sexta-feira, 25 de dezembro de 2009

Alberto Carlos Almeida:: A estratégia da oposição em 2010 - II

DEU NO VALOR ECONÔMICO (23/12/2009)

Não imaginei que fosse escrever sobre o mesmo tema do último artigo. Isso se tornou inevitável depois do resultado eleitoral do primeiro turno das eleições chilenas. Alexis de Tocqueville, o grande pensador francês do século XIX, um dos pais fundadores da sociologia e da antropologia, escreveu, entre várias importantes obras, duas que se destacaram sobremaneira: "O Antigo Regime e a Revolução", análise profunda das causas e consequências da Revolução Francesa, e, a mais famosa de todas, "A Democracia na América", estudo igualmente profundo sobre a grande novidade social e política que representavam os Estados Unidos.

Surpreendentemente, a princípio, é saber que "A Democracia na América", ou ao menos todo o seu arcabouço analítico, já tinha sido escrita antes de Tocqueville viajar e conhecer os Estados Unidos. O leitor poderá se perguntar: como é possível alguém escrever sobre um país sem antes conhecê-lo? Em 1831, Tocqueville, ao lado de Gustave de Beaumont, percorreu os Estados Unidos durante nove meses com o objetivo de conhecer o sistema penitenciário do país para que essa experiência fosse utilizada na sua França querida (http://www.tocqueville.org/). "A Democracia na América" está recheada de observações, fatos, evidências empíricas, catalogadas por Tocqueville durante essa viagem.

Porém, toda a parte analítica e teórica de seu monumental trabalho já estava escrita antes de Tocqueville colocar os pés no Novo Mundo. Afinal, repetimos a pergunta, como isso foi possível?

Tocqueville considera que há dois princípios que regem as relações sociais: o aristocrático e o democrático. Em sociedades aristocráticas as pessoas se consideram diferentes em tudo; ao contrário, nas sociedades democráticas as pessoas se veem como iguais. A França era aristocrática e os Estados Unidos eram democráticos.

Em países aristocráticos os pronomes de tratamento variam conforme o status social das pessoas. Alguns são chamados de doutores, outros de senhores e a ralé é tratada por um simples você. Em sociedades democráticas há somente um pronome de tratamento para todos. Em sociedades aristocráticas os homens são independentes e as mulheres em tudo, ou quase tudo, dependem dos homens. O oposto ocorre nas sociedades democráticas.

Baseado nesse princípio básico Tocqueville mostrou como era a educação das mulheres na América em comparação com a França. De fato, a mulher puritana é mais independente do que a francesa católica, o flerte é diferente, o uso dos pronomes de tratamento é diferente, os monumentos públicos, as estátuas, são diferentes. Tocqueville tinha em mãos um princípio básico e mostrou que ele funcionava para entender as relações sociais na América. Ele não precisou ir aos Estados Unidos para saber como provavelmente funcionava a vida diária daquele país baseada na igualdade e em relações sociais democráticas. Mas precisou ir lá para rechear com fatos o seu brilhante livro.

O que isso tem a ver com o meu último artigo e as eleições chilenas?

Há duas semanas escrevi que a estratégia da oposição, no Brasil de 2010, teria de adotar um discurso de continuidade ao que vem dando certo no atual governo. O que o candidato de oposição fez no Chile? Exatamente isso. Sebastián Piñera, oposicionista, fez uma campanha eleitoral governista. Não precisei ir ao Chile para saber que ele colocou na televisão fotos suas ao lado da presidente Michelle Bachelet. Não precisei ir ao Chile para saber que ele prometeu ampliar os programas sociais do governo ao qual foi o candidato de oposição. Para obter essas informações bastou-me ler os jornais brasileiros. Muitos observadores de eleições que foram ao Chile, sem o devido instrumental analítico, viram tudo na eleição, menos o que realmente interessava para o sucesso eleitoral de Piñera.

Não adianta, portanto, você coletar fatos empíricos se não for capaz de separar o que importa do que não importa. O que importa em uma eleição presidencial na qual o governo tem um índice muito elevado de aprovação? Resposta: disputar o legado do governo. Mesmo se você for o candidato de oposição. Entre as promessas de Piñera consta a ampliação da licença-maternidade de três para seis meses. Convenhamos que se trata de uma proposta estatista para um candidato de direita que se opõe a uma aliança governista de esquerda.

Qual é o objetivo de Piñera ao fazer essa proposta? Mostrar que ele, apesar de ser um bilionário, se importa, e muito, com a vida das pessoas comuns. Mostrar que ele, apesar de ter sido o candidato derrotado por Michelle na última eleição presidencial, compartilha com ela muitas de suas visões de mundo e políticas públicas. Mostrar que ele tem o social como prioridade. O Piñera oposicionista do Chile propõe duplicar o tempo da licença-maternidade.

Há algumas semanas, sugeria que a nossa oposição deveria defender duplicar o valor do Bolsa Família. Argumentei que no Brasil há um fator atenuante: foi a atual oposição, quando era governo, quem elaborou e deu início a esse programa. Piñera nem isso tem, não foi ele que instituiu a licença-maternidade no Chile.

Alguns oposicionistas andam interpretando o resultado do primeiro turno no Chile como um sinal de que um presidente muito popular, no caso Michelle Bachelet com seus 80% de aprovação, não consegue transferir votos para o candidato de sua aliança, Eduardo Frei, ao menos o suficiente para que ele chegue em primeiro no primeiro turno.

Essa interpretação não é incompatível com a minha análise. Sim, uma presidente bem avaliada poderá perder as eleições. Eu apostaria que Frei será derrotado no segundo turno por Piñera. Se isso realmente ocorrer, a principal causa terá sido a estratégia acertada de Piñera ao se posicionar como um candidato governista. O grande problema é se essa interpretação da eleição no Chile, a de que um governo bem avaliado não elege necessariamente o sucessor, levar ao corolário de que a oposição não precisa se preocupar com isso no Brasil porque o Brasil será o Chile amanhã.

O que importa, portanto, é saber por que Michelle não fez que Frei tivesse um desempenho eleitoral melhor no penúltimo domingo. Isso ou porque Piñera se posicionou como um candidato de governo ou porque não é imediata a transferência de votos de um governo bem avaliado para o seu candidato? De fato, a transferência não é imediata. Eu diria que ela, a princípio, não existe. Franklin Delano Roosevelt afirmou que quando apoiava um candidato ele transferia apenas um voto para o candidato apoiado, o seu voto. Ninguém vota em um candidato simplesmente porque o líder ou o presidente popular pediu.

Se alguém idolatra Lula e Lula pedir para votar em Dilma Rousseff, isso não necessariamente ocorrerá. Esse eleitor vai perguntar a Lula o seguinte: o que eu ganho votando na candidata em quem o senhor me pede para votar? Lula provavelmente vai responder: ela dará continuidade ao que vem sendo feito de bom pelo meu governo. Aí começa o processo daquilo que é chamado, erroneamente, no meu entender, de transferência de votos.

Parte de nosso eleitorado acha que José Serra é quem mais tem condições de dar continuidade ao governo Lula. Desses eleitores, 89% declaram ter a intenção de votar em Serra, 5% em Dilma e 7% branco, nulo ou não responderam a essa pergunta. Por outro lado, daqueles que consideram que Dilma é quem mais tem condições de dar continuidade ao governo Lula, 68% declaram a intenção de votar em Dilma, 18% em Serra e 14% branco, nulo ou não responderam. Para o bom entendedor meia palavra basta. O dado é claro: o voto está fortemente correlacionado com a percepção do eleitor acerca de quem tem mais condições de dar continuidade às coisas que vêm sendo bem avaliadas no governo Lula.

Façamos o exercício intelectual de imaginar essa mesma pergunta aplicada em uma pesquisa realizada hoje no Chile. Qual seria o resultado mais provável? Muito possivelmente algo parecido com o resultado para o Brasil. Michelle e Lula são bem avaliados. Reza a cartilha da aversão ao risco que o eleitorado, quando gosta de um governo, quer ficar com aquele que o mantenha e o melhore. No Chile, embora pareça paradoxal, quem mais tem condições de dar continuidade ao governo é o candidato de oposição. Vale repetir: meia palavra basta.

Alberto Carlos Almeida, sociólogo e professor universitário, é autor de "A Cabeça do Brasileiro" (Record).

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