quinta-feira, 3 de dezembro de 2009

Maria Inês Nassif :: O juiz da moral e a moral do juiz

DEU NO VALOR ECONÔMICO

A oposição brasileira não se livrou do fantasma udenista nem mesmo quando a ditadura extinguiu o quadro partidário e instituiu o bipartidarismo, em 1966. O pluripartidarismo foi restabelecido no início da década de 80, a União Democrática Nacional (UDN) jamais voltou à luz do dia, mas o partido de Carlos Lacerda sempre foi o grande modelo de oposição no Brasil.

O udenismo pode ser definido como uma ação política firmada num discurso de muita agressividade, em que a retórica moral e moralista é tornada pública, reiterada e repetida de modo a tornar-se impositiva, um padrão que deve ser aceito como uma verdade para todos.

O discurso é construído com base em interpretações sobre fatos que são refratados sob a ótica do moralismo e quase nunca os expressa com o seu exato tamanho, mas de forma muito amplificada, de acordo com a necessidade de propaganda política. A construção do discurso é, assim, emocionalizada - é pela raiva que tenta a adesão ao discurso. No passado - e no limite -, a emocionalização do discurso moral encontrou abrigo não apenas nos setores médios da sociedade, mais vulneráveis a ele, mas também nos setores militares. A UDN foi o braço civil do golpe de 64; o propagandista do movimento político e militar; o partido que mobilizou os setores médios e conservadores. O udenismo fez propaganda política para tentar a conquista o poder pelas urnas, mas não só isso: também para cooptar os aparelhos de coação do Estado, se a estratégia eleitoral fracassasse. O udenismo, portanto, trafegou tanto pelas vias democráticas como por instâncias não democráticas de ascensão ao poder.

Na retórica udenista, os julgamentos morais são reiterados e repetidos como verdade, mesmo que exagerados ou injustos, porque se trata também de fixar, perante um segmento da opinião pública, aquela parte como a legítima julgadora moral dos demais atores que se movem no cenário político. É aquele que domina a retórica agressiva, o depositário da verdade, o juiz da moral nacional, o fiscalizador - e todos os contrários à retórica são os objetos da desconfiança nacional, os desonestos e impatriotas.

O PT adotou um discurso com alta dose de moralismo e agressividade no período em que se manteve na oposição, embora tenha sido um partido de massas pelo menos até 1994, quando a opção pela "institucionalização" o transformou em algo mais parecido com um "partido de quadros". Ainda assim, o discurso de oposição petista foi seduzido pelo udenismo. A mística da "moralidade" - entre aspas, sim, já que ela não passa de um discurso - levou o PT oposicionista a reduzir a sua prática política a uma oposição "moral". Na verdade, tratava-se, no caso, de romper uma barreira de resistência eleitoral que o mantinha no segundo turno em todas as disputas presidenciais, mas o derrotava pela falta de adesão de classes médias mais conservadoras. Ainda assim, esse é um discurso tão fácil que contaminou e marcou a oposição parlamentar petista nos governos de Fernando Henrique Cardoso (1995-1998 e 1999-2002)

Guindado ao poder federal pelo voto, o PT abandonou o discurso udenista. Em 2005, com o escândalo do mensalão, foi descaracterizado como a parte política que dominava o discurso moral - aquele que definia padrões de moralidade para os demais do cenário político.

Ascenderam à posição os dois principais partidos oposicionistas, o PSDB e o então PFL, hoje DEM. O partido do governador José Roberto Arruda (DEM-DF) assumiu o papel udenista com mais agressividade e trazia no bolso enorme similaridade com a velha UDN: é um partido conservador, de quadros, com facilidade de penetração tanto nas classes médias como em setores militares.

Não existiam muitas alternativas para um partido sem lideranças e em declínio do que aproveitar essas características e tentar assumir o lugar de guardião da moralidade. Todo o embate do DEM feito contra o governo do presidente Lula foi moral e moralista. Esse mesmo padrão foi seguido pelos partidos oposicionistas aliados no Congresso, que coincidentemente eram quase os mesmos que davam sustentação ao único governador eleito pelo PFL. O discurso de alta dose de agressividade e moralismo foi o adotado também pelo PSDB e pelo PPS. O chamado Escândalo do Mensalão, de 2005, nunca deixou de ser usado por esses partidos contra o PT e Lula como um pecado coletivo, a ser purgado por todos os petistas e todos os integrantes de partidos aliados; o recurso às CPIs fazia parte da agressividade que os credenciaria, pelo menos junto a parte da opinião pública, como os fiscais morais da política. Toda a estratégia política da oposição foi montada com essa perspectiva, e a partir do episódio moral que subtraiu de vez do PT as credenciais de juiz moral da política brasileira.

O escândalo do Distrito Federal, que está sendo chamado de Mensalão do DEM, tende a forçar a mesma situação do chamado Mensalão de 2005: o esvaziamento de um discurso moral udenista. Isso acontece de forma mais precoce, já que não precisou o partido voltar ao poder para que isso acontecesse. O DEM tende a perder a agressividade nesse discurso - e é difícil imaginar que o PSDB e o PPS não sigam o mesmo caminho. É um dado importante da campanha eleitoral que se avizinha: os dois lados da disputa passam a ter as mesmas armas para um discurso moral agressivo.

Existe uma diferença fundamental entre o moralismo udenista e a ética. O moralismo udenista aumenta, exagera, cria situações-limite - e relativiza a ética, ao distorcer fatos e forçar julgamentos coletivos pautados por fortes ondas de comoção. Por esses critérios moralistas, é feita uma confusão intencional entre moral e ideologia - passam a ser taxados como imorais opções político-ideológicas justificáveis numa democracia. Essas situações são facilitadas quando o partido - ou o espectro político - que se coloca como juiz da moralidade consegue bom trânsito em setores conservadores. Essa confusão produziu muitos danos políticos nos últimos governos. Que o escândalo do DF permita a retomada da racionalidade do debate político.

Maria Inês Nassif é repórter especial de Política. Escreve às quintas-feiras

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