segunda-feira, 26 de janeiro de 2009

O dilema de Aécio

Fernando Rodrigues
DEU NA FOLHA DE S. PAULO


BRASÍLIA - A disputa interna no PSDB pela vaga de candidato a presidente em 2010 tem 60 dias importantes pela frente. A acomodação de forças na legenda até o final de março indicará uma possível atrofia das chances do governador mineiro, Aécio Neves -e o consequente fortalecimento do paulista José Serra como o nome dos tucanos para a sucessão de Lula. Aécio deu um prazo para o PSDB regulamentar as prévias no partido.

Em fevereiro, a Executiva Nacional tucana produz uma proposta. Em março, publica as normas sobre como os militantes, por meio de consulta direta, decidirão quem será o candidato a presidente. As prévias são a única chance (remota) de Aécio ser o escolhido. No caso de derrota, o tucano também poderia usar o clássico "venceu a democracia" para se justificar diante de seus correligionários.

Se o partido ignorar o ultimato e não definir as regras da disputa interna até março, o mineiro fica encalacrado. Sua opção de risco é o caminho da rua, assinando a ficha em outro partido. A outra saída seria resignar-se ao manjado axioma sobre a fila da política. Serra, 67 anos, estaria na frente de Aécio, 49.

Se política tem fila, também tem momento. Ulysses Guimarães teve o seu. Em 1988, seria até rei do Brasil. Foi convencido a esperar um ano. "Um ano é nada", diziam. Em 1989, Ulysses amargou menos de 5% na disputa presidencial.

Aécio está enfrentando uma funesta conjunção astral na política. Seu melhor momento coincide em 2010 com a última chance de Serra se viabilizar para o Planalto. Esperar um pouco sempre é possível. Mas ser o governador mais bem avaliado da história de Minas Gerais por dois mandatos seguidos é um cenário difícil de repetir. O dilema do mineiro é espinhoso. Sacrifica-se pelo PSDB e por Serra ou faz um voo solo sem segurança sobre o local da aterrissagem.

Onde o segredo?

Paulo Brossard
DEU NO ZERO HORA (RS)

Até as últimas horas do governo Bush, a crise mostrou que estava longe de amainar; dois dos maiores bancos americanos receberam injeções sesquipedais e aqui a marolinha se encarregou de alguns estragos nada desprezíveis no setor do emprego e de empresas, do agronegócio e dos fundos de pensão. Neste entretempo, o presidente da República se permitiu mais uma excursão por territórios bolivarianos, para interferir ostensivamente em assuntos internos da Bolívia e da Venezuela.

Os fatos foram amplamente noticiados. Segundo um dos nossos maiores jornais, “nos últimos dias, Lula travestiu-se de cabo eleitoral dos caciques bolivarianos. Foi à Bolívia dar um alento à campanha de Evo Morales para aprovar a sua Constituição. E completou o giro na Venezuela, onde declarou que ‘Chávez é jovem e aguenta um novo mandato’”.

Já era muito, mas não foi só. Relativamente àquela, cujo presidente tem sido muito agressivo em relação ao Brasil, não se limitou ao apoio em suas pretensões institucionais, mas deu-lhe forte apoio econômico, aumentando significativamente a quantidade do gás a importar; quanto à segunda, permitiu-se fazer considerações nunca vistas por parte dos nossos presidentes; dos melhores aos menos bons. Entrou a fundo na questão, como se não tratasse de assunto estritamente venezuelano.

Como é sabido, o coronel Chávez pretende eternizar-se no poder mercê da reeleição indefinida e o nosso presidente lhe deu apoio, explícito e cabal, chegando a argumentar com o ocorrido na Grã-Bretanha e na Alemanha, com Margaret Thatcher e Helmut Kohl, quando se trata de países parlamentaristas. E por aí se foi, como se estivesse em casa. A intimidade era de compadrio.

Não sei se o presidente brasileiro estaria lembrado de antecedentes venezuelanos a respeito. Compreende-se que o coronel Chávez busque manter-se vitaliciamente no poder, pois há precedente em sua terra. Faz um século, foi em 1908, que o general Juan Vicente Gómez assumiu o governo e só o deixou passados 27 anos, pela lei da morte, em 1935. Ele era então o decano e modelo dos ditadores sul-americanos, apelidado “o tirano dos Andes”. De modo que se pode compreender a expressa ou velada pretensão de Chávez à perpetuidade, mas não se pode entender como o presidente do Brasil, em cavacos fraternais, se intrometa em assuntos dessa peculiaridade nacional.

O certo é que Chávez já sofreu alguns insucessos eleitorais e que, imperando em seu país quando o petróleo nadava na casa dos US$ 150 agora mermou para US$ 50, e pode cair mais, de modo que o tempo não ajuda o caudilho.

Mas não foi só. O presidente da República passou da Venezuela ao Brasil e antecipou a inserção do nosso país à degradação institucional que, aliás, nunca imperou aqui. Isso terá sido por acaso ou falta de assunto? Ora, o presidente Luiz Inácio pode ser tudo, menos tolo e até hoje não fez declarações por fazer, gratuitamente ou para encher o tempo. É o caso de perguntar: onde o presidente quer chegar, o que ele pretende e o que está elucubrando? E isto me parece particularmente grave sob o ponto de vista nacional, que nos diz respeito.

P.S. – Deixe o leitor que eu saia desse assunto preocupante, para passar a outro agradável. Já leu o livro de Carlos Augusto Bisson, Moinhos de Vento. Histórias de um bairro de Porto Alegre? Vale a pena.

*Jurista, ministro aposentado do STF

Em ano sem eleições, MST prevê mais invasões e ergue bandeiras urbanas

DEU NO ZERO HORA (RS)

MST caminha para as cidades

O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) encerrou seu encontro em comemoração aos 25 anos de existência em Sarandi, no norte do Estado, impelido a marchar por novos caminhos. A preocupação em reconquistar espaço social e peso político perdidos, manifestada durante o evento, que se prolongou de terça-feira a sábado, motiva uma mudança de rumos alinhavada em solo gaúcho. O encontro ainda marcou a ruptura entre a organização e o governo federal, que sequer foi convidado para a celebração.

Onovo mapa dos sem-terra destaca os centros urbanos e o alto-mar brasileiro como alvos da nova mobilização campesina. Apesar disso, a ameaça feita ao final do evento é de que as tradicionais invasões de terra serão intensificadas este ano.

Nos cinco dias do 13º Encontro Nacional do MST, no assentamento Novo Sarandi, os líderes decidiram reforçar os laços com entidades citadinas.

– A ligação com as cidades não é nova, já que 20% dos assentados no Estado vieram delas, mas pode ser aprofundada não para arregimentar sem-terra, e sim diversificar a ação do movimento – avalia o professor de Sociologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) Ivaldo Gehlen, especialista em desenvolvimento agrário.

A estratégia inclui chegar às cidades com o auxílio de sindicatos de servidores públicos e centrais de trabalhadores participando de mobilizações conjuntas, mas não exclui ações como invasões de empresas urbanas.

– O MST sempre esteve presente nas cidades. Só vamos intensificar nossas lutas – diz um líder do movimento.

A voltagem das ações do MST foi outro ponto de discussão. Um grupo de sem-terra entende que o movimento deveria adotar uma postura mais moderada em vez de apostar em ações agressivas capazes de desgastar a imagem dos sem-terra. Ao eleger a defesa do petróleo como uma riqueza a ser controlada exclusivamente pelo governo brasileiro, o MST pode estar apontando uma solução intermediária para este embate interno de forças, já que é um tema com maior apelo à sociedade civil.

– Essa questão do petróleo é uma novidade por parte do movimento, e tem um caráter nacionalista. É uma palavra de ordem com muito apelo social – avalia Gehlen.Irritado com os investimentos do Planalto na reforma agrária e com a velocidade na distribuição, o MST também sinalizou o divórcio com o governo Lula, um tradicional aliado. O protesto dos sem-terra encontra uma das justificativas para a ruptura nos números do Ministério de Desenvolvimento Agrário. De R$ 1,666 bilhão previsto para 2008, o governo só gastou 44,24%.

CSN vai demitir até 20% dos funcionários

DEU NA GAZETA MERCANTIL

A Companhia Siderúrgica Nacional (CSN), a terceira maior produtora de aços planos do País, está dando continuidade à idéia de demitir até 20% de seu quadro de aproximadamente 16 mil funcionários, após o colapso da demanda pelo metal, segundo informações do porta-voz do Sindicato dos Metalúrgicos do Sul Fluminense, Carlos Pinho.

Cerca de 1.200 empregados já foram demitidos ou estão em processo de afastamento da usina da empresa, em Volta Redonda, no Estado do Rio de Janeiro, de acordo com Pinho. A porta- voz da CSN em São Paulo, Flávia Ferreira, afirma que a empresa não comentará sobre o número de prováveis demissões.

A CSN deu 21 dias de férias coletivas, a partir de meados de dezembro, a cerca de 2 mil funcionários e antecipou as datas de aposentadoria de um número não-especificado de empregados da fábrica de Volta Redonda, depois da queda vertical das encomendas por parte das montadoras brasileiras. As vendas de aços planos caíram 23% no mês passado no Brasil, comparativamente ao mesmo período de 2007, segundo o Instituto Nacional dos Distribuidores de Aço (Inda).

No entanto, em janeiro, as vendas da CSN não mostraram recuperação, e a empresa decidiu dar novas férias coletivas, que devem valer a partir de meados de fevereiro. Além disso, passou a considerar a demissão de grande contingente de pessoal, com o objetivo de reduzir custos, embora o caixa da companhia tenha engordado no último trimestre, com a venda de 40% da Namisa por US$3,08 bilhões..

"A CSN está demitindo 150 por dia, mas não fornece números oficiais", afirmou na última sexta-feira Pinho. "A empresa não quer fazer propostas ou negociar conosco; só quer continuar demitindo", acrescentou.

De acordo com ele, a siderúrgica não tem planos de se reunir com o sindicato.

PSDB quer barrar terceiro mandato em negociação da eleição da Mesa

Raymundo Costa, de Brasília
DEU NO VALOR ECONÔMICO

Considerado o partido fiel da balança na eleição do futuro presidente do Senado, o PSDB quer discutir também questões políticas - como o terceiro mandato - com os dois candidatos ao cargo, José Sarney (PMDB-AP) e Tião Viana (PT-AC), antes de formalizar apoio a um deles. A eleição está marcada para as 10h da próxima segunda-feira, 2 de fevereiro, mesmo horário em que está marcada a eleição para a presidência da Câmara dos deputados.

O PSDB quer arrancar o compromisso de que o candidato não dará curso, se for eleito, a projetos como o do terceiro mandato consecutivo - proposta sempre rejeitada pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva, mas que a oposição suspeita ser uma alternativa sob avaliação do PT. O terceiro mandato é apenas um dos itens da agenda política que está sendo alinhavada pelos tucanos para discutir com os candidatos.

Segundo os dirigentes do PSDB, o partido "não tem problemas para votar em nenhum candidato", como diz o presidente nacional tucano, Sérgio Guerra (PE). Ou seja, não há veto nem a Tião Viana nem a Sarney. Guerra reconhece que será difícil para a oposição votar num candidato do PT, caso de Viana. Mas embora negue que os tucanos já tenham uma decisão tomada, é certo que a tendência do PSDB é ficar majoritariamente com Sarney.

O líder do PSDB, Artur Virgílio, deve se reunir amanhã com Guerra - e com a bancada, nos dias subseqüentes - para formalizar a decisão tucana. Com Sarney, o líder da bancada abriu negociação sobre a participação dos tucanos na Mesa e nas comissões temáticas: o PSDB quer a primeira vice-presidência do Senado e as comissões de Assuntos Econômicos (para Tasso Jereissati, do Ceará) e a de Relações Exteriores (para Eduardo Azeredo, de Minas Gerais).

A Comissão de Constituição e Justiça, na composição para levar à eleição de José Sarney, deve ficar para o PMDB: servirá para compensar o atual presidente do Senado, Garibaldi Alves (RN), que desistiu de tentar uma reeleição juridicamente duvidosa quando Sarney entrou no páreo. O Democratas já declarou apoio oficial a Sarney, e na negociação pode ficar com um dos cargos pretendidos pelo PSDB.

A semana é decisiva para as eleições da Mesa. O lançamento da candidatura de Sarney está previsto para um almoço da bancada do PMDB, na quarta-feira. O PT também avalia que os votos do PSDB serão decisivos na eleição, e o senador Tião Viana tenta conseguir apoios na bancada por meio do governador de São Paulo, José Serra, desde 2002 considerado um desafeto pela família Sarney. O prefeito Gilberto Kassab (DEM-SP) e o ex-senador Jorge Bornhausen (SC) tentam a reaproximação os dois políticos.

Para Serra, na avaliação de tucanos, a vitória de Viana em São Paulo retiraria todos os argumentos do PT para não votar em Michel Temer (PMDB-SP) para a presidência da Câmara, a qual concorrem outros dois candidatos: Aldo Rebelo (PCdoB-SP) e Ciro Nogueira (PP-PI). Temer integra o grupo da Câmara mais ligado aos tucanos. Sarney é aliado de Lula, mas tem demonstrado desconforto com a agressividade petista na condução da candidatura de Tião Viana.

Embora comecem no mesmo horário, é bem provável que a eleição na Câmara só seja encerrada no final da tarde de segunda-feira, duas ou três horas depois de conhecido o resultado do Senado (são 81 senadores e dois candidatos para 415 deputados e quatro candidatos, até agora). Esse intervalo é considerado o pior inimigo do PMDB, caso Sarney confirme seu favoritismo no Senado - um terreno fértil às traições, nos partidos em geral. Até no PMDB. Os deputados estão em campanha aberta em favor de Tião Viana na disputa pela presidência do Senado.

As pirâmides perpétuas de Faoro

Francisco Foot Hardman
DEU EM O ESTADO DE S. PAULO


Os Donos do Poder, cinquenta anos depois, ainda é análise precisa da permanência secular da estruturas de poder no Brasil

Ciosos de efemérides que nos redimam, por instantes, do esquecimento amplo, geral e irrestrito em que a sociedade da hiper-informação efêmera nos afunda, quase nos esquecíamos do cinquentenário dessa obra-prima do ensaísmo brasileiro: Os Donos do Poder, do jurista, historiador e literato Raymundo Faoro (1925-2003), que acaba de ganhar nova edição (Globo, 929 págs., R$ 94)

Publicado originalmente em Porto Alegre, em 1958, é verdade que esse livro conhecerá seu maior impacto político e cultural somente a partir de sua segunda edição, totalmente revista e ampliada pelo autor, e isso certamente pela conjuntura que acompanhou sua reaparição, em 1973, no auge dos anos de chumbo. A ditadura militar tardava mais do que todos não só queriam, mas haviam previsto. Era preciso ler a cena com um sentido de compreensão mais largo no tempo e no espaço das relações sociais. Os Donos do Poder passou então a ser muito mais lido, pelos seus próprios donos e sobretudo pelos que falharam rotundamente em achar que sua conquista era questão de poucos anos ou de poucas armas. Pois de tudo que se diga desse notável gaúcho de Vacaria, uma coisa é certa: Faoro é um de nossos mais raros e brilhantes analistas da "longa duração", da permanência secular das estruturas do poder no Brasil, da continuidade infernal dos dispositivos retóricos e materiais do mando.

Obra reescrita e atualizada sempre com maestria feita de fina erudição - em que se combinam cultura jurídica, histórica, filosófica, sociológica, literária (oh! já não se fazem juristas como antigamente) -, em pleno domínio de uma prosa densa, elegante, ciosa da lentidão que toda boa argumentação requer, foge a cada passagem, entretanto, de qualquer monotonia processual, pois é capaz de surpreender o leitor com imaginário verbal que emerge a cada passagem em belas e significativas metáforas. A permanência do subtítulo sugere a força de uma tese que foi ganhando mais atualidade com o passar das décadas: formação do patronato político brasileiro.

O leitor de agora poderá se valer de uma 3ª. edição disponível da obra, saída em 2001 e com pequenas revisões ainda da lavra do autor, incluindo um bom índice remissivo e que já teve pelo menos 7 reimpressões até o ano passado. Ela contém o prefácio à segunda edição de 1973 e os dois capítulos novos ali inseridos, sobre a República Velha e sobre mudança e revolução na Era Vargas, focada no período 1930-1945. Mas quem quiser conhecer mais sobre o pensamento político e ensaísmo cultural de Faoro, um de nossos grandes militantes da Assembléia Nacional Constituinte nos anos 70-80, além de articulista prestigioso e polemista hábil nas páginas de Isto É, Senhor e, nos últimos anos de vida, de Carta Capital, deverá percorrer o excelente volume organizado por Fábio Konder Comparato, A República Inacabada (Globo, 2007). Nele se reúnem três importantes ensaios histórico-políticos de Faoro publicados antes avulsamente: Existe um pensamento político brasileiro? (1994); Assembléia Constituinte: a legitimidade resgatada (1981); e Sérgio Buarque de Holanda: analista das instituições brasileiras, este último em que se revelam claras afinidades entre esses dois críticos disfóricos das heranças luso-ibéricas em nossa formação.

E quem, para além da análise dos impasses políticos brasileiros, quiser se aventurar ainda um pouco mais pelo espectro de possibilidades da obra desse ensaísta de primeira linha terá necessariamente que se deter nas mais de 500 páginas de seu livro Machado de Assis: a Pirâmide e o Trapézio, editado de início na memorável coleção Brasiliana da Companhia Editora Nacional, em 1974 e que chegou, até 2001, a uma 4ª. edição revista pelo autor (Globo), texto já nascido clássico, principal passaporte para seu ingresso na Academia Brasileira de Letras, em 2000.

Há interessantes pontes de travessia entre Os Donos do Poder e Machado de Assis. Pois neste, o que sobreleva é a visão negativa de uma sociedade fundada na dominação patrimonialista de fundo estamental, pirâmide de ascensão previamente bloqueada para os despossuídos de todos os tempos, pendularmente oscilantes no trapézio da precariedade social sem cidadania e sem nenhuma perspectiva de classe à vista. Ceticismo e pensamento distópico, Faoro inspira-se em Machado, de cuja obra tinha uma visão de conjunto como poucos, para diagnosticar um mal de raiz na formação histórico-social brasileira.

Perdoem-me os leitores se cito aqui justamente as linhas finais de Os Donos do Poder, na versão completamente modificada pelo autor em 1973. Mas antes de contar o fim da história, talvez estivesse recontando o começo, pois Faoro, bem à maneira de Arnold Toynbee, enxerga na história luso-brasileira um círculo civilizacional interrompido, precocemente envelhecido antes de se desenvolver, retrógado antes de qualquer decadência, nessa viagem que curta-circuita os pólos do patrimonialismo privado e do estamento público-burocrático-estatal, viagem redonda porque quadrada, vale dizer, emparedada, nos muros da pirâmide e nas quedas inevitáveis do trapézio. Essa social enormity (Toynbee), que o autor preferiu, na edição original, traduzir por "monstruosidade social", encobre a autoreprodução de velhos mecanismos de dominação e instituições anacrônicas: "Deitou-se remendo de pano novo em vestido velho, vinho novo em odres velhos, sem que o vestido se rompesse nem o odre rebentasse. O fermento contido, a rasgadura evitada gerou uma civilização marcada pela veleidade, a fada que presidiu ao nascimento de certa personagem de Machado de Assis, claridade opaca, luz coada por um vidro fosco, figura vaga e transparente, trajada de névoas, toucada de reflexos, sem contornos, sombra que ambula entre as sombras, ser e não ser, ir e não ir, a indefinição das formas e da vontade criadora. Cobrindo-a, sobre o esqueleto de ar, a túnica rígida do passado inexaurível, pesado, sufocante."

Salvo engano, Faoro esteve entre os primeiros autores brasileiros a incorporar o crítico norte-americano M. A. Abrams, autor de The Mirror and the Lamp (O espelho e a lâmpada, 1953) em sua análise cultural-literária, em que a interpretação subjetiva é parte da cena representada em cada objeto artístico-poético, porém dentro de limites dados pelo próprios instrumentos da linguagem e da realidade apreendidos, fugindo tanto do objetivismo naturalista quanto do impressionismo ultra-romântico. Já na análise social, o aproveitamento engenhoso que faz de Weber (método da compreensão subjetiva dos valores culturais postos em cada sociedade e período histórico, fundamento de uma nova objetividade não positivista e não arbitrária), trouxeram, em Os Donos do Poder, um sopro novo às leituras do Brasil.

Faoro criticou dualismos presentes tanto em análises liberais quanto marxistas da realidade brasileira. Em seu tempo, foi em parte mal compreendido. Mas sua capacidade de diálogo crítico transcende qualquer "escola de pensamento". Ao mesmo tempo em que, por exemplo, indica com precisão que a teoria trotskista do "desenvolvimento desigual e combinado" reintroduz o dualismo e a visão unilinear e etapista dos modos de produção, retoma com justeza a expressão marxiana "Le mort saisi le vif" (O morto agarra-se ao vivo) para enfatizar a permanência das estruturas mais longevas do poder social concentrado num super-Estado que, reproduzindo arcaísmos, trafega plenamente, desde logo, na ordem capitalista.

Se vivo fora, esse mestre do radicalismo democrático estaria perplexo diante dos exemplos mais recentes de permanências expressivas das estruturas do patronato político entre nós. No governo Lula, no Congresso e no STF, sucedem-se os casos de completa impermeabilidade piramidal às demandas sociais reformistas mais urgentes. Os mandões de ontem continuam mandando. E os excluídos de sempre continuam a luta no fio do trapézio.

Mas Os Donos do Poder poderia igualmente iluminar, nesses tempos globais, para além das especificidades nacionais (jamais Faoro pensou em isolá-las como essências), a continuidade burocrático-estamental de estruturas de poder opacas em sociedades próximas como México e Argentina e, com as devidas mediações, em sociedades mais distantes geografica e historicamente, porém, a rigor, semelhantes na preservação de dispositivos das antigas violências estatais com as antigas e novas formas abissais da desigualdade: Rússia, China e Índia. Mostrando que os rumos do capitalismo assumem formas inteiramente insuspeitadas por seus primeiros críticos.

Francisco Foot Hardman é professor de teoria e história literária no Instituto de Estudos da Linguagem da Unicamp.

Mística e contradições do MST

José de Souza Martins*
DEU EM O ESTADO DE S. PAULO / ALIÁS

Na nova visão de reforma agrária do movimento, a prioridade não é mais a terra e sim o mercado

O aniversário de 25 anos do MST deu a Gilmar Mauro, um de seus dirigentes, a oportunidade de uma autocrítica, na Folha Online, que bem expressa o bifrontismo e os dilemas dessa organização política. De um lado, ele reconhece que o MST não conseguiu uma reforma agrária no Brasil, embora tenha contribuído para o assentamento de muitas famílias de trabalhadores rurais. De outro lado, diz que agora a reforma agrária tem um conteúdo novo, relativo a uma agricultura, de alimentos saudáveis e matérias-primas, que não agrida o meio ambiente. Antes a terra tinha precedência, agora é o mercado.

Bifrontismo porque a reforma agrária do MST é antagônica ao historicamente próprio da reforma agrária: a supressão ou atenuação da renda territorial, o preço da terra, como tributo que condiciona seu uso, para viabilizar a expansão capitalista na agricultura.

A reforma agrária nada tem de revolucionária, embora possa ter potenciais de transformação social e até política. O sujeito social da reforma, que é a chamada agricultura familiar, tem um potencial que para Gilmar Mauro ainda se limita à agricultura ecológica e sadia. Deixa ele de lado o potencial socialmente transformador do saber tradicional e do familismo rural quando inseridos nas imensas possibilidades da economia e da sociedade modernas, como contraponto às suas insuficiências e irracionalidades, como é o caso da fome. Na economia moral do MST há um capital social que vem sendo desperdiçado quando reduzido a uma prática fantasiosa, destituída de mediações e imune às próprias contradições.

Ao ignorar os limites e as possibilidades desse dilema, o MST deixa de tirar dele mais do que a bravata anticapitalista de seus dirigentes e atira ao monturo das oportunidades perdidas a riqueza do capital social que, na figura do agricultor familiar em crise, lhe caiu nas mãos literalmente por milagre. É nesse terreno movediço que o MST se situa, por motivos históricos alheios a sua vontade e a sua compreensão. O MST não é o pai e patrono da reforma agrária no Brasil, bem mais antiga do que ele. Nasceu ela quando as esquerdas já haviam perdido essa bandeira para a própria ditadura militar. A reforma agrária entrara na agenda dos partidos de esquerda nos anos 50 basicamente como condição para enfraquecer o poder político da grande propriedade da terra e alargar as bases sociais da luta pelo socialismo. Não era uma demanda efetiva e consistente de imensas massas insurgentes. Aliás, a Igreja opôs-se à reforma agrária de Jango e deu decisiva demonstração nesse sentido ao apoiar e viabilizar as chamadas Marchas da Família com Deus pela Liberdade, que promoveram mobilizações de massa a favor do golpe de Estado.

Dado o golpe, a ditadura apropriou-se da causa da reforma e tornou-a causa do governo. A Igreja, de onde o MST nasceria em 1984, só voltou a se interessar por ela em 1975, quando foi criada a Pastoral da Terra, como pastoral de direitos humanos, motivada pela sistemática violência contra posseiros pobres na avassaladora expansão da fronteira econômica na Amazônia. A protestantização do Estado brasileiro, a partir do golpe, deixou a Igreja sem margem de intervenção junto ao governo em defesa de seus pontos de vista, tendo sido a aprovação do divórcio o ápice dessa marginalização política. Quebrou-se o arranjo proposto pela Revolução de Outubro de 1930, com Getúlio, de um reconhecimento do catolicismo como religião da maioria da nação, o que dava à Igreja preferência nas atenções do Estado.

Esses dois fatores empurraram a Igreja para uma opção decisiva pelas questões sociais e políticas. Mas a Pastoral da Terra fora proposta como pastoral de suplência e deu sinais de que chegara ao limite quando ficou evidente que o regime chegava ao fim. Foi a CNBB, aliás, que propôs a Tancredo o nome de um católico como novo ministro de Assuntos Fundiários contra os nomes indicados pela Associação Brasileira de Reforma Agrária, três nomes de esquerda. A Igreja queria a reforma, mas não queria a esquerda na sacristia.

Nesse cenário, já antes, agentes de pastoral começaram a articular um futuro sem envolvimento direto dos bispos na questão fundiária. Numa conversa informal no Centro de Treinamento de Líderes, da Arquidiocese de Goiânia, o Padre José Servat, um belga originário da Ação Católica, que exerce seu ministério no Nordeste, lembrou ao acaso que a saída poderia ser a de criar um movimento de trabalhadores sem terra, para que essa mudança não afastasse da luta pela reforma agrária os leigos da Igreja.

Na mesma direção, outra mudança já vinha ocorrendo. Em 1981, 600 famílias de sem-terra acamparam na faixa de servidão da estrada de Ronda Alta a Passo Fundo (RS). Na origem e no geral, era gente expulsa das terras dos índios caingangues na revolta indígena de outubro de 1978, em Nonoai. Em curto tempo, houve levantes em praticamente todos os aldeamentos caingangues, de São Paulo ao Rio Grande do Sul. No caso de Nonoai, as terras indígenas começaram a ser ocupadas por colonos em 1966, mediante pagamento de renda simbólica à Funai, os índios transformados em seus empregados. Expulsos, parte dos colonos foi para fazendas do governo, esperando assentamento definitivo. De um modo ou de outro, muitos acabariam na estrada de Ronda Alta. Ali, na Encruzilhada Natalino, nasceu a mística da terra prometida, a cultura das Romarias da Terra, a reforma agrária como sacramento e partido. Dessa cultura se apropriará o MST, unificando política e ideologicamente a imensa variedade de lutas pela terra de todo o Brasil. Será ele a base de afirmação partidária do PT no campo, propondo-se como mediação partidária única da diversidade rural. Assim como teve seu momento de aparente afastamento em relação à Igreja, o MST alarga hoje seu conflito com o próprio PT, sem grandes consequências, porém, já que para o MST o PT é o limite e o governo Lula sabe disso. O MST pode produzir o trovão, mas o dono do raio é o governo.

*José de Souza Martins é professor de sociologia da Faculdade de Filosofia da USP e autor, entre outros títulos, de A Aparição do Demônio na Fábrica (Editora 34)

Obama, responsabilidade e porrete

Fábio Wanderley Reis
DEU NO VALOR ECONÔMICO

Alguns jornalistas ou analistas políticos têm se empenhado em ser os primeiros a mostrar ceticismo diante de Barack Obama e do entusiasmo em torno dele. A meu ver, não cabe dúvida de que se trata de um líder de qualidades intelectuais e pessoais singulares, e elas certamente justificam, por si só, o entusiasmo. Gente agnóstica talvez se indague com estranheza sobre um aspecto particular: a relação dessas qualidades com a intensa e ostensiva religiosidade. Mas há a questão de até que ponto uma carreira político-eleitoral seria possível nos Estados Unidos sem alguma ostentação de religiosidade - o que não significa que haja razões para crer, no caso de Obama, que se trate de algo postiço. De todo modo, a distância em relação ao fundamentalismo cristão bushiano ficou evidente no discurso de posse de terça-feira passada: como notou Nicholas Kristof no "New York Times" ("The Remaking of America", 21/01), não há notícia de um presidente estadunidense no exercício do cargo a cometer a ousadia de manifestar publicamente a visão de pluralismo religioso em relação ao país introduzida de maneira capaz de incluir até os ateus, ao lado de muçulmanos, judeus, hindus...

Seja como for, à parte a sensatez que se espera venha a prevalecer quanto à economia e suas urgências urgentíssimas (cada vez mais, ai de nós), caberia ressaltar alguns planos relacionados que se ligam à força simbólica e aos méritos de Obama. O primeiro, óbvio e mais doméstico, tem a ver com a desigualdade racial e com o acesso dele à Presidência como uma espécie de coroamento das lutas e do longo avanço do país a respeito. Um bom livro recente de Fareed Zakaria ("The Post-American World", 2008), em que o nome de Obama surge apenas em referência passageira ao início da última campanha eleitoral, entrelaça de maneira reveladora a desigualdade como problema com a dinâmica demográfica do país como fator de mudança e trunfo de amplo significado. Por um lado, se, por exemplo, a "melhor indústria" dos Estados Unidos é seu sistema universitário, segue grande a precariedade do sistema educacional básico, com os testes internacionais situando o país em posições medíocres em comparação com países asiáticos e europeus. Ora, a razão está no peso das minorias étnico-raciais mais pobres, relegadas a escolas públicas ruins e sem condições de acesso às universidades, enquanto os estudantes dos distritos escolares dos subúrbios afluentes tendem não só a incluir-se entre os melhores nos testes internacionais, mas também, naturalmente, a ter o caminho aberto às grandes universidades.

Por outro lado, o caráter "demograficamente vibrante" do país (não obstante as dificuldades que têm cercado em tempos recentes a imigração como tema político) o singulariza em confronto com os países europeus e asiáticos, com importantes consequências favoráveis do ponto de vista da relação entre trabalhadores e inativos e das perspectivas para o desenvolvimento econômico. Dá-se, porém, algo análogo, num aspecto importante, ao observado quanto ao acesso educacional: a população branca "nativa" tem as mesmas baixas taxas de fertilidade dos países europeus. E, ironicamente, não só a imigração tem sido decisiva para os maiores níveis de crescimento econômico dos EUA em comparação com a Europa, mas também "a vantagem americana em inovação é esmagadoramente um produto da imigração", com estudantes e imigrantes estrangeiros respondendo, por exemplo, pela metade dos pesquisadores científicos do país.

Se voltamos a Obama, é bem claro o sentido em que ele representa a consequência direta do dinamismo demográfico do país e do que daí decorre em termos culturais - e aqui surge outro dos planos acima anunciados. Ele é em si mesmo, com seu peculiar background ricamente diversificado e cosmopolita (meio africano, meio branco, algo muçulmano, de padrasto e irmã asiáticos etc.), um fruto especial daquele dinamismo. Tendo podido inserir-se no establishment acadêmico do país e equipar-se intelectualmente sem deixar de comprometer-se com o lado "menos igual" de suas origens ou perder as conexões com a diversidade delas, sua postura geral abre perspectivas otimistas quanto ao papel de liderança mundial que qualquer presidente americano se vê destinado a cumprir no mundo dos nossos dias, mesmo se o peso relativo do país é gradualmente solapado. Essa postura, de tolerância pluralista, multilateralismo, responsabilidade e mesmo humildade, tem sido afirmada e reafirmada com ênfase não só em suas palavras de campanha e agora em seu discurso de posse, mas também, em apenas alguns dias no exercício real da Presidência, nas ações adotadas de imediato.

Aqui sim, contudo, há espaço para uma reserva. A menção a Obama feita por Zakaria evoca sua participação em debate, ainda em 2007, e a pergunta aos candidatos sobre como reagiriam a um novo ataque terrorista. Em contraste com a pronta resposta "machona" dos demais, competindo sobre qual seria o mais duro, Obama, começando com resposta matizada e sensata sobre informar-se adequadamente e agir responsavelmente em articulação com aliados, "logo se deu conta de sua vulnerabilidade política e brandiu também ele a devida ameaça retaliatória". Temos visto agora os comentários sobre política externa em que a combinação "inteligente" dos poderes "duro" e "suave" de Joseph Nye, ligados respectivamente sobretudo à força militar e à das idéias e valores, são traduzidos (pelo mesmo Kristof no artigo mencionado) na fórmula cínica de Theodore Roosevelt que recomenda "falar suavemente e carregar um porrete".

Não há, provavelmente, como escapar ao componente de realismo no fatal exercício da liderança mundial pelos Estados Unidos. Esperemos que Obama saiba de fato preservar o equilíbrio e a responsabilidade no recurso a ele.

Fábio Wanderley Reis é cientista político e professor emérito da Universidade Federal de Minas Gerais. Escreve às segundas-feiras

Auxílio-desemprego e "flexisseguridado"

Luiz Carlos Bresser-Pereira
DEU NA FOLHA DE S. PAULO

O aumento do valor e do tempo de cobertura do auxílio-desemprego é urgente no Brasil

AS NOTÍCIAS sobre o aumento do desemprego no Brasil em decorrência da crise econômica global não são surpreendentes, mas são alarmantes. Os trabalhadores brasileiros, inclusive suas classes médias profissionais, devem se preparar para dias difíceis pelo menos neste ano de 2009. Teremos que ter muita competência e alguma sorte para que, em 2010, a economia brasileira já esteja começando a se recuperar.

A demonstração de que não houve surpresa nos números publicados na semana passada está no fato de que, há duas semanas, empresários da Fiesp propuseram a flexibilização das relações de trabalho, e a Força Sindical decidiu aceitar a proposta de negociação. Entretanto, quando as empresas informaram que, mesmo chegando a um acordo, não poderiam garantir o emprego porque não sabiam qual a profundidade da crise, a Força Sindical suspendeu muito compreensivelmente a negociação.

Aqui no Brasil, já no quadro da crise global, talvez o acordo mais interessante a que chegaram empresas e trabalhadores foi aquele celebrado pela Renault do Paraná com seus trabalhadores. Segundo esse acordo feito com o sindicato local, o trabalhador cujo contrato de trabalho for suspenso receberá o auxílio-desemprego. Se, em um exemplo apresentado por Walter Barelli, o funcionário ganhava R$ 680, ele receberá o auxílio-desemprego de R$ 400 e a Renault completa seu salário líquido pagando R$ 280. Essa é uma boa solução para os 1.300 trabalhadores da Renault, mas não creio que poderá ser generalizada.

O que fazer diante desse quadro? Quando as empresas falam em "flexibilização", elas estão falando em redução para elas dos custos trabalhistas de demitir pessoal. Essa é uma demanda clássica das empresas e foi incluída na agenda neoliberal. Neste momento em que ficou claro que o neoliberalismo é o principal responsável pela crise, nossa resposta deverá ser um "não" radical a ela? Diante do grave problema do desemprego, a solução terá que vir do Estado. Dadas as altas taxas de desemprego nos países europeus, a solução encontrada principalmente na Alemanha foi mais radical -a baixa acordada dos salários, o que se explica pela competição dos bens exportados pelos países em desenvolvimento. E, em quase todos os países europeus, porém, a política adotada foi a da "flexisseguridade".

Houve redução dos custos de demissão, mas, em compensação, a outra demanda da ideologia neoliberal -a redução do tamanho do Estado- foi rejeitada. Mais do que rejeitada, foi invertida.

Os países mais avançados da Europa, onde o Estado é democrático-social (independentemente de ser governado por partido social-democrático ou não), decidiram aumentar os impostos e, portanto, o tamanho do Estado, para que ele pudesse arcar com um auxílio-desemprego mais generoso tanto em termos de valor quanto de tempo de cobertura, e também com os custos de retreinamento dos trabalhadores. No Brasil, seria importante que o governo caminhasse rapidamente na mesma direção. Os programas de retreinamento não são prioritários, porque as demissões não decorrem de avanço tecnológico, mas de crise.

Já o aumento do valor e do tempo de cobertura do auxílio-desemprego é urgente, poderá ser um fator anticíclico importante e se constituirá também em uma resposta adequada à responsabilidade que o Estado tem para com seus cidadãos em um quadro econômico tão preocupante quanto é o atual.

Luiz Carlos Bresser-Pereira , 74, professor emérito da Fundação Getulio Vargas, ex-ministro da Fazenda (governo Sarney), da Administração e Reforma do Estado (primeiro governo FHC) e da Ciência e Tecnologia (segundo governo FHC), é autor de "Macroeconomia da Estagnação: Crítica da Ortodoxia Convencional no Brasil pós-1994".

Entrevista: "Comércio deve demitir 40% mais no 1º tri"

Sheila D"Amorim
DEU NA FOLHA DE S. PAULO


Depois de um final de ano dispensando trabalhadores em vez de contratar, como ocorre normalmente, o comércio iniciará 2009 com um aumento de mais de 40% nas demissões. E a situação tende a se agravar em fevereiro e março, segundo Roque Pellizzaro Júnior, presidente da Confederação Nacional de Dirigentes Lojistas (CNDL), entidade que tem 780 mil empresas filiadas. Com estoques até 30 dias além do necessário e a perspectiva de aumento da inadimplência, ele afirma que a tendência é reduzir funcionários e investimentos.

FOLHA -
Ao contrário do que ocorre tradicionalmente, o varejo fechou dezembro demitindo. Em janeiro haverá mais cortes?

ROQUE PELLIZZARO JÚNIOR - Dezembro foi um mês ruim no comércio. Demitimos 15 mil pessoas a mais do que contratamos. Nos últimos três anos, foi a primeira vez que isso aconteceu. Dezembro é o melhor mês para contratações no setor e, historicamente, em janeiro há demissão de temporários. Normalmente, 10% dos recrutados ficam com as vagas. O resto é demitido. Neste ano, a estimativa é que, se as empresas mantiverem 3% dos contratados, será muito.

FOLHA - Quantas pessoas deixarão de ser efetivadas?

PELLIZZARO JÚNIOR - Em janeiro de 2008, o comércio no Brasil todo demitiu 14,1 mil pessoas a mais do que contratou. Todo ano, o setor registra número negativo em janeiro. Em dezembro de 2007, tinham sido contratados 30,1 mil. Então quase metade foi aproveitada. Em dezembro de 2008, já tivemos redução de 15 mil em vez de contratações. Esse já é o nosso grande problema.

FOLHA - Esse é um indicador de ano ruim?

PELLIZZARO JÚNIOR - Em janeiro, sem dúvida, teremos um número de demissões maior. Demitiremos mais do que em janeiro de 2008 porque o aproveitamento dos temporários será pequeno.

FOLHA - Dá para ter uma estimativa?

PELLIZZARO JÚNIOR - Todo ano demitimos de 10 mil a 12 mil em janeiro, com uma absorção bem maior do que a esperada em 2009. Neste ano, não chegaremos a dobrar [as demissões], mas, sem dúvida, será mais de 40% de alta. Só vai ficar na vaga quem se destacar profundamente pela competência.

FOLHA - As demissões iniciadas na indústria influenciarão dispensas no comércio?

PELLIZZARO JÚNIOR - As demissões de novembro e dezembro da indústria serão sentidas no comércio em fevereiro e março. Quem foi demitido agora ainda tem rescisão, seguro-desemprego. Ele consome menos, mas ainda consome. O problema é se ele não conseguir se recolocar logo.

FOLHA - A perspectiva, na sua opinião, é de piora?

PELLIZZARO JÚNIOR - O pior ainda está por vir entre fevereiro e março. Os números de inadimplência estão aumentando, e a nossa perspectiva é a de que ela irá piorar.

FOLHA - E qual a reação do comércio?

PELLIZZARO JÚNIOR - Apertando o crédito, usando o que tem de capital próprio, diminuindo estoque e reduzindo quadro de funcionários e novos investimentos.

FOLHA - O comércio está trabalhando com estoques altos?

PELLIZZARO JÚNIOR - Normalmente, o comércio trabalha com uma média de 60 a 70 dias de estoque. Atualmente, há 30 dias a mais.

FOLHA - Quais segmentos estão em pior situação?

PELLIZZARO JÚNIOR - Todos os que trabalham com valor agregado maior estão com mais problema. Para quem vende, por exemplo, geladeiras de alto padrão, está mais difícil. Nos supermercados, os produtos para as classes D e E têm um giro maior.

FOLHA - As financeiras não voltaram a emprestar?

PELLIZZARO JÚNIOR - Não. Além de enrijecer na seleção, elas não estão emprestando. Essa é a guerra. O governo facilitou o crédito, mas, na ponta, muito pouco é visto.

FOLHA - Das medidas anunciadas pelo governo, quais são para a manutenção do emprego?

PELLIZZARO JÚNIOR - Até agora não vi nenhuma proposta que garanta isso.

Crise reduz arrecadação e afeta planos dos Estados

Leandra Peres
DEU NA FOLHA DE S. PAULO

A crise chegou ao caixa dos Estados e provocou queda de 3,7% na arrecadação do ICMS, principal tributo estadual de R$ 19,727 bilhões para R$ 19,007 bilhões de outubro a novembro. Os repasses constitucionais feitos pela União, outra fonte importante de recursos, subiam num ritmo de 13% ante 2007. Mas, no mês passado, caíram quase 1% na comparação com dezembro do ano anterior.

Arrecadação com o ICMS cai 3,7%

Receita do principal tributo estadual recuou de R$ 19,7 bi em outubro para R$ 19 bi em novembro

Repasses da União tiveram queda de 1% em dezembro de 2008 sobre igual período de 2007; Rio prepara corte de R$ 500 mi no orçamento

A crise financeira internacional chegou ao caixa dos Estados. A arrecadação do ICMS, principal tributo estadual, caiu 3,7% -de R$ 19,727 bilhões em outubro para R$ 19,007 bilhões no mês de novembro.

Os repasses constitucionais feitos pela União, outra fonte importante de recursos, ainda registraram crescimento em dezembro -5,2% em relação a novembro. Mas, quando comparados a dezembro de 2007, há uma queda de quase 1%, o pior resultado do ano.

E os dados preliminares do ICMS de dezembro e janeiro não são animadores. Na Bahia, o imposto caiu cerca de 10% em relação a janeiro de 2008. Em Minas Gerais, o recolhimento em dezembro foi 3% inferior a novembro. No Rio de Janeiro, o corte no orçamento será superior a R$ 500 milhões. No Rio Grande do Sul, as metas de arrecadação não foram alcançadas pela primeira vez no ano em dezembro.

"O Rio de Janeiro abastece alguns insumos para a indústria automotiva e se ressentiu um pouco [da queda nas vendas do setor]. Vamos continuar observando o comportamento da economia. É possível que façamos alguns contingenciamentos", afirma o secretário da Fazenda, Joaquim Levy.

"A crise está chegando. A arrecadação perdeu fôlego nos últimos meses. Já vimos reflexos na indústria do Estado, especialmente de mineração e automóveis. No comércio, é possível que chegue em janeiro", diz o secretário de Fazenda de Minas Gerais, Simão Cirineu.

Na quarta-feira, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva reúne-se com os governadores das regiões Norte e Nordeste, os mais afetados pela queda nos repasses da União. O governo federal quer que os Estados mantenham o ritmo de investimentos para evitar um impacto ainda maior da crise na economia.

"Ainda é cedo para saber a magnitude da perda na arrecadação, mas o cenário de recuperação dos investimentos dos Estados nos próximos dois anos não deve se confirmar", diz o economista do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) Marcelo Piancastelli, que renegociou a dívida dos Estados quando era secretário-adjunto do Tesouro Nacional.

Em São Paulo, de acordo com números do Confaz (Conselho Nacional de Política Fazendária), a arrecadação do ICMS caiu 12,9% em novembro em relação a outubro, mas ainda continuava mais alta do que em 2007. Naquele ano, o Estado recebeu R$ 63,2 bilhões do tributo. Até novembro, já acumulava R$ 69,6 bilhões.

Desaceleração

A queda no ritmo de crescimento das receitas estaduais também se confirma quando a comparação é feita com 2007. O recolhimento do ICMS no ano passado, por exemplo, aumentava em média 16% a cada mês na comparação com os mesmos períodos de 2007. Em novembro, a taxa de crescimento da arrecadação foi a mais baixa de todo o ano: 10% sobre o mesmo mês de 2007.

Apesar de ser um crescimento ainda considerável, essa taxa mostra a velocidade com que os Estados estão sendo afetados.

"Perdemos R$ 40 milhões de arrecadação no setor petroquímico e outros R$ 7 milhões no setor atacadista em dezembro. O comércio está queimando estoque e não compra. Além disso, não houve aumento na demanda de matéria-prima no setor petroquímico, o que para uma cadeia produtiva que responde por 25% do ICMS aqui", afirma o coordenador de tributação da Secretaria de Fazenda da Bahia, Luis Henrique Alexandre.

Repasses

Os repasses feitos pela União foram ainda mais afetados nessa comparação. As transferências aumentavam num ritmo de 13% em relação a 2007. Mas em dezembro de 2008 houve queda de quase 1% na comparação com o mesmo mês do ano anterior, o pior resultado do ano. Ou seja, os Estados receberam menos em dezembro de 2008 do que haviam levado em dezembro de 2007.

"Vamos ter que acabar compensando a queda nos repasses com receita própria", diz o secretário da Fazenda do Rio Grande do Sul, Ricardo Englert. O Estado esperava receber R$ 1,2 bilhão neste ano, mas já estima uma diminuição de R$ 100 milhões.

No Rio Grande do Sul, o sintoma mais claro da crise foi no aumento das empresas que declaram dever ICMS ao Estado, mas não fazem o recolhimento.

Em setembro do ano passado, antes da crise, de cada 100 declarantes, 3,9 não pagavam o imposto. Em dezembro, o percentual dos inadimplentes já havia subido para 5%.

Além de perder com o desaquecimento da economia, que reduzirá o IR (Imposto de Renda), uma das fontes dos repasses aos Estados, os governadores também terão que arcar com parte das desonerações tributárias que a União fez.

As reduções de IPI (Imposto sobre Produtos Industrializados), uma das medidas mais importantes para beneficiar o setor automotivo, reduzem o valor do Fundo de Participação dos Estados, que é composto também por esse tributo.

O secretário de Fazenda de São Paulo, Mauro Ricardo, por meio da assessoria, disse que só falaria sobre o desempenho da arrecadação do Estado após receber os dados do recolhimento setorial do ICMS, cuja divulgação acontece nesta semana.