quarta-feira, 21 de janeiro de 2009

A recessão e a democracia

Givaldo Siqueira
Advogado, membro da Executiva Nacional do PPS

Prestem o máximo de atenção ao noticiário da crise hoje. Todos os dados parecem indicar que entramos em recessão, o que exigirá uma atitude bastante ofensiva.

O Serra parece que entendeu e já se moveu. Nunca esqueçam, conforme Engels, que na "crise,as leis funcionam ao contrário".

O discurso, por outro lado, não pode ser mesquinho, aquele do "eu não falei?" e oportunista do pescar nas águas turvas, mas responsável, ancorado na defesa do já alcançado e, sobretudo - em primeiríssimo lugar - em defesa dos trabalhadores, mas também dos consumidores e da produção.

A crise não pode ser paga pelo povão, a "classe média" e o capital produtivo. Por exemplo, Lupi está certo: o dinheiro do FAT não pode ser entregue a quem não tem compromisso com o emprego e a produção, como aliás, diz a lei. É hora de grandes parcerias críticas com o mundo do trabalho e da produção e não de gritaria contra o governo e o PT, isso seria menor, o que não implica em absolvição das enormes e principais responsabilidades de um e de outro.

Se realmente estivermos em recessão, ou se ela vier, a primeira coisa a se compreender é que toda autoridade e todo prestígio tenderão a ser rapidamente erodidos, com riscos concretos para as instituições. Sobretudo se o governo e sua base permanecerem em sua farsa, oba oba e alienação, na crise ética que o domina e se infiltra avassaladora no conjunto das instituições e na sociedade .

O país suportará passivamente uma recessão, ainda mais nessas condições?

A questão primeira então que se destacará radicalmente será a questão democrática, muito mais que a econômico-financeira.

Mas há caminhos: a vitória e posse de Obama têm um enorme significado, independentemente do que virá, do que vier a ser realmente modificado. Têm uma detacada importância em si mesmas.

Às vezes, muitas das melhores expectativas se frustram, como aconteceu, por exemplo, com a Revolução de Outubro, a derrota do nazifascismo, a denúncia do "culto à personalidade", a esperança de reforma do socialismo e Bandung, em meio à grande vaga revolucionária dos anos 50 e 60, com a Revolução Cubana, com a eleição e posse de Kennedy, a descolonização da África e da Ásia, a derrota da ditadura e a eleição de Tancredo, em nosso país, a Constituinte e a vitória de Lula - esse grande engodo.

Mas, de qualquer modo, nada disso foi em vão, apesar das alucinantes e agravadas condições subhumanas de existência de tanta gente em todos os países e de tantos povos, mergulhados tantos em genocídio, da grave e ainda pouco compreendida crise ambiental, abriram-se novos caminhos e se realizaram grandes conquistas, em todos os terrenos e esferas. Mas tudo isso, outra vez, estará ameaçado pela crise global e os impulsos à barbárie, que está trazendo. Precisamos também compreendê-lo e sem vacilação, e nos erguermos em sua defesa.

Entretanto, não podemos cingir-nos a uma política defensiva nem ao rame rame do nosso atual cotidiano, o essencial (relembrando a Resolução do VI Congresso) é mobilizar, unir e organizar um bloco de forças capaz de defender a democracia e suas instituições, mas reformando-as radicalmente e sem temores, de atuar resolutamente para a preservação do conquistado, de vencer e ultrapassar a crise moral e a recessão e, por novos caminhos, orientados à luta pela igualdade social e à moralidade, mas sobretudo com a tarefa imediata de vencer as próximas eleições.

Isso pode ser feito se nos inserirmos, com consequência, resolução e criatividade, nesse grande movimento de renovação e esperança que está reimpulsionando a humanidade inteira, e tão bem simbolizado na vitória de Obama e na imposição de recuo a Israel, sob uma gigantesca pressão mundial.

Tautologicamente, os tempos, de novo, são novos! E provavelmente continuarão empolgantes.

Aprimorar a democracia

Marco Maciel
DEU NA FOLHA DE S. PAULO


A democracia participativa não é uma utopia e menos ainda uma aspiração inalcançável. Só depende de nós

APESAR DO mundo conturbado em que vivemos neste início do terceiro milênio, democracia continua sendo uma aspiração universal. Embora o conceito seja antigo, sua realidade é algo para muitas gerações. Os que dela já desfrutam lutam por aperfeiçoá-la. Os que ainda não a conquistaram lutam por alcançá-la.

Não foi sem razão que, em outubro de 1995, durante visita ao Brasil, o professor Adam Przeworski lembrou que há dois séculos não se criava nenhuma nova instituição democrática: "Tudo o que conhecemos de democracia, e seguimos copiando, foi conseguido há 200 anos. A melhor forma que se conhece de democracia é exercê-la por meio de eleições livres. Isso é muito bom, mas não basta".

Realmente, voto e pleitos eleitorais são as duas derradeiras grandes invenções da democracia representativa. Temos, todavia, de concordar que são requisitos necessários, embora não suficientes para a preservação do regime democrático.

Sob o ponto de vista formal, em inúmeros países vota-se há mais de 200 anos. Até meados do século 19, contudo, o voto era extremamente restrito. A universalização do direito do voto atendeu, assim, a um dos requisitos da democracia: tornou-a mais representativa. Mas a extensão do direito de voto às mulheres só ocorreria, em grande parte dos países europeus e da América Latina, depois do fim da Primeira Guerra Mundial.

Portanto, se nos reportarmos à Atenas de Péricles, temos que a democracia como aspiração é antiga de 25 séculos. Contudo, ela ainda não completou um século como realidade em grande parte dos países, se tomarmos como referência 1919 ou 1945.

Quando Przeworski aludiu ao fato de que há mais de dois séculos não se cria nenhuma nova instituição democrática, seguramente referia-se ao princípio de separação dos Poderes do Estado, concepção de John Locke ("Tratados sobre o Governo Civil", 1689) e Montesquieu ("O Espírito das Leis", 1748). A democracia, porém, construiu mais alguns avanços além da separação dos Poderes do Estado.

Na época desses dois pensadores, a humanidade conhecia uma forma de governo -a monarquia absoluta.

Em 1787, data da promulgação da Constituição dos EUA, os que a idealizaram concretizaram mais dois significativos avanços: a) a República eletiva como nova forma de governo e b) a Federação como forma de Estado.

Os dois séculos a que se referira Przeworski avançam, portanto, para 1987, ano anterior à promulgação da nossa atual Constituição. Nela já não nos referimos mais à democracia representativa, mas à democracia participativa, em razão dos novos institutos políticos incorporados ao texto constitucional em vigor: o plebiscito, o referendo e a iniciativa popular.

A democracia participativa não é uma utopia e menos ainda uma aspiração inalcançável. Só depende de nós. Enquanto tivermos ojeriza a partidos, desprezo pelas instituições que nos governam, desinteresse pelos assuntos que nos dizem respeito e aversão à política, corremos o risco de, na guerra de interesses, tornarmo-nos reféns de pressões legítimas ou espúrias que se aproveitam da omissão dos cidadãos, do compromisso de alguns e da alienação de muitos.

Na era da informação, todos nós temos recursos, instrumentos e meios para mantermo-nos informados sobre o desempenho dos nossos representantes em nossas cidades, em nossos Estados e no Congresso Nacional.

Instrumentalizar esses canais de informação, que são iterativos, só nos ajudará a encurtar nosso caminho entre a democracia representativa que temos e a democracia participativa que queremos.

Precisamos ter sempre presente a lição de Georges Burdeau: "Os males da democracia só se curam com mais democracia".

E, por isso, tomo a liberdade de lembrar que não basta criticarmos a política, amaldiçoarmos os partidos.

Temos que nos unirmos em torno dos interesses legítimos que defendemos, sem renunciarmos às ideias nas quais acreditamos, para aprimorarmos a democracia que temos; para aperfeiçoarmos os partidos com que simpatizamos ou com que nos identificamos; e para fazermos da representação política do país a expressão de nossas aspirações por um país mais próspero, um regime mais justo e estável e uma sociedade mais solidária.

E isso exige de cada um de nós o pequeno sacrifício de aperfeiçoarmos a cada dia, com exemplos, nossa cultura política, participando da vida cívica da nação e de suas instituições.

Marco Maciel, 68, é senador pelo DEM-PE e membro da Academia Brasileira de Letras. Foi vice-presidente da República (1995-2002), ministro da Educação (governo Sarney) e governador de Pernambuco (1978-1985).

José Serra, o conciliador

Cláudio Gonçalves Couto
DEU NO VALOR ECONÔMICO


A incorporação de Geraldo Alckmin ao secretariado de José Serra foi um lance de astúcia política do atual governador do Estado de São Paulo. Com ele, Serra logrou, ao mesmo tempo: (1) neutralizar um adversário dentro da política tucana estadual, unificando o PSDB paulista; (2) roubar um aliado importante de seu adversário pela candidatura presidencial pessedebista (Aécio Neves); e (3) oferecer a seu partido um candidato forte para as próximas eleições de governador, já que Alckmin conta com boa aceitação no interior do Estado.

A jogada virtuosa se reveste de um brilho ainda maior se considerarmos ser em certa medida surpreendente, já que ocorre pouco tempo depois do grupo serrista ter implacavelmente derrotado a Alckmin e seus aliados dentro do partido, com a reeleição do prefeito Gilberto Kassab - que deve a Serra sua transformação numa figura política nacional. Poder-se-ia esperar que, após a cisão partidária gerada pelas eleições municipais, o PSDB paulista se transformasse num "partido partido", com conseqüências preocupantes para as próximas disputas eleitorais. Todavia, a racionalidade parece ter prevalecido sobre os ressentimentos: para Serra não interessava ter inimigos internos em Alckmin e seu grupo, assim como não interessava que estes abandonassem a agremiação. Já para o ex-governador a mudança de legenda também não seria proveitosa, pois não só ele tem a identidade política tucana como um atributo indissociável da sua própria identidade, como também teria muito a perder em termos materiais caso se transferisse para uma agremiação menos robusta organizacionalmente, tal qual o PTB, partido que cogitou publicamente recebê-lo.

Embora alguém possa perceber na indicação de um ex-governador para o cargo de secretário de Estado um retrocesso na carreira política, vale dizer que retrocesso mesmo para Alckmin seria ir para uma legenda menor. Que perspectivas eleitorais concretas ele teria numa disputa para governador como candidato do PTB? Para se ter uma idéia disto, basta ver o desempenho dessa agremiação nas últimas eleições municipais e estaduais. Nas cidades em que pode haver um segundo turno, o PTB elegeu apenas três prefeitos - apenas duas capitais. Nas eleições para governador, em 2006, não elegeu ninguém. Uma eventual ida para o PMDB também não seria necessariamente promissora, tendo em vista a hegemonia de Orestes Quércia sobre o partido no Estado e a atual aliança deste com José Serra, alinhavada a partir da chapa Gilberto Kassab/Alda Marco Antônio nas eleições paulistanas. Portanto, nada melhor para ele do que - seguindo o ensinamento de Lênin - dar um passo atrás para, depois, seguir dois adiante: é difícil dizer que haja hoje um nome mais forte à sucessão para o Palácio dos Bandeirantes (dentro e fora do PSDB) do que Geraldo Alckmin.

O episódio revela ainda algo mais. Desde priscas eras José Serra foi conhecido como um político belicoso e desagregador. Isto se tornou muito claro à época de sua candidatura presidencial, quando logrou alienar o apoio do PFL, que o acusava, dentre outras coisas, de ter tramado o flagrante da Polícia Federal nos cofres abarrotados de dinheiro vivo da família Sarney, abortando a então promissora candidatura presidencial de Roseana. Mas, mesmo antes desse quiproquó, não era nada bom o relacionamento de Serra com alguns caciques do PFL - Antonio Carlos Magalhães, por exemplo. Entretanto, ironicamente, foi pelas mãos do outrora implacável tucano que o PFL (rebatizado como DEM), logrou obter sua única prefeitura de capital nas últimas eleições, com Kassab? Hoje está nítido que, sendo Serra candidato presidencial, o DEM estará com ele.

A conciliação promovida por Serra com ex-desafetos, contudo, não se restringe ao DEM. A já mencionada aproximação dele com Orestes Quércia vai na mesma direção. Vale lembrar que, em 1988, o cisma no PMDB que deu origem ao PSDB teve como uma de suas causas principais o conflito nas hostes pemedebistas de São Paulo entre quercistas e antiquercistas, dentre os quais se destacava justamente o então deputado José Serra. Hoje, ao ter astutamente aberto espaço para uma fiel escudeira quercista na chapa vencedora à prefeitura de São Paulo, o governador paulista trouxe para sua órbita um antigo e poderoso adversário que pode lhe ser muito prestimoso nas próximas eleições.

Em suma, muito embora o mineiro desta história não seja Serra, mas Aécio Neves, o fato é que o paulistano da Mooca vem dando mostras de uma mineiríssima destreza política, que, aliás, foi marca distintiva de Tancredo Neves, avô e prócer político do atual governador de Minas. Tancredo era freqüentemente reconhecido como grande conciliador, qualidade particularmente importante em momentos de crise e mudança, como ao assumir o posto de primeiro ministro após a renúncia de Jânio Quadros, ou no ocaso do regime militar. A capacidade de conciliação, todavia, é também útil às ambições do líder político, sobretudo quando se trata de construir as bases de sua própria sustentação. Nisto, talvez Serra se mire num conterrâneo de seus antepassados, Maquiavel, que ensinava ao príncipe que deveria combinar tanto as qualidades do implacável leão como da astuta raposa, caso quisesse obter sucesso em suas empreitadas.

Cláudio Gonçalves Couto é professor de Ciência Política da PUC-SP e da FGV-SP.

Lobos perdem as rugas, mas não a manha! ::

José Nêumanne
DEU EM O ESTADO DE S. PAULO

Muitos têm sido os exemplos recentes da natureza eleiçoeira de nossa democracia: a 20 meses de eleições, não há agente público neste país que não tenha armado sua jogada para as disputas de 2010, mas nenhum deles expõe suas cartadas aos olhos da multidão.

A emenda à Constituição pondo fim à reeleição e aumentando o mandato presidencial para cinco anos, por exemplo, resolve um problema interno do PSDB, que, como de hábito, tem dois candidatos fortes que se esmeram em enfraquecer um ao outro, na esperança de que o eleitor os resgate no processo eleitoral. Os governadores de São Paulo, José Serra, e de Minas, Aécio Neves, têm interesse na matéria, que passou pela Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara, já que ela seria uma forma de um garantir ao outro a possibilidade de, preterido agora, candidatar-se em seis anos. Gente precavida! Será? Só uma alma ingênua e ignorante de nossa Realpolitik desprezaria a possibilidade de o pretendente de hoje, se galgar o poder com a regra, mudá-la e ressuscitar a reeleição em 2014: o único cânon imutável do mandonismo brasileiro é o de abolir todas as normas perenes. Se enxergassem um palmo além da própria ambição, os dois tucanos perceberiam que tal lei ainda vige. E mais: o presidente do PPS, deputado Roberto Freire (PE), tem apregoado a todos os ventos (e em todos os desertos) que este casuísmo é incentivado pelos governistas, empenhados em abrir uma brecha, seja para um novo mandato para Lula (com mais cinco, e não quatro anos), seja para esticar o atual em mais 12 meses, usando a tática do “se colar, colou”.

Nem a velhinha de Taubaté ignora o sonho de Sua Excelência Excelentíssima de não sair do trono. Para começo de conversa, será subestimar o engenho político de Lula não perceber que, se fossem francas suas afirmações de que não pretende ficar, ele teria apontado em sua grei alguém com mais chances de derrotar Serra ou Aécio que a ex-guerrilheira Dilma Rousseff. Ora, direis, a cirurgia plástica a que ela se submeteu é o primeiro indício de que há um projeto para valer em torno dela. Difícil será resistir a dois comentários cínicos a respeito: pode ser que a operação tenha amenizado as feições da chefe da Casa Civil, mas dizer que a embelezou será um caridoso exagero retórico; e, se mudança no visual levasse à vitória em eleições, a venerada Dercy Gonçalves e Marta Suplicy não perderiam uma sequer. Cirurgias plásticas mais bem-sucedidas que as feitas nas citadas já teriam tornado a primeira-dama, dona Marisa Letícia, nossa própria versão da argentina Cristina Kirchner. E ainda: se falta de formosura levasse à perda de voto, o presidente da República não teria vencido as eleições que venceu. Igualmente o sucesso eleitoral recente de José Serra não pode ser justificado pelos “belos” olhos emoldurados por suas fúnebres olheiras. Num rasgo excepcional de boa vontade, é possível recorrer ao precedente Pitta para vislumbrar alguma chance de, sendo realmente a candidata in pectore do presidente, a chefe da Casa Civil, sem liderança alguma no partido mandante, o PT, ser o mais recente e surpreendente poste de sucesso na democracia brasileira.

Há, contudo, um obstáculo maior para Dilma que o favoritismo de Serra e o charme de Aécio: é a ânsia de ficar - se não de Lula, pelo menos dos componentes da aliança que se refestela no poder. O chefe do governo não se cansa de negar a vontade de voltar a disputar uma eleição, mas não há força humana (e, ao que parece, nem divina) que o faça descer do palanque. Está certo que ele fez vazar na imprensa que desautoriza a mão-de-gato do fim da reeleição, pondo, assim, ponto final nesta manifestação de neocontinuísmo. Mas logo foi à Venezuela e, a pretexto de apoiar seu compadre Hugo Chávez, abusou dos próprios conhecimentos sobre a cultura do país vizinho para defender a reeleição ilimitada deste, enquanto o povo de lá assim o desejar. A teoria, transplantada para o lado de cá da fronteira, encontra a versão para o português da nova ortografia na boca do presidente da Câmara dos Deputados, Arlindo Chinaglia, sempre disposto a exibir sua condição de serviçal das ambições cortesãs. Por falar nisso, nunca o chefe do governo brasileiro desautorizou a emenda constitucional que permitiria a segunda reeleição, da lavra de seu amigo do peito Devanir Ribeiro, também do PT paulista.

Mesmo, contudo, se nosso líder cultivasse a mais rara das virtudes entre gestores públicos - a sinceridade -, remanesce contra a hipótese Dilma uma das manifestações políticas mais permanentes de nossos regimes, sejam civis ou militares: o queremismo. Foi esta vontade de querer manter alguém para continuar mamando nas tetas da viúva que, em 1950, devolveu o poder ao ex-ditador deposto Getúlio Vargas e ampliou os mandatos dos generais Castelo Branco e João Figueiredo, na vigência da ditadura militar de 1964, e do civil José Sarney, antes que a inflação reduzisse a pó a popularidade gozada por seu simpático bigode. Hoje, entre os beneficiários de uma eventual prorrogação por um, quatro ou cinco anos do statu quo lulista, o vice que a diverticulite levou ao topo faz parte da casta que planeja, nas catacumbas do poder, a preservação do chefe e a cristianização (que jogou o pessedista mineiro Cristiano Machado no lixo da história na eleição em que Getúlio venceu Eduardo Gomes) da “megagerenta” que não virou miss.

Casuísmo, queremismo e cristianização: nossos políticos adotam o conselho do príncipe Salina, protagonista de O Gattopardo, de Giuseppe di Lampedusa, de fingir que querem mudar para que nada mude. Como o lobo do ditado, eliminam as rugas, mas nunca perdem a manha. E, como sabem que Albert Camus tinha razão ao pôr na boca de Calígula (em cartaz em São Paulo) que as facas “continuam as mesmas, só mudam os afiadores”, seu único projeto é continuar afiando.

José Nêumanne, jornalista e escritor, é editorialista do Jornal da Tarde

A linha de frente de Dilma Rousseff

Karla Correia
DEU NO JORNAL DO BRASIL

Lula seleciona figuras de peso do PT para abrir portas da candidatura de ministra nos estados

O Palácio do Planalto começa hoje a montar a articulação ­ nos estados ­ da candidatura da ministra Dilma Rousseff (Casa Civil) à presidência da República. Primeiros convocados para a missão, os ex-prefeitos de Belo Horizonte, Fernando Pimentel, do Recife, João Paulo, e de São Paulo, Marta Suplicy, reúnem-se com o presidente Luiz Inácio Lula da Silva para iniciar o desenho da estratégia palaciana. A ideia é que cada um ajude, em seu estado, a contornar possíveis obstáculos e costurar alianças em torno da candidatura de Dilma. Para a missão, Lula pinçou dentro do PT nomes que considera ter maior peso eleitoral e trânsito entre aliados. O ex-prefeito do Recife João Paulo é um exemplo.

O petista se credenciou ao eleger João da Costa para a prefeitura da capital pernambucana praticamente sem ajuda de partidos coligados no nível nacional. Tido como um dos atores políticos mais importantes da legenda no cenário político de 2010, João Paulo deve preparar o terreno para a ministra no estado, sobretudo junto ao PSB do governador pernambucano Eduardo Campos, que pretende tentar a reeleição. A movimentação do ex-prefeito, durante a campanha do ano passado, acendeu o sinal amarelo no partido aliado, que vê em João Paulo um possível adversário na briga pelo governo estadual em 2010. Para evitar o conflito, o PT aponta como alternativa a candidatura do ex-prefeito a uma cadeira no Senado. Hoje, João Paulo pleiteia um cargo no Planalto, como assessor especial do presidente Lula.

Recompor alianças

O mineiro Fernando Pimentel conseguiu, a duras penas e com a ajuda do governador do estado, Aécio Neves (PSDB), eleger como sucessor Márcio Lacerda (PSB). Mas, para tanto, teve que passar por cima da aliança com o PMDB, que tinha no páreo pela prefeitura da capital mineira o deputado Leonardo Quintão, e da decisão da executiva nacional de seu próprio partido, o PT, que se irritou com a parceria firmada com o tucano Aécio Neves. Postulante à cadeira de ministro do Turismo, Pimentel terá a missão de recompor as relações entre aliados em Minas para pavimentar o caminho da candidatura de Dilma Rousseff no segundo maior colégio eleitoral do país.
Longe de desagradar Lula, a aliança firmada com Aécio na campanha municipal foi vista no Planalto como capacidade de articulação do petista, amigo pessoal da chefe da Casa Civil desde os tempos em que os dois ingressaram no Comando de Libertação Nacional (Colina) ­ organização de esquerda que combateu o regime militar. Derrotada na campanha pela prefeitura de São Paulo, Marta Suplicy será a "escudeira" de Dilma com a missão mais árdua. Reconhecida como forte liderança no PT de São Paulo, terá, contudo, de contornar o fato do maior aliado do PT, o PMDB, ter se aproximado de forma perigosa do governador do estado, o tucano José Serra. A poderosa legenda aliada se transformou na "noiva" mais desejada para a formação de alianças em nível nacional em 2010 ao eleger 1.203 prefeitos nas eleições municipais do ano passado.

Cortejado por governo e oposição, o PMDB têm colocado preço elevado em sua fidelidade ao Palácio do Planalto. A disputa pelo comando da Câmara e do Senado, por exemplo, está no miolo das articulações para manter a legenda ao lado do candidato de Lula na sucessão presidencial.
Em São Paulo, a estratégia de José Serra em se fortalecer dentro do seu próprio partido e seu desempenho nas pesquisas tem seduzido o PMDB. Marta terá, entre outras, a missão de reverter o quadro a favor de Dilma.

Areia movediça no Congresso

Fernando Rodrigues
DEU NA FOLHA DE S. PAULO


BRASÍLIA - Poucos assuntos interessam menos ao conjunto dos brasileiros do que a sucessão para a presidência da Câmara e a do Senado. No universo paralelo da micropolítica, a história é bem outra.

Ontem, enquanto Barack Obama tomava posse em Washington, caciques partidários maquinavam freneticamente apoios e traições para a disputa do dia 2 de fevereiro.

Em política não se deve fazer previsões. "O problema do vaticínio é que depende do futuro" é o lema em Brasília. Não há, portanto, como saber o desfecho das eleições no Congresso. Mas há indicações de que o PMDB sairá um pouco mais rachado, mesmo essa sendo quase uma impossibilidade física para uma sigla já tão fragmentada.

De um lado, o grupo de senadores do PMDB comandados por Renan Calheiros e José Sarney. Do outro, os deputados peemedebistas sob a liderança de Michel Temer e de Geddel Vieira Lima. Em teoria, Sarney e Temer são os favoritos para ganhar as presidências do Senado e da Câmara, respectivamente. A vitória de ambos restabeleceria uma tradição no Congresso, com o partido dono das maiores bancadas ficando com o comando. Na prática, o quadro se torna muito mais complexo.

A entrada de Sarney na disputa parece ter acomodado as forças no Senado. Mas atrapalhou a empreitada de Michel Temer. Na Câmara prevalece uma certa aversão a respeito de dar o comando inteiro do Congresso para o PMDB.

Não que deputados nutram um sentimento elevado pela divisão de poder ou pela democracia. O problema é uma eventual vitória conjunta do PMDB na Câmara e no Senado reduzir a um só o guichê da fisiologia. Essa é a gênese do ambiente pantanoso na disputa atual.

Tudo somado, dada a esperteza geral, é real a chance de alguém ser engolido pela areia movediça do processo. Sarney ou Temer.

Era Obama

Miriam Leitão
DEU EM O GLOBO

O momento era de tocar a História, tão próxima ela estava. A poeta convocou "os mortos que nos trouxeram até aqui". Eles estavam lá: na Bíblia de Lincoln; nas escadarias de onde Martin Luther King anteviu o dia da união entre brancos e negros, no qual eles poderiam se dizer "livres, afinal"; nas lágrimas dos velhos militantes dos direitos civis; nas evocações históricas do presidente Barack Obama.

A divisão racial que fraturou os Estados Unidos esteve presente nos comentários dos jornalistas, nas declarações dos cidadãos de todas as idades e cores entrevistados no gigantesco National Mall, nos textos e nas análises das versões online dos jornais. "Milhões testemunham um momento profundo da história racial", ressaltou, logo após a posse, a versão online do "New York Times". Na CNN, as perguntas constantes dos repórteres e âncoras aos entrevistados eram sobre o significado de ter o primeiro presidente negro do país. John Lewis, lendário participante do movimento de Martin Luther King, democrata pelo estado da Geórgia, admitiu sua incredulidade quando viu Obama fazer seu juramento:

- Isso não é verdade, não está acontecendo, não estou vendo um jovem negro assumir a Presidência!

Esse mesmo espanto, de chegar ao dia pelo qual tantas gerações esperaram, foi a frase mais comum de ontem, independentemente da idade. A lembrança da herança de velhos guerreiros da igualdade consolida os mesmos valores nos jovens. O discurso de Luther King foi lembrança insistente. Estava na fala da senadora Dianne Feinstein, que presidiu a cerimônia, quando disse que os sonhos de 44 anos atrás, naquela escadaria, tinham chegado à Casa Branca. A menção às divisões raciais estava também na bênção final do reverendo Joseph Lowery.

Os americanos não negam seus defeitos. Têm essa qualidade. Tiveram uma história terrível de divisão racial, mas lutaram contra ela de forma memorável. Mereciam o dia de ontem, da colorida união de dois milhões de pessoas no local da posse; do acontecimento que, se calcula, teve a maior audiência de televisão do mundo; do mágico pacto sobre todas as diferenças. Há países que negam a divisão que deveras têm. Nestes, a luta é mais difícil, porque o inimigo é escorregadio e o silêncio sobre ele, compacto e asfixiante.

- Esse é o sentido da nossa liberdade e da nossa crença, porque homens, mulheres, crianças de toda raça e toda fé podem se juntar em comemoração ao longo dessa magnífica praça; e porque o homem, cujo pai, menos de 60 anos atrás, não poderia ser servido num restaurante local, pode agora, diante de vocês, fazer o mais sagrado juramento - disse Barack Obama.

Ele toca a questão racial com a elegância de quem veio para governar para todos e consolidar o arco que une os que estiveram separados. A luta racial americana nunca foi só dos negros. Brancos, como os Kennedy, e milhões de outros, estiveram, desde sempre, do lado certo dessa longa história. Ted, o último dos irmãos, foi um dos primeiros a apoiar Barack Obama, lembrando que era hora de "passar a tocha" à nova geração. Obama se emocionou ao homenageá-lo no discurso no Congresso, logo após o desmaio do velho senador.

No discurso de posse, Obama chamou a herança do país de "colcha de retalhos" formada por cristãos e muçulmanos, judeus, hindus e pessoas sem religião. "Essa diversidade é a força, e não a fraqueza dos Estados Unidos", disse ele. Lembrou que, por ter superado a guerra civil e a segregação, saindo desses sombrios momentos sempre mais forte e mais unido, o país pode acreditar que os "velhos ódios" podem passar um dia. Como para mostrar sua fé no fim dos velhos ódios, o presidente Barack Obama enlouqueceu os seguranças quando saiu da sua superblindada e sombria limusine para caminhar livremente no meio da Avenida Pensilvânia, de mãos dadas com Michelle. Incrível cena.

Obama é uma passagem. Quebrou o monopólio de 200 anos dos brancos no cargo maior do país e começa a mudar o tom do que vigorou em Washington nos últimos oito anos. O discurso da posse do ex-presidente George W. Bush parecia saído direto de um manual da guerra fria, exalando ameaças e ódios. O presidente Barack Obama também avisou aos inimigos que eles serão derrotados, mas falou de tolerância, de estender a mão, em interesse e respeito mútuos com o mundo muçulmano. Alertou que o poder dos Estados Unidos cresce se for usado de forma prudente.

O dia em que a História parecia mais real que outros dias tocou quem viu, de perto ou de longe, os fatos. O diretor do Banco Mundial, Vinod Thomas, contou-me, logo após chegar da posse, que ele constatou, feliz, que nas ruas de Washington havia gente de todos os países do mundo. - Vi muitos brasileiros. Não os conhecia, mas reconheci que eram brasileiros - disse Vinod, que morou no Brasil por alguns anos.

Essa alegria do novo fica maior diante do tributo pago aos que iluminaram o passado. Como na poesia de Elizabeth Alexander: "Falem claramente que muitos morreram para que esse dia chegasse. Cantem os nomes dos mortos que nos trouxeram até aqui, que dispuseram os trilhos do trem, levantaram as pontes, colheram o algodão e as alfaces, construíram, tijolo por tijolo, os edifícios brilhantes que eles manteriam limpos e nos quais trabalhariam."

A força dos ideais

Merval Pereira
DEU EM O GLOBO

WASHINGTON. Muito além da emoção que tomou conta da capital nos últimos dias e do sentimento de estar participando da História que cada uma das pessoas parece estar vivenciando, a chegada de um político como Barack Obama à Casa Branca significa uma mudança fundamental na maior potência do mundo, certamente por ser o primeiro presidente negro dos Estados Unidos, mas, sobretudo, por representar um novo tipo de político, se acreditarmos, como acredito, que ele não é apenas um produto forjado por marqueteiros, ou um político bom de retórica, embora em certos momentos sua busca do consenso justifique concessões que podem significar mais fraqueza do que grandeza política. Mas isso veremos no decorrer do mandato.

É nesse contexto que seu discurso de posse, embora não tenha nenhuma frase de impacto, tem uma visão grandiosa de sua tarefa e do mundo que, por si só, já justifica o sentimento de esperança que se renovou durante o dia de ontem.

Quando ele identifica a necessidade de a sociedade americana retomar os valores básicos - "trabalho duro e honestidade, coragem e justiça, tolerância e curiosidade, lealdade e patriotismo" -, coisas antigas, mas verdadeiras, está iniciando uma cruzada transformadora da sociedade americana, a volta aos conceitos básicos que fizeram o país ser a potência que é, embora em declínio.

Quando chama a atenção de todos para a necessidade de "uma nova era de responsabilidade", e faz mea-culpa em nome da sociedade, criticando "os fracos de coração", aqueles que preferem "o lazer ao trabalho, ou apenas a busca de prazeres e riquezas e fama", Obama está chamando os mais de 80% que hoje o apoiam a refazerem a História do país, admitindo que a crise em que se meteram - e meteram o mundo - é conseqüência da "ganância e da irresponsabilidade da parte de alguns, mas também um fracasso coletivo nosso em fazer escolhas difíceis e em preparar o país para uma nova era".

Talvez esteja aí o ponto central da transformação que significa a chegada ao poder de um político jovem e fora da tradição da pequena política de Washington: "o fim das discordâncias mesquinhas e das falsas promessas, das recriminações e dos dogmas gastos", mas, sobretudo, uma nova visão multilateral do mundo e da importância da tecnologia para forjar o futuro. "Vamos restaurar a ciência a seu lugar de direito e utilizar as maravilhas da tecnologia para elevar a qualidade dos serviços de saúde e reduzir seu custo. Vamos manipular a energia solar e dos ventos e da terra para abastecer nossos carros e dirigir nossas fábricas. E vamos transformar nossas escolas e faculdades e universidades para atender às demandas de uma nova era".

Mesmo sem negar o "poder de gerar riqueza e expandir a liberdade sem iguais" do mercado financeiro, Obama salientou que a crise mostrou que, "sem um olhar vigilante, o mercado pode sair de controle - e que um país não pode prosperar quando favorece apenas os prósperos".

Mesmo quando abordou o tema delicado da segurança nacional contra o terrorismo, que tanta margem deu para que abusos oficiais fossem cometidos a partir dos atentados do 11 de Setembro, Obama não tergiversou: "Para nossa defesa comum, rejeitamos a falsa escolha entre nossa segurança ou nossos ideais".

Consciente de que os olhos do mundo estavam voltados para seu pronunciamento, Obama mandou um recado firme, de que está preparado para "liderar novamente": os Estados Unidos são "amigos de todas as nações e de cada homem, mulher e criança que busque um futuro de paz e dignidade".

Ao defender a expansão das alianças "com velhos amigos e antigos inimigos", lembrou que gerações anteriores derrotaram "o fascismo e o comunismo, não apenas com tanques e mísseis, mas com alianças vigorosas e convicções duradouras".

E, como a salientar que o poder hegemônico dos Estados Unidos nunca deveria ter sido imposto, relembrou que os antepassados entenderam que, como hoje, "nosso poder sozinho não pode nos proteger, nem nos dá direito a fazer o que quisermos. Ao contrário, eles sabiam que nosso poder cresce com seu uso prudente; nossa segurança emana da justeza de nossa causa, da força de nosso exemplo".

Obama foi também firme quando reafirmou a retirada das tropas do Iraque, entregando o país "de forma responsável" ao seu povo, e prometeu "forjar uma paz muito duramente conquistada no Afeganistão".

Mas mandou um aviso àqueles que "buscam fazer avançar suas metas pela indução ao terror e massacrando inocentes": "Nossa determinação é mais forte e não pode ser quebrada; vocês não podem nos esgotar, e vamos derrotar vocês".

Mesmo que tenha se anunciado um candidato "pós-racial", Obama não fugiu do tema em seu discurso de posse. Ao contrário, homenageou os que sentiram "o estalar do chicote", disse que "a colcha de retalhos de nossa herança é uma força, não uma fraqueza" e "porque experimentamos o gosto amargo da guerra civil e da segregação, e emergimos daquele capítulo obscuro mais fortes e mais unidos, não podemos evitar acreditar que os velhos ódios um dia vão passar".

Mandou um recado para o mundo muçulmano, "um caminho baseado no interesse mútuo e no respeito mútuo". E encerrou com uma visão dos direitos humanos do mundo, a la Jimmy Carter, chamando a atenção daqueles que "se agarram ao poder através da corrupção e da mentira e silenciando dissidentes, saibam que vocês estão do lado errado da história; mas que estenderemos a mão a vocês se estiverem dispostos a abrirem os punhos".

Um discurso à altura da expectativa do novo papel dos Estados Unidos no mundo, de quem se recusa a abrir mão da liderança mundial, mas a quer como reconhecimento da importância do país, uma imposição dos valores e dos ideais, e não da força.

Refazer a América

Dora Kramer
DEU EM O ESTADO DE S. PAULO

Vinte minutos e nenhuma mistificação. Barack Hussein Obama foi ao ponto e disse apenas o necessário num discurso de posse sem enfeites.

Realista no traço do perfil da crise, duro com as ameaças à segurança de seu país, generoso na referência aos mais pobres, conciliador na proposta de estender a mão a quem se propuser a “abrir o pulso”, entusiasmado e otimista ante a tarefa de conduzir a nação ao reencontro dos valores que fizeram dos Estados Unidos a maior, mais perene e poderosa democracia do mundo.

Obama não falou de si, não exaltou suas qualidades, não vestiu o figurino de salvador, não vendeu facilidades nem se mostrou intimidado ante a imensidão das dificuldades.

Falou de tolerância, de honestidade, de patriotismo, de coragem, de lealdade, de trabalho. Exibiu-se ao planeta como o homem certo na hora exata.

Se será um excelente ou um medíocre presidente é uma dúvida a ser tirada ao longo dos próximos quatro anos. Agora, Obama cumpre o papel concernente ao momento de poço fundo.

Tem a medida necessária ao tamanho do rombo.

Para um problema imenso, só uma solução radical como a eleição de um presidente negro por fora, multirracial por dentro, algo alternativo nas maneiras, neófito na política para o tamanho das trajetórias habitualmente cumpridas antes da chegada ao topo, jovem e ao mesmo tempo tradicionalista.

Cioso da missão de representar o início de uma era de recuperação da economia, da credibilidade interna e externa, da capacidade de indignação perdida diante de tantos e tão escabrosos desastres ocorridos sob a administração George W. Bush.

Frank Rich, colunista do New York Times, fala a respeito num artigo em que compara a comoção provocada pela divulgação dos papéis do Pentágono sobre a guerra do Vietnã, em 1971, e a apatia dos americanos frente aos descalabros em série do governo Bush: as mentiras sobre as armas de destruição do Iraque, as torturas nas prisões de Guantánamo e Abu Ghraib, os bilhões gastos nas guerras e na reconstrução do Iraque, a crise econômica, a corrupção, o clientelismo, a incompetência.

“Após oito anos sendo surrada pelo governo Bush, a nação ficou semicatatônica”, escreve Rich a propósito da absorção de tais acontecimentos ao cotidiano de um país que já não se espantava com mais nada.

Um país que obrigou um presidente da República recém-reeleito a renunciar porque se descobriu que a campanha dele, com a ciência de Richard Nixon, o presidente em questão, espionara a sede do Partido Democrata.

Na avaliação do analista, Barack Obama terá mais chance de defender uma “política nova e incisiva” quanto mais se empenhar em revelar aos americanos tudo sobre “as malfeitorias de Bush”. Frank Rich, no entanto, na véspera da posse duvidava dessa possibilidade por causa de declarações de Obama defendendo a necessidade de “olharmos para a frente, e não para trás”.

Obama nada disse que faça supor a abertura de investigações, mas tampouco deixou de levar em conta o que se passou e proclamar a mudança genuína, “o fim dos sentimentos mesquinhos e das falsas promessas, das recriminações e dos dogmas desgastados que por tanto tempo estrangularam a nossa política”.

Tipo exportação

Bob Woodward, célebre repórter do caso Watergate, escritor, editor do Washington Post, lista “dez lições para o presidente Barack Obama aprender com o governo Bush”, que merecem ser lidas e absorvidas por governantes em geral.

1. É o presidente que dá o tom. Não seja passivo ou tolere divisões virulentas.

Quer dizer, o papel de árbitro é essencial e indivisível.

2. O presidente precisa fazer com que todos se coloquem, mesmo - ou especialmente - quando há divergências.

As posições e opiniões dos auxiliares precisam ser de conhecimento do chefe.

3. Um presidente precisa fazer o dever de casa para elaborar e respaldar suas políticas.

Não pode, nem deve, atuar “de ouvido”.

4. Presidentes precisam ser francos e se certificar de que más notícias cheguem ao Salão Oval (o gabinete presidencial).

O isolamento é nefasto e contraproducente.

5. Presidentes precisam fomentar a cultura do ceticismo e da dúvida.

Certezas inabaláveis são um atalho para o equívoco.

6. Presidentes recebem dados contraditórios, e precisam classificá-los de forma rigorosa.

Não abrir mão, portanto, do discernimento pessoal.

7. Presidentes devem dizer a mais dura verdade ao povo, mesmo que isso signifique dar notícias muito ruins.

Otimismo tem hora.

8. Motivos nobres não são garantia de uma política eficiente.

Os fins não necessariamente justificam os meios.

9. Presidentes devem insistir num pensamento estratégico.

Visão de longo prazo é indispensável.

10. O presidente deve adotar a transparência. Alguma versão do que aconteceu na Casa Branca (ou no Palácio do Planalto) sempre vai se tornar pública.

A sorte de Obama

Nas Entrelinhas: Luiz Carlos Azedo
DEU NO CORREIO BRAZILIENSE


Obama não anunciou fórmulas novas, nem planos mirabolantes. Jogou suas fichas nos valores da democracia americana. Foram eles que possibilitaram a construção do “sonho americano”

Desejo muito boa sorte ao novo presidente dos Estados Unidos, Barack Hussein Obama, cuja posse é um divisor de águas na história daquele país e da política mundial. Como ele mesmo disse, as crianças negras passarão a olhar as crianças brancas de outra maneira e as crianças brancas também olharão para as crianças negras de forma diferente. Um colega aqui da redação, tão veterano quanto eu, considera essa visão muito antropológica. Julga que eu deveria dar mais peso às contradições econômicas e sociais com as quais o mundo se depara. Digamos, ter um olhar “mais sociológico”. Não importa, vejo a posse de Obama na presidência dos Estados Unidos como um avanço civilizatório. O mundo mudou, os Estados Unidos também estão mudando, como o novo presidente dos EUA assinalou.

O declínio

Nossa civilização tem os seus fundamentos na Grécia Antiga e no Império Romano, cujos monumentos em ruínas e obras de arte são reverenciados por sua beleza estética e nos remetem a valores de Justiça e Democracia. Entretanto, a riqueza e o esplendor dessas civilizações não permitem maniqueísmo: foram fundados na guerra, na dominação de outros povos e no trabalho escravo. Também é bom lembrar que a decadência de Roma pôs fim à escravidão na Europa, mas também teceu uma cortina de obscurantismo e misticismo no Ocidente, que somente veio a ser rasgada por Cervantes com as aventuras de Dom Quixote.

Para os pessimistas, diante da realidade nua e crua da crise do capitalismo global e dos conflitos e guerras legados pelo unilateralismo de Bush, Obama é uma espécie de novo cavalheiro andante. Discordo, Obama não é um descuidado dos perigos que o cercam, embora seu discurso renovador dos Estados Unidos me lembre a fracassada pretensão de Mikhail Gorbatchov de democratizar o socialismo da antiga União Soviética e demais países do leste europeu. Será possível resgatar o legado moral da Independência e o chamado “sonho americano”? Ou o declínio dos Estados Unidos é irreversível? Prefiro acreditar na primeira hipótese, pois a contrapartida dessa crise de hegemonia não foi a desejada “governança mundial” sustentada no multilateralismo. É armadilha invisível do ódio fundamentalista e o choque de civilizações nas muralhas religiosas do Ocidente e do Oriente.

A esperança

Disse-nos Obama: “Nossa nação está bastante enfraquecida, uma consequência da ganância e da irresponsabilidade de alguns, mas também da nossa incapacidade coletiva de tomar decisões difíceis e preparar a nação para uma nova era. Lares foram perdidos; empregos foram cortados; empresas destruídas. Nossa saúde é cara demais; nossas escolas deixam muitos para trás; e cada dia traz novas evidências de que a forma como usamos a energia fortalece nossos adversários e ameaça nosso planeta”. Estou entre aqueles que consideram a eleição do novo presidente dos Estados Unidos uma resposta do povo norte-americano a tudo isso que diagnosticou e ao status quo mundial, cujo maior símbolo é a crise de Wall Street.

No coração do capitalismo globalizado, o que se afirma é o compromisso com a liberdade política e uma nova relação de poder entre o Estado defensor do interesse comum e o mercado. Nada será como antes. Nem a desregulamentação dos mercados, nem a vertigem especulativa, nem a ganância dos lucros de curto prazo, nem a desarticulação entre os fluxos financeiros e as necessidades reais. “Aos povos das nações pobres: comprometemo-nos a trabalhar ao lado de vocês para que suas fazendas floresçam e águas limpas possam fluir; para alimentar corpos esfomeados e mentes famintas. E àquelas nações como a nossa, que gozam de relativa abundância, dizemos que não podemos mais aceitar a indiferença ao sofrimento fora de nossas fronteiras; nem podemos consumir os recursos do mundo sem pensar nos efeitos disso. Pois o mundo mudou, e precisamos mudar junto com ele”, promete Obama.

A sorte de Obama está lançada. Ele aposta na força do povo que o elegeu para mudar a política e a economia de seu país e do mundo. É esse significado do que diz ao afirmar: “É a gentileza de socorrer um estranho quando um dique é destruído, a generosidade dos trabalhadores que aceitam reduzir sua jornada de trabalho para que um amigo não perca seu emprego, que nos fazem superar os piores momentos. É a coragem do bombeiro que atravessa uma escadaria cheia de fumaça, mas também a disposição de um pai para criar um filho, que decidem afinal a nossa sorte”. Obama não anunciou fórmulas novas, nem planos mirabolantes. Jogou suas fichas nos valores da democracia americana, no trabalho e nas relações de solidariedade. Foram esses valores que possibilitaram a construção do “sonho americano” e a hegemonia do “americanismo” no mundo, muito mais do que o poderio econômico e militar, embora muitos dentro e fora dos EUA ainda pensem o contrário.

Discurso de Obama

VERSÃO ESTADO.COM.BR

"Meus caros cidadãos:

Eu me coloco aqui hoje humildemente diante da tarefa à nossa frente, grato pela confiança com que vocês me honraram, ciente dos sacrifícios realizados pelos nossos ancestrais. Eu agradeço ao presidente Bush pelo seu serviço à nossa nação, bem como pela generosidade e cooperação que ele mostrou ao longo da transição.

Quarenta e quatro americanos agora já fizeram o juramento presidencial. As palavras foram ditas durante crescentes marés de prosperidade e as águas calmas da paz. Mas, de tempos em tempos, o juramento é realizado entre nuvens que se formam e tempestades violentas. Nesses momentos, a América seguiu à frente não somente pela habilidade ou visão dos que estavam no alto escalão, mas porque Nós o Povo permanecemos confiantes nos ideais dos nossos ancestrais e fiéis aos nossos documentos fundadores.

Assim tem sido. Assim deve ser com essa geração de americanos.

Que nós estamos em meio a uma crise é agora bem sabido. Nossa nação está em guerra, contra uma rede de longo alcance de violência e ódio. Nossa economia está bastante enfraquecida, em consequência da ganância e irresponsabilidade por parte de alguns, mas também por nosso fracasso coletivo em fazer escolhas difíceis e preparar a nação para uma nova era. Casas foram perdidas; empregos cortados; negócios fechados. Nosso sistema de saúde está muito dispendioso; nossas escolas fracassam com muitos; e cada dia traz novas evidências de que as formas como usamos a energia fortalecem nossos adversários e ameaçam nosso planeta.

Esses são os indicadores da crise, assunto de dados e estatísticas. Menos mensurável, mas não menos profundo, é o enfraquecimento da confiança ao longo de nossa terra - um medo repetido de que o declínio da América é inevitável, e que a próxima geração deve diminuir suas perspectivas.

Hoje eu digo a vocês que os desafios que nós enfrentamos são reais. Eles são sérios e são muitos. Eles não serão vencidos facilmente ou em um período curto de tempo. Mas saiba disso.

América: eles serão vencidos.

Nesse dia, nos reunimos porque nós escolhemos a esperança em vez do medo, a unidade de propósito em vez do conflito e da discórdia.

Nesse dia, nós viemos para proclamar o fim às queixas mesquinhas e falsas promessas, às recriminações e aos dogmas desgastados, que por muito tempo já têm enfraquecido nossa política.

Nós continuamos uma nação jovem, mas de acordo com as palavras da Escritura, chegou a hora de se deixar de lado as infantilidades. Chegou a hora para reafirmar nosso espírito tolerante; para escolher nossa melhor história; para prosseguir com esse precioso dom, essa nobre ideia, passada de geração a geração: a promessa dada por Deus de que todos somos iguais, todos somos livres e todos merecem uma chance de buscar sua completa medida de felicidade.

Ao reafirmar a grandiosidade de nossa nação, nós entendemos que a grandeza nunca é dada. Ela deve ser conquistada. Nossa jornada nunca foi de atalhos ou de aceitar menos. Não foi a trilha dos inseguros - daqueles que preferem o descanso ao trabalho, buscam apenas os prazeres das riquezas e da fama. Em vez disso, (nossa jornada) tem sido uma de tomadores de risco, atuantes, fazedores das coisas - alguns celebrados, mas muitos outros homens e mulheres obscuros em seu trabalho - que nos levaram pela longa e espinhosa rota rumo à prosperidade e à liberdade.

Para nós, eles empacotaram suas poucas posses e viajaram pelos oceanos em busca de uma nova vida.

Para nós, eles trabalharam duro em fábricas exploradoras e seguiram rumo a Oeste; suportaram o açoite do chicote e lavraram a terra dura.

Para nós, eles lutaram e morreram, em lugares como Concord e Gettysburg; Normandy e Khe Sahn.

Ao longo do tempo, esses homens e mulheres lutaram e se sacrificaram e trabalharam até suas mãos ficarem em carne viva, para que pudéssemos ter uma vida melhor. Eles viram a América maior do que a soma de suas ambições individuais; maior que todas as diferenças de nascimento ou riqueza ou facção.

Essa é a jornada que nós continuamos hoje. Nós permanecemos a mais próspera e poderosa nação da Terra. Nossos trabalhadores não são menos produtivos do que quando essa crise começou. Nossas mentes não têm menos imaginação, nossas mercadorias e serviços não são menos necessários do que eram na semana passada, no mês passado ou no ano passado. Nossa capacidade permanece a mesma. Mas nossa hora de proteger interesses estreitos e adiar decisões desagradáveis - esse tempo certamente passou. Começando hoje, nós precisamos nos levantar e começar de novo o trabalho de reconstruir a América.

Para todos os lugares que olhemos, existe trabalho a ser feito. A situação da nossa economia pede ação, ágil e rápida, e nós agiremos - não apenas para criar novos empregos, mas para lançar a fundação para o crescimento. Nós construiremos as estradas e pontes, as instalações elétricas e linhas digitais que alimentam nosso comércio e nos mantém juntos. Nós levaremos a ciência a seu lugar de merecimento e controlaremos as maravilhas da tecnologia para aumentar a qualidade do sistema de saúde e reduzir seu custo.

Nós usaremos o Sol e os ventos e o solo para abastecer nossos carros e movimentar nossas fábricas. Nós transformaremos nossas escolas, faculdades e universidades para suprir as demandas de uma nova era. Tudo isso nós podemos fazer. E tudo isso nós faremos.

Agora, existem alguns que questionam a escala das nossas ambições - que sugerem que nosso sistema não pode aguentar planos tão grandiosos. Eles têm memória curta. Porque eles se esqueceram de tudo o que nosso país fez; o que homens e mulheres livres podem conseguir quando a imaginação se junta para objetivos comuns e a necessidade para a coragem.

O que os cínicos não entendem é que o chão que eles pisam não é mais o mesmo - que as disputas políticas que nos envolveram por muito tempo não existem mais. A questão que perguntamos hoje não é se nosso governo é muito grande ou muito pequeno, mas se ele funciona - se ele ajuda as famílias a encontrarem empregos que pagam um salário decente, que tipo de seguridade eles dão, uma aposentadoria que seja digna. Onde a resposta é sim, nós queremos ir em frente. Onde a resposta é não, os programas acabarão. E aqueles de nós que manejam os dólares públicos terão que prestar contas - para gastar de maneira sábia, reformar maus hábitos, e fazer nossos negócios à luz do dia - porque apenas assim nós podemos restaurar a confiança vital entre o povo e o governo.

Também não á a questão que se apresenta a nós se o mercado é uma força para o bem ou para o mal. Seu poder de gerar riquezas e expandir a liberdade é ilimitado, mas esta crise nos fez lembrar que sem vigilância, o mercado pode sair do controle - e uma nação não pode prosperar por muito tempo quando favorece apenas os mais ricos. O sucesso da nossa economia sempre dependeu não apenas do tamanho do nosso Produto Interno Bruto (PIB), mas do poder da nossa prosperidade; na nossa habilidade de estendê-la a cada um, não por caridade, mas porque esse é o caminho mais seguro para o bem comum.

Quanto à nossa defesa comum, rejeitamos a falsa escolha entre nossa segurança e nossos ideais. Os fundadores do país, que enfrentaram perigos que sequer imaginamos, redigiram uma carta para assegurar o primado da lei e dos direitos do homem, uma carta expandida pelo sangue de gerações. Esses ideais ainda iluminam o mundo, e nós não vamos abandoná-los por conveniência. E, então, para todos os povos e governos que estão assistindo hoje, das grandes capitais ao pequeno vilarejo onde meu pai nasceu: Saibam que a América é amiga de cada nação e de cada homem, mulher ou criança que procure um futuro de paz e dignidade, e que nós estamos prontos para liderar uma vez mais.

Lembrem-se que gerações anteriores enfrentaram o fascismo e o comunismo não apenas com mísseis e tanques, mas com alianças robustas e convicções duradouras. Eles entenderam que nosso poder sozinho não pode nos proteger, nem nos dá o direito de fazer o que quisermos. Em vez disso, eles entenderam que nosso poder cresce com seu uso prudente; nossa segurança emana da Justiça de nossa causa, da força de nosso exemplo, da têmpera das qualidades de humildade e moderação.

Nós somos os guardiães desse legado. Guiados por esses princípios uma vez mais, podemos enfrentar novas ameaças que exigem um esforço maior - maior cooperação e compreensão entre as nações. Começaremos por sair do Iraque com responsabilidade e por criar um esforço de paz no Afeganistão. Com velhos amigos e antigos adversários vamos trabalhar incansavelmente para diminuir a ameaça nuclear, e reduzir o espectro do aquecimento global. Não vamos pedir desculpas por nosso modo de vida, nem vamos vacilar em sua defesa, e, para aqueles que procurarem avançar em seus objetivos produzindo terror e matando inocentes, diremos a eles que nosso espírito é mais forte e não pode ser quebrado; eles não poderão prevalecer e nós os derrotaremos.

Sabemos que nossa herança multicultural é uma força, não uma fraqueza. Somos uma nação de cristãos e muçulmanos, judeus e hindus - e ateus. Somos moldados por cada língua e cultura, de cada parte desta Terra; e por causa disso provamos o sabor mais amargo da guerra civil e da segregação e emergimos desse capítulo mais fortes e mais unidos; não podemos senão acreditar que os velhos ódios passarão um dia; que as linhas das tribos vão se dissolver rapidamente; que o mundo ficará menor, nossa humanidade comum deve revelar-se; e que a América vai desempenhar o seu papel em uma nova era de paz.

Para o mundo muçulmano, buscamos um novo caminho a seguir, baseado em interesse e respeito mútuo. Para aqueles líderes pelo mundo que buscam semear o conflito, ou culpam o Ocidente pelos males de suas sociedades: Saibam que seus povos irão julgá-los a partir do que vocês podem construir, e não destruir. Para aqueles que se agarram ao poder por meio da fraude e da corrupção, saibam que estão no lado errado da História; mas nós estenderemos a mão se vocês estiverem dispostos a cooperar.

Às pessoas das nações pobres, nós queremos trabalhar a seu lado para fazer suas fazendas florescerem e deixar os cursos de água limpa fluírem; para nutrir corpos famintos e alimentar mentes ávidas. E para aquelas nações como a nossa, que vivem em relativa riqueza, queremos dizer que não podemos mais suportar a indiferença quanto ao sofrimento daqueles que sofrem fora de nossas fronteiras; nem podemos consumir os recursos do mundo sem nos importar com as consequências. Nós devemos acompanhar as mudanças do mundo.

À medida que entendemos o caminho que se desdobra diante de nós, recordamos com humilde gratidão aqueles bravos americanos que, a esta mesma hora, patrulham longínquos desertos e montanhas distantes. Eles têm algo a nos dizer hoje, como aqueles heróis caídos que jazem em Arlington murmuram através dos tempos. Nós os honramos não apenas porque eles não os guardiães de nossa liberdade, mas porque eles representam o espírito de servir ao país; a disposição de encontrar um significado maior que si mesmos. E ainda, neste momento - um momento que vai definir uma geração - é precisamente esse espírito que todos nós devemos viver.

Porque, por mais que o governo possa fazer e precise fazer, em última instância é da fé e da determinação do povo americano que esta nação depende. É a bondade de receber um estranho quando os diques se rompem, é o desprendimento de trabalhadores que preferem reduzir suas horas a ver um companheiro perder o emprego o que nos auxilia em nossas horas mais sombrias. É a coragem do bombeiro de subir uma escada cheia de fumaça, mas também a disposição de pais de criar uma criança o que, no fim das contas, decide o nosso destino.

Nossos desafios podem ser novos. Os instrumentos com os quais nós os enfrentamos podem ser novos. Mas aqueles valores dos quais nosso sucesso depende - trabalho duro e honestidade, coragem e justiça, tolerância e curiosidade, lealdade e patriotismo - essas coisas são antigas. Essas coisas são verdadeiras. Elas têm sido a força quieta do progresso ao longo de nossa história. O que se exige, então, é uma volta a essas verdades. O que se exige de nós agora é uma nova era de responsabilidade - um reconhecimento, por parte de todo americano, de que nós temos deveres para conosco, nossa nação e o mundo; deveres que nós não aceitamos a contragosto, mas com alegria, firmes no conhecimento de que não há nada tão satisfatório para o espírito, tão definidor de nosso caráter, do que dar tudo o que podemos numa tarefa difícil.

Este é o preço e a promessa da cidadania.

Esta é a fonte de nossa confiança - o conhecimento de que Deus nos convoca a dar forma a um destino incerto.

Este é o significado de nossa liberdade e de nosso credo - por que homens e mulheres e crianças de toda raça e de toda fé podem se unir numa celebração neste magnífico Mall, e por que um homem cujo pai, menos de 60 anos atrás, poderia não ser servido num restaurante local, agora pode estar diante de vocês para fazer um juramento sagrado.

Por isso, vamos marcar esse dia com a lembrança de quem somos e quão longe viajamos. No ano do nascimento da América, no mais frio dos meses, um pequeno grupo de patriotas se encolhia em torno de fogueiras que se apagavam, às margens de um rio gelado. A capital estava abandonada. O inimigo estava avançando. A neve estava manchada de sangue. Num momento em que nossa revolução estava em dúvida, o pai de nossa nação ordenou que essas palavras fossem lidas para o povo:

"Que seja dito ao mundo futuro que, na profundidade do inverno, quando nada além da esperança e da virtude poderia sobreviver, a cidade e o país, alarmados diante de um perigo comum, saiu para enfrentá-lo."

América. Em face de nossos perigos comuns, neste inverno de nossas dificuldades, vamos lembrar essas palavras eternas. Com esperança e virtude, vamos enfrentar uma vez mais as correntes geladas e resistir quaisquer tempestades que possam vir. Que seja dito pelos filhos de nossos filhos que, quando fomos testados, nós nos recusamos a deixar esta jornada terminar, que nós não viramos as costas, que nós não vacilamos; e, com os olhos fixos no horizonte e a graça de Deus sobre nós, levamos adiante o grande dom da liberdade e o entregamos com segurança paras as gerações futuras."