terça-feira, 10 de novembro de 2009

Vinicius Torres Freire:: Muros e mumunhas da história

DEU NA FOLHA DE S. PAULO

Queda do Muro de Berlim tornou-se um marco vulgar para a revisão enviesada da história do pré e do pós-1989

É TEMPORADA de disparates históricos. É o aniversário do fim do Muro de Berlim. É a estação da nostalgia rançosa da propaganda, mais liberaloide que esquerdoide, pois os comunistas desapareceram quase como os hare krishna que vendiam incenso nas esquinas.

Recordam-se tolices que a queda do Muro ensejou, a começar pela frase que se tornou então uma espécie de logoceia histórica, uma explicação do mundo pós-89.Muito texto começava assim: "Com a globalização e a queda do Muro de Berlim...". Daí decorriam o destino inelutável do capitalismo, reformas, a moda do paletó de três botões, dietas novas ou a privatização da atmosfera. Do economista Ph.D ao diretor da associação comercial de Santo Antão de Pitangas, passando pelo deputado do PFL e Francis Fukuyama, o clichê era um "must". O filho temporão dessa família de tolices é a frase "o mundo jamais viveu tanto crescimento econômico", no pós-Muro ou neste milênio.

O chavão pretendeu justificar até o desastre financeiro de 2008. Nesta efeméride, foi ressuscitado para comemorar a "liberação das forças produtivas" antes presas pelo Muro. Trata-se de mentira ou ignorância. Apenas quase China e cia. cresceram mais no período recente que nos anos ditos "gloriosos de 1947-73".

A China é "capitalista"? Na China, a terra não é uma mercadoria (posse e venda ainda são muito reguladas), nem o trabalho (uns 500 milhões de chineses não podem migrar do campo e ganhar a vida onde bem entendem); o grosso da decisão de investimento é estatal. Etc. etc. No Ocidente, há mercados mais ou menos desde o século 13, mas limitações ditas "feudais" aos negócios existiam até na Inglaterra do século 19, que dirá no resto da Europa.

A China é quase tão "capitalista" quanto a França de Colbert (século 17); de resto, começou a mudar 15 anos antes do fim da URSS. Melhor dizer que existem economias de mercado, tão diferentes como Suécia, EUA, França, Japão, Brasil, Rússia e Holanda, e isso está longe de explicar sucessos, fracassos e acordos políticos desses países. É uma vergonha intelectual e moral usar o horror do comunismo para justificar o vulgar mercadismo.

Por falar em autoritarismos, a democracia era rara no "mundo livre" enquanto o comunismo esteve de pé. Na Alemanha, foi implantada à força, sob ocupação militar e protetorado americanos, nos anos 50. No Japão, sob ameaça de devastação nuclear. Até nos EUA se tornou completa apenas com o fim do apartheid nos Estados do sul, nos anos 60. Na América Latina das ditaduras filhas da Guerra Fria, era intermitente e precária. Espanha, Portugal e Grécia foram ditaduras a maior parte desse tempo.

Mesmo a França viveu crises graves, sob ameaça de golpe militar no início dos anos 60 e risco de conflito civil, na revolta da esquerda até o início dos 70. África, Oriente Médio e sul da Ásia eram colônias ou ditaduras mais bárbaras que os colonizadores europeus.

"Com a globalização e a queda do Muro de Berlim", foi o mercadismo que se difundiu. O pensamento social degradou-se no economicismo, a democracia sofre de indiferença no mundo rico, e a eficiência dessa tecnologia social de criar riqueza, o mercado, nem de longe dá conta da iniquidade ainda universal.

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