium alemão; é isso que estava a caminho de ser instalado no Brasil, isto é, o liceu público para a toda a população jovem e não para um segmento, como faz a mercantilização. Você não pode firmar o processo de universalização formadora da educação formativa na universidade. Assim você a transforma numa instituição de ensino apenas. E ela não pode ser uma instituição de ensino.

O que ela precisa ser?

Precisa ser uma instituição de estudo, porque o ensino é consequente à pesquisa, ele não vem antes do estudo. Ao contrário. Só quem estuda é capaz de ensinar, ao passo que no Brasil, por interesse comercial, você enfatiza o ensino. O ensinismo inverte a equação, deixando a situação cada vez pior, cada vez pior... O cara que vai ser professor não precisa estudar, não precisa produzir. Ele simplesmente se apoia num manual qualquer. É o gráfico que se estabeleceu em cima da hora-aula. É isso que chamam de curso.

Como funcionaria o liceu no Brasil?

Como funciona na França e na Alemanha, o que nos anos 20 se chamava de universidade ampla. Ele acompanharia toda a população porque não faz diferença de classe. Na França e na Alemanha, tanto o filho do operário quanto o filho do magnata vão para o liceu. Quem é o proprietário desse liceu? É o Estado. Não existe o particular nesse jogo. Eis o foco dos educadores dos anos 20, que ainda não eram mercantilistas. Lembro que participei da campanha em defesa da escola pública já no final dos anos 50 sob a liderança de Júlio de Mesquita Filho. Perguntei a ele como explicava sua posição antagônica em relação à do seu amigo Carlos Lacerda, autor da proposta privatista de Lei de Diretrizes e Bases. Ele me respondeu o seguinte: educar é tarefa do Estado.

O que constaria do currículo do liceu?

Na França, há dois currículos: um chamado tradicional e outro chamado profissional. Dos 4.339 liceus, 2.449 são tradicionais e 1.890 profissionais. Por paradoxal que seja, a população prefere o tradicional, que tem grego, história, arte, literatura. É por isso que nesses países há um eleitorado diferenciado. Ele tem muita capacidade de decisão. Os operários também preferem o currículo tradicional. A inteligência não escolhe classe de renda.

Quanto ao que aconteceu na Uniban...

Isso é fait divers, não tem importância.

Mas faço uma pergunta, professor: quando a Uniban revogou a expulsão da aluna, o reitor disse que a medida havia deixado de ser disciplinar para se transformar numa ação educativa. A expressão "educativa" teria a capacidade de redimir arbitrariedades?

Olha, começo não reconhecendo pelo mero proprietário de uma firma comercial a apropriação do título de reitor. Não há esse direito na legislação brasileira de um dono de escola se intitular reitor. Onde é que já se viu uma coisa dessas? Ele faz isso e outros donos de cursos também. Tudo é culpa dos políticos. Os políticos que toleram tudo isso são os culpados por essa mercantilização geral do aparelho educacional.

O que o senhor acha das exigências da Nova Lei de Estágios, que demandam mudanças importantes nos cursos de graduação, licenciatura e bacharelado que preveem esse dado nos currículos?

O governo federal é responsável atualmente pela maior parcela do financiamento do mercantilismo, por meio das bolsas de estudo. Essas bolsas são um expediente para financiar os mercantilistas. Elas é que dão dinheiro para sustentar essas universidades particulares, que não são universidades. Aliás, as universidades federais também não são universidades.
São arranjos das oligarquias locais em cada um dos Estados brasileiros.

A Universidade Federal de São Paulo, inclusive?

Isso é uma invenção surgida a partir de uma faculdade de medicina. Imagine você se pode uma escola de medicina ser uma universidade! Só mesmo por interesse eleitoreiro. Essa transformação do núcleo inicial, que é de pura medicina, em universidade, eu ainda estou aguardando, estou observando para ver se é possível.

E a USP Leste?

Ela é uma excrescência.

Por quê?

Para que isolar do centro maior? O centro maior da USP é no Butantã. Deveriam ter reforçado o centro. Se você tem um, é para que a função central seja exercida, e não para que fique simplesmente numa declaração. Você nunca vai poder fazer interdisciplinaridade, nunca! A universidade tem de estar em um único campus porque ela depende da enciclopédia do ponto de vista interdisciplinar. Eis é o ponto chave. A vocação da universidade é ser uma comunidade de trabalho interdisciplinar na pesquisa e no conhecimento. No Brasil, a tendência é multiplicar os campi. Acham que isso é grandeza.

Qual era a vocação primeira da USP?

Sempre foi o estudo, a pesquisa. A USP é a primeira universidade brasileira concebida segundo o modelo proposto por Humboldt ao criar a Universidade de Berlim, que durante o século 19 se difundiu pelo mundo inteiro, nos EUA, no Japão... O problema é que o plano uspiano não pôde ser realizado. A posição política da história da USP e do Brasil de integrar à Universidade de São Paulo escolas preexistentes, como a Faculdade de Direito e a de Medicina, acabou com o plano.

Por quê?

Porque o plano da USP foi pensado, pela primeira vez no Brasil, como uma estrutura universitária focada num centro, que é a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras. Essa concepção vai depois servir de referência à Universidade de Brasília e à Universidade de Campinas. A comissão nomeada pelo governador não conseguiu mostrar qual seria a articulação entre o centro e as universidades dependentes. Essa foi a primeira grande falha teórica.

Qual foi a segunda?

A demora na construção da Cidade Universitária. O plano previa que ela fosse erguida nos anos 30, o que só aconteceu no final dos anos 50. Isso destruiu a USP porque, em vez de passarem a tarefa ao urbanismo - a disciplina que deveria prenunciar a Cidade Universitária dentro do campus - entregaram o projeto a engenheiros e arquitetos ligados à edificação de obras. Virou isso: reconstrução de obras, com departamentos que chegam a um quilômetro de distância entre si. Como essa turma pode ter ideia do que seja uma universidade? São estranhos a isso.

A Unb seguiu o modelo centrado à risca?

Ela optou por dotar todos os institutos num mesmo prédio. Ora, não pode. É preciso ter área para se expandir. Tem que ser como na Unicamp. Do contrário não pode crescer.

A Unicamp, então, conseguiu levar adiante o sistema radial?

Na Unicamp, fizemos tudo para o que o contato com as disciplinas básicas fosse feito a pé. Você não precisa motorizar. Ali, o campus não se confunde com a cidade universitária. O campus é a enciclopédia espacialmente estruturada, enquanto a cidade universitária abrange, por exemplo, os organismos administrativos e financeiros. Agora, se a Unicamp terá sucesso nessa empreitada, não sei dizer. Vai depender da força do sistema brasileiro de ensino superior, que é antiuniversidade. O sistema brasileiro de ensino superior foi implantado por D. João VI para desfazer as realizações do Marquês de Pombal. É um processo que persiste desde o século 19 e se infiltra em todas as universidades: são os advogados, os engenheiros, os médicos, profissionais de mercado que nada têm nada a ver com a universidade. Eles querem um papel que tenha o nome da universidade sem nunca terem frequentado a própria. Foram apenas à faculdade deles. A universidade verdadeira se distingue pelo homem de ciência, alguém que seja capaz de ensinar.

* Fauto Castolho, professor emérito, fundador e organizador do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp.

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