sexta-feira, 6 de março de 2009

Aliança espúria

EDITORIAL
DEU EM O ESTADO DE S. PAULO

A vitória do senador Fernando Collor (PTB-AL) sobre a senadora Ideli Salvatti (PT-SC), na conquista da presidência de uma das mais importantes Comissões do Senado - a da Infraestrutura, que examina questões ligadas ao Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), maior trunfo político e eleitoral do governo Lula -, causou indignação e revolta nos que viram nisso manobra desleal do PMDB, rompendo a proporcionalidade regimental da representação dos partidos. O senador Aloizio Mercadante, por exemplo, depois de um azedo bate-boca com o líder peemedebista Renan Calheiros (AL), desabafou: "Foi uma aliança espúria que interferiu no direito legítimo e democrático do PT." Não que isso tenha deixado de ocorrer, mas o fato é que "aliança espúria" é a própria estrutura de sustentação político-parlamentar do governo federal, montada à custa do mais fisiológico toma-lá-dá-cá. Quando se imaginaria, há poucos anos, que Sarney, Collor e Lula acabariam politicamente amalgamados em torno da força agregadora de Renan?

O fato de o Partido dos Trabalhadores (PT) ter sido fragorosamente derrotado pelo próprio Planalto, de sua combativa ex-líder ter sido desalojada por manobra conduzida por quem ela defendera, com ênfase solidária (e solitária) em 2007 - quando Renan renunciou à presidência do Senado para não ser cassado -, de o ex-presidente Collor ter recebido os mais rasgados elogios do ministro das Relações Institucionais, José Múcio Monteiro, homem da maior confiança do presidente Lula, tudo isso fica em segundo plano como subproduto do nível ético que prevalece em certos círculos políticos, tão bem descritos nos recentes pronunciamentos do senador Jarbas Vasconcelos (PMDB-PE). Nesse quadro, o Senado tem sofrido um desgaste de imagem não comparável a qualquer outro período de sua existência. E que melhor símbolo haveria, para demonstrar isso, do que o ressurgimento triunfante do ex-presidente Fernando Collor de Mello, nas circunstâncias em que se deu?

Tudo isso são componentes do imbróglio que tem impedido a Casa de iniciar seu funcionamento neste ano - já entrado março, nada foi discutido ou votado -, resultante dos "acertos" - feitos e não cumpridos - para garantir a eleição de Sarney para presidir o Senado.

Quando o ex-presidente (da República e do próprio Senado) José Sarney resolveu entrar na disputa pela direção da Casa, causou a ruptura do acordo anteriormente celebrado entre seu partido, o PMDB, e o PT, em torno do apoio ao candidato petista Tião Viana (AC). Ao mesmo tempo, deixou a ver navios (afundados no Planalto) seu correligionário Garibaldi Alves Filho (PMDB-RN), que nem tivera tempo de usar os cinco ternos novos comprados para exercer a presidência da Casa - cargo em que até surpreendentemente estava se saindo bem, demonstrando alguma independência em relação ao governo -, ninguém, em sã consciência, julgava que o senador maranhense do Amapá impunha sua candidatura apenas pelo prestígio obtido junto a seus pares, em sua longa carreira política. Em obediência à franciscana tradição do "é dando que se recebe", sabia-se muito bem que estavam sendo transacionadas as barganhas que levariam à vitória de Sarney.

Mas é claro que, especialmente numa Casa Legislativa onde não há novatos na política - antes pelo contrário - as cobranças dos acertos haveriam de vir, e fortes. Como houve mais promessas de cargos na Mesa e nas 11 Comissões temáticas do Senado do que a quantidade real desses cargos, alguns senadores e bancadas partidárias, que apoiaram Sarney em troca das promessas, sobraram. E veio o pandemônio, pois no Senado não vigora o costume de se deixar barato o prometido e não cumprido.

Logo de saída, "rifou-se" o senador Garibaldi Alves Filho, a quem havia sido prometida a presidência da Comissão de Assuntos Econômicos - para dá-la ao PT -, sendo-lhe oferecida, como prêmio de consolação, a Comissão Mista de Orçamento. Mas ele rejeitou o arranjo: "Estou me sentindo como marido traído, sou o último a saber." Não estava sozinho nessa incômoda posição, como viria a constatar a ex-líder do PT Ideli Salvatti, atropelada pelo rolo compressor dirigido por Renan Calheiros, o novo condestável do Senado.

Tocando violino

Merval Pereira
DEU EM O GLOBO


É conhecida a máxima política que diz que governar é como tocar violino: a gente pega com a esquerda e toca com a direita. Radomiro Tomic, líder da ala mais progressista e um dos fundadores da Democracia Cristã chilena nos anos 60 e 70, dizia que "quando a esquerda se alia com a direita, é esta quem governa". É o que está acontecendo na prática no governo Lula, cuja coligação partidária tem hoje a clara liderança do PMDB, em detrimento da influência política do PT. O PMDB, que esteve envolvido apenas perifericamente no escândalo do mensalão porque não tinha tanto poder como hoje no primeiro governo Lula, criou seu próprio modelo de exercício do poder e cada vez mais se impõe, como mostram os acordos políticos que fechou para a eleição do senador José Sarney à presidência do Senado e que culminaram com partidos como o PTB e o PR recebendo comissões importantes no Senado sem que o PT pudesse evitar.

De certa maneira, o PMDB está liderando uma revolta interna dentro da base aliada do governo que só não resultará em uma candidatura própria porque o partido não tem um nome popular para apresentar.

O ex-deputado Roberto Jefferson dizia, na época do mensalão, que o chamado núcleo duro do governo identificava nos partidos aliados uma "burguesia corrupta, legendas prostitutas, que se alugam", e tinha razão.

Foi esse estado de espírito petista que impediu que fosse feito acordo com o PMDB no primeiro Ministério, partido repudiado pelo próprio Lula, e que mais tarde resultaria no mensalão, supostamente uma maneira de se obter maioria congressual sem ter que dividir o poder de fato com as "legendas-prostitutas".

O PMDB saiu da eleição de 2006 com força política renovada, e consolidou-se nas eleições municipais do ano passado, tornando-se o centro da coalizão governamental, dominando as duas Casas do Congresso.

Lula, desde que se descolou do petismo para viver a experiência única do lulismo, de ser um líder político acima dos partidos, com recorde de popularidade nunca antes registrado, descobriu também que apenas precisa manter o PMDB dentro de seu governo, aceitando todas as suas exigências, para ter condições de eleger seu sucessor.

E só por um resquício de pudor escolheu dentro dos quadros petistas a candidata na ministra Dilma Rousseff, mesmo sendo ela uma inexperiente na arte de colher votos e uma novata no petismo, vinda do PDT de Brizola.

Como o petismo não tem candidato relevante, embora a popularidade de Lula pudesse alavancar qualquer candidatura, por mais pesada que fosse, ele escolheu símbolos: uma mulher e o PAC, o programa de obras públicas que não existe, mas é um achado de marketing, ainda mais em tempos de crise econômica.

O investimento do governo federal não cresceu nada com a criação do PAC, continua na base de 1% do PIB, mas havia a previsão de que a iniciativa privada retomaria seus investimentos diante do crescimento da economia brasileira. Com o advento da crise, essa premissa já não existe mais, mas o PAC permanece como eficiente propaganda do governo, que inaugura mais pedras fundamentais do que obras verdadeiras, vende expectativas de empregos e desenvolvimento.

O presidente Lula está, a esta altura de seu mandato, pouco se lixando se o PT vem sendo passado para trás dentro da coligação governamental, desde que a coligação se mantenha unida.

Se Dilma não deslanchar como candidata à Presidência, poderá ser substituída por outro petista, ou poderá mesmo vingar a tese do deputado Ciro Gomes, que voltou à cena política reivindicando um papel na sucessão, mesmo sendo subsidiário. Confiante em que tem um recall político que vale de 15 a 20 pontos para começar nas pesquisas, Ciro só não quer que Lula escolha Dilma como sua única candidata oficial.

Se houver mais de um candidato governista na disputa, são maiores as chances de um deles ganhar, raciocina Ciro, para quem Lula não teria vencido no segundo turno em 2002 se ele e Garotinho não estivessem no páreo.

O problema é que Lula sabe que, se abrir a porteira, Dilma será "cristianizada" na primeira curva da corrida presidencial, pois não tem nem apoio político dentro dos partidos aliados, nem experiência eleitoral para ser colocada na raia sem a chancela de ser a única candidata do presidente.

O apoio a esse projeto ficará cada vez mais caro, e já começam a surgir setores importantes do próprio PT, como o ex-ministro José Dirceu, que admitem que a ministra Dilma possa não ser mesmo a única candidata governista.

Mas há momentos em que Lula fica tentado a tocar violino com a mão esquerda. Mesmo tendo uma base partidária com forte representação de centro-direita, a crise econômica internacional está levando a oratória do governo Lula cada vez mais para a esquerda, na ilusão de que a maior atuação dos governos nos Estados Unidos e na Europa pode significar uma tendência socializante no mundo.

Ontem, ele deu um passo a mais nessa direção defendendo a estatização dos bancos em dificuldades e o papel fundamental dos governos para a recuperação da economia mundial. Cada vez que se fala em estatização dos bancos, as bolsas mundiais despencam.

O próprio presidente Barack Obama, considerado pelos republicanos como um socialista, descarta essa possibilidade. E os governos europeus que estatizam os bancos se apressam em avisar que eles serão privatizados assim que saneados.

Há uma distância enorme entre a base conservadora e de direita que apoia pragmaticamente o governo Lula, e um programa de governo socializante. A nível internacional, a cada passo que coloque Lula mais perto de Hugo Chávez ou Evo Morales, mais seu prestígio perderá força.

Um dia a casa cai

Dora Kramer
DEU EM O ESTADO DE S. PAULO

A avaliação é do Palácio do Planalto: para bom andamento dos projetos do PAC no Senado é ótimo ter Fernando Collor na presidência da Comissão de Infraestrutura; trabalhará mais afinado com a ministra Dilma Rousseff, que a líder do PT na Casa, Ideli Salvatti, derrotada na disputa.

Para o ministro das Relações Institucionais, José Múcio Monteiro, a escolha de Collor "veio em boa hora". Resta esclarecer "boa" para quê.

Tirando a clara descortesia para com a fidelíssima Ideli - cuja eleição, depreende-se, teria vindo em mau momento - tudo o mais é obscuro naquela declaração.

Sob a ótica da harmonia na base governista, a comemoração do ministro Múcio alimenta o dissenso; do ponto de vista do respeito às formalidades, revela apreço pelo atropelo do regimento e avaliza o critério de distribuição de sesmarias; sob o aspecto das relações com o Executivo, os vários exemplos do uso pragmático que o PMDB faz de cargos estratégicos não justificam celebrações no Planalto, presa fácil da chantagem.

Fernando Collor é do PTB, partido do ministro Múcio (eis!), mas foi feito presidente da comissão por Renan Calheiros, líder do PMDB, que assim não apenas pagou o voto em José Sarney para a presidência do Senado como assegurou a presença de um preposto na comissão das obras que são também o slogan da sucessão presidencial.

Tal cenário pode por ser considerado como algo próximo de uma "boa hora" para o governo?

Depende de quem analisa; se aliado, adversário ou usuário.

A situação, na percepção de um correligionário, o senador Aloizio Mercadante, é resumida em duas palavras: "aliança espúria". Um espanto.

Não que o PT se assuste com essas coisas. Já viu, e participou, de piores.

A própria Ideli Salvatti transitou com bastante desenvoltura na área quando integrou a tropa em defesa do direito de Renan Calheiros ter despesas pessoais pagas por um lobista, afrontar o decoro para se manter na presidência do Senado e apresentar documentos fraudulentos aos seus pares.

Em matéria de alianças espúrias, atropelo de regras, malversação da boa-fé pública e espertezas ignominiosas não há querubins no Parlamento.

Mas, nunca antes desde a opção preferencial do presidente Luiz Inácio da Silva pelo PMDB ao molde do cheque em branco para uso ilimitado, se ouvira uma desqualificação tão explícita do PT ao fiador da governabilidade petista.

Contrariando posições do presidente da República, que, pelo jeito desabrido de seu ministro das Relações Institucionais, vê tudo com muita naturalidade, inclusive o retorno da República de Alagoas ao topo.

Renan Calheiros sempre mereceu dele a presunção da inocência contra todas as evidências e Fernando Collor, recebido em palácio, ganhou de Lula a certeza de que faria um "mandato extraordinário".

O presidente segue no papel de equilibrista, mas seus dois sustentáculos partidários se afastam já sem pejo de disfarçar. Na Bahia, quase vão aos tapas; em São Paulo é certo que brincarão o carnaval de 2010 separados; no Rio Grande do Sul são como água e óleo; no Rio de Janeiro o governador Sérgio Cabral ri e o PT local não acha a menor graça.

Engalfinharam-se pela presidência do Senado e agora brigam por causa de Fernando Collor de Mello, cuja presença em cena fala por si. Tanto quanto a imagem do ex-diretor-geral Agaciel Maia sendo carregado em triunfo na despedida, depois de revelada a posse de patrimônio incompatível com sua renda.

Abstraindo-se as manobras para elegê-lo, nada há de especial no fato de Collor presidir uma comissão. É senador, foi recebido com homenagens por seus pares, em tese pode até presidir a Casa. Ele não é causa, é consequência da degradação geral dos costumes.

Quando Lula justifica a escolha de Collor por ser fruto do acordo que elegeu Sarney, usa a própria régua. Se é normal escancarar o aparelho de Estado em troca de votos no Congresso, natural que se distribuam o comando de comissões de trabalho no Parlamento pelo mesmo critério.

Quem pode o mais, pode o menos.

Fogo inimigo

O governador de Minas, Aécio Neves, obviamente não é fiador da ladina ofensiva deflagrada por gente que se diz sua aliada, contra posições críticas ou meramente não engajadas à sua candidatura a presidente.

Certamente Aécio não avaliza a voz corrente da difamação contra quem se dispõe a analisar criticamente seus movimentos políticos.

Movido por provincianismo, sabujice, amizade pessoal ou afinidade de resultados, esse pessoal causa mais dano ao governador que qualquer disputa partidária ou noticiário severo.

Aécio notabiliza-se pela habilidade e fidalguia no trato. É por isso reconhecido. Mas se não desautorizá-los o quanto antes, seus áulicos terminarão por construir dele uma imagem negativa, obrigando-o a pagar publicamente a conta de urdidas executadas, por ora, sob a proteção do anonimato.

Capitanias hereditárias

Chico Santos
DEU NO VALOR ECONÔMICO


A gana com que o PMDB, ou um dos seus tentáculos, decidiu investir sobre o fundo de pensão dos empregados de Furnas (Real Grandeza) remete a uma velha e perniciosa prática da cultura política brasileira, a de confundir deliberadamente os limites entre o público e o privado. Talvez tudo tenha nascido lá por 1534, quando da decisão colonial portuguesa de dividir o país em capitanias hereditárias.

Na capitania, o donatário era ao mesmo tempo o público e o privado. O governo-geral (1548) se sobrepôs a ela, mas o mal já estava instalado. Ficou no brasileiro que chega ao poder um vírus, ainda não devidamente controlado pelas vacinas da ética e da cidadania. Ele tende a desenvolver um mal que faz o "doente" confundir as obrigações resultantes desse poder com o direito de avançar sobre o patrimônio que lhe é dado a gerir. Casos históricos não faltam e o dos bancos estaduais é emblemático.

Eles foram por muito tempo uma dor de cabeça nacional. Nasceram para dar suporte ao desenvolvimento local, mas, no geral, o que se viu foram gestões políticas, renovadas ao sabor das (saudáveis) trocas de poder, que privilegiaram tudo, menos as boas práticas de prudência bancária. Não raro, trajetórias salpicadas de escândalos.

Quando o Plano Real acabou com os ganhos inflacionários originários da aplicação dos depósitos dos correntistas, a situação desses bancos ficou insustentável. Sopravam os ventos privatistas e o clima favoreceu a que o governo federal estimulasse uma solução drástica para o problema, não sem custos consideráveis.

O Programa de Incentivo à Redução da Presença do Setor Público Estadual na Atividade Financeira e Bancária (Proes), criado em 1996, consumiu mais de R$ 50 bilhões de recursos públicos no esforço para sanear e vender os bancos estaduais. Como o programa era voluntário, nem todo mundo embarcou, embora os maiores, como o Banespa, o Banerj e o Bemge tenham passado à história.

O aperfeiçoamento dos controles pelo Banco Central (BC) melhorou a gestão nos bancos estaduais que restaram, embora exemplos, como o do Banestes (ES) em 2002, revelem que as coisas ainda dependem do efeito das vacinas sobre o gestor de plantão.

O caso dos fundos de pensão tem um aspecto que o diferencia das histórias de avanço político sobre recursos públicos: é o chamado "efeito Denorex". O dinheiro deles parece, mas não é público. Pertence aos participantes, ativos, inativos ou pensionistas, de cada fundo. Daí, não caber a solução de privatizar, como coube aos bancos estaduais e a muitas empresas estatais, e que ainda pode caber a outras, sem entrar aqui no mérito de todas as privatizações passadas. O caminho para os fundos de pensão é aumentar neles o poder dos seus donos, a regulação e a fiscalização sobre os gestores.

E é neste rumo que vem caminhando a história recente dos fundos de pensão fechados (criados para um público específico, geralmente os empregados de uma ou mais empresas), uma poderosa indústria que, segundo os dados mais recentes da Associação Brasileira de Entidades Fechadas de Previdência Privada (Abrapp), dispõe de R$ 415 bilhões para investir (cerca de 17% do PIB brasileiro), distribuídos por mais de 350 fundações.

Após sucessivos escândalos e três espumosas Comissões Parlamentares de Inquérito (CPIs) em 13 anos, a última (do mensalão) há pouco mais de três anos, o setor passou por aperfeiçoamentos que melhoraram em muito a governança dos fundos. Especialmente, o caso que aqui nos interessa, os fundos das estatais.

A Lei nº 6.435, primeira a regular o setor, preocupava-se mais com os direitos dos beneficiários e quase nada com a governança. Casos até anedóticos que aconteceram, como a compra de túmulos pela fundação dos empregados da Light (Braslight), resultaram em aperfeiçoamentos, como a imposição de limites de aplicações pelo Conselho Monetário Nacional (CMN).

Mas foi somente em 2001, com as leis complementares 108 e 109, que foi atacado de verdade o direito dos participantes a terem maior controle sobre seus recursos em relação às patrocinadoras e, no caso das estatais, em relação aos governos e aos partidos no poder. Foram criados conselhos deliberativos, paritários, compostos por seis membros, três escolhidos pelos participantes e três indicados pelas patrocinadoras.

Os conselheiros definem as políticas das entidades, nomeiam a diretoria executiva e, entre outras coisas, não são demissíveis, exceto por condenação judicial transitada em julgado ou por processo administrativo-disciplinar. Têm quatro anos de mandato.

O presidente do conselho tem o voto de minerva e deve, obrigatoriamente, ser indicados pelas patrocinadoras. Aqui há um aperfeiçoamento a fazer para reduzir ainda mais o risco de manipulação política. O voto de minerva como está, ainda garante o controle da patrocinadora sobre o dinheiro que é dos seus empregados.

A diretoria da Real Grandeza só não foi demitida à revelia dos participantes por uma nuance do seu regimento interno. Uma saída global seria a legislação estabelecer, como já ocorre nas sociedades anônimas mais bem governadas, que questões essenciais exigiriam o voto da maioria.

A regulação e fiscalização do setor, feita hoje pela Secretaria de Previdência Complementar (SPC) do Ministério da Previdência, também vai passar por aperfeiçoamentos. O deputado federal Chico D"Angelo (PT-RJ) promete entregar até a próxima semana à Comissão de Seguridade Social e Família da Câmara seu relatório sobre o projeto do governo de criação da Superintendência Nacional de Previdência Complementar (Previc), criada por medida provisória em 2004 e morta no Senado três meses depois.

Será uma autarquia com recursos próprios (uma taxa sobre o setor), funcionário concursados, mais auditores e uma diretoria técnica e ilibada (aqui que mora o perigo) a ser indicada pelo governo. O projeto não prevê, mas o deputado está inclinado a sugerir que os diretores tenham mandatos fixos. Ele acha que o mandato dá "uma certa estabilidade". Mas não acha que, neste momento, seja o caso de criar a Previc como uma agência independente do Ministério da Previdência, o que seria um passo adiante.

Chico Santos é repórter da Sucursal do Rio.

Crise e Nordeste

Cristovam Buarque
DEU NO JORNAL DO COMMERCIO (PE)

O Brasil e o mundo começam a enfrentar a crise atual com base nos velhos esquemas elaborados por Keynes, no final dos anos 1920, a começar pelo diagnóstico: os bancos deixam de financiar as compras, as fábricas deixam de fabricar, demitem trabalhadores porque as pessoas estão sem dinheiro, as demissões reduzem ainda mais o dinheiro nas mãos das pessoas e as demissões aumentam. Forma-se um círculo vicioso. Para quebrá-lo, os governos começam a injetar dinheiro no mercado, substituindo bancos e fábricas na geração de emprego. O resultado esperado é que, aumentando as compras, voltarão os empregos e a crise será superada, mesmo que a custo de aumento no déficit público, redução de investimentos sociais e risco de inflação.

O Brasil optou por diminuir impostos sobre a venda de automóveis e injetar dinheiro nos bancos para continuarem o financiamento de automóveis. Mesmo que isso dê certo, haverá perda de recursos públicos. Além disso, os governos terão de investir mais na infraestrutura urbana para que os automóveis possam circular, sacrificando assim investimentos sociais.

Os resultados positivos também ficarão limitados às áreas ricas do País, tanto geograficamente – onde os carros são fabricados –, quanto socialmente – onde vivem os compradores dos carros. O Nordeste ficará apenas com efeitos secundários. Entretanto, é possível buscar uma alternativa, na qual investimentos públicos sejam usados para empregar a população pobre, para que ela produza os bens e serviços de que necessita para sair da pobreza. Ao mesmo tempo, seus salários são usados para dinamizar a demanda, e com isso promover o aumento da produção e do emprego. Em vez de usar recursos públicos para financiar a compra de carros privados para as classes médias e ricas, usá-lo para comprar ambulâncias, ônibus, transporte escolar. Neste caso, o Nordeste poderia ser beneficiado, não pela produção dos veículos, mas pelo uso deles.

Mais ainda, a crise poderia ser a oportunidade para financiar uma revolução educacional na região. A construção e a reforma de escolas e a aquisição de equipamento teriam um impacto imediato na geração de empregos, e ao mesmo tempo trariam uma melhoria na qualidade da educação. Um aumento significativo do salário dos professores e demais servidores das escolas aumentaria a demanda por produtos industriais. Além do impacto conjuntural na economia, haveria um impacto na educação e, em consequência, em toda a sociedade, permanentemente.
Um programa para a erradicação do analfabetismo, além de trazer a decência social, empregaria um número elevado de pessoas, criando renda e aumentando a demanda sobre o setor produtivo.

O Nordeste tem hoje seis milhões de adultos analfabetos, uma proporção de 27,5%. Para erradicar essa tragédia em quatro anos, seria necessário contratar 75 mil alfabetizadores, além de outras 3,5 mil pessoas para apoio logístico, incluindo os que preparariam os jovens e adultos com o conhecimento suficiente para se tornarem alfabetizadores. Um salário médio de R$ 350 por 10 horas de trabalho por semana, para esses professores, significaria um fluxo de R$ 320 milhões anuais, ou R$ 1,2 bilhão ao longo de quatro anos.

Essa é uma saída que o Nordeste deveria defender para todo o País, e que erradicaria o analfabetismo de 16 milhões de brasileiros jovens e adultos. Mas, principalmente na região que, além de ser a maior afetada pela tragédia, é também a que menos se beneficiará das propostas tradicionais agora empregadas para enfrentar a crise.

» Cristovam Buarque é senador da República (PDT/DF)

Banal festival

Luiz Garcia
DEU EM O GLOBO


Corrupção, sempre existiu na vida pública. O tema principal das denúncias do senador Jarbas Vasconcelos não é este ou aquele escândalo. Sua indignação, como deixou claro na tarde de terça-feira, é dedicada à banalização da desonestidade.

Como disse, na imagem feliz, o senador Cristovam Buarque: a corrupção virou paisagem: "O povo passa, vê, e sente nojo. Mas nós fingimos que ela não existe."

Se vale o retrospecto, fingir que ela não existe tem funcionado muito bem até hoje para os diretamente interessados. Fernando Collor saiu, corrido e correndo, do governo, e foi o que lhe bastou para escapar do processo penal. Fez-se de morto por alguns anos e está de volta ao cardume dos peixes graúdos com uma cadeira de senador, presente de desmemoriados eleitores alagoanos.

É verdade que os réus do maior escândalo, até agora, do governo petista respondem a processo no Supremo Tribunal Federal. Uma ação judicial notável tanto pela quantidade de acusados como pelo exemplo raro que representa.

Talvez pensando devido a essa raridade, Jarbas apresentou propostas antiladroagem, como um plano nacional anticorrupção e um movimento de combate à corrupção eleitoral.

São belas ideias. O problema é que só podem sair do papel com adesão sólida e entusiasmada da classe política e do governo. Na opinião de muita gente boa, seria algo como pedir à raposa que ajude a reforçar a porta do galinheiro. É significativo, a propósito, que as sugestões do senador foram, como ele disse, pinçadas do programa de governo do PT - que as esqueceu logo depois das eleições de 2002.

Entre os políticos atingidos, as acusações de Jarbas causaram uma variedade interessante de reações - de apelos e lamentações a grunhidos e rugidos.

Para alguns, a melhor tática foi simplesmente tapar os ouvidos. Ou imitar José Sarney, presidente do Senado e um dos alvos das acusações de Jarbas. Ele simplesmente abandonou o plenário antes do discurso de terça-feira. Não por falta de coragem para enfrentar entreveros políticos - Sarney, com certeza, não tem esse tipo de fraqueza. Mas, e talvez pior, por confiar que não valia a pena, por desnecessário, brigar com tempestades, principalmente as verbais. Há precedentes que lhe dão razão.

Quanto à opinião pública, desde o escândalo dos mensaleiros ela tem sido suficientemente informada sobre usos e abusos do poder na administração petista. E a popularidade de Lula não parece ser afetada em qualquer grau pela repercussão dos escândalos.

Em parte, isso talvez tenha a ver com o fenômeno da banalização da corrupção.

Pode estar aí uma das razões para se aplaudir a santa indignação de Jarbas Vasconcelos. O regime democrático nunca é absolutamente imune à ladroagem - mas, para evitar que os próprios cidadãos honestos comecem a vê-la como natural e inevitável, é sempre boa ideia algum graúdo gritar "pega ladrão!" de vez em quando.

Quanto mais não seja, só para ver quem sai correndo.

Alianças espúrias

Eliane Cantanhêde
DEU NA FOLHA DE S. PAULO


BRASÍLIA - O petista Tião Viana levou uma rasteira e perdeu a presidência do Senado para o peemedebista José Sarney, e a petista Ideli Salvatti agora leva outra e perde a presidência da Comissão de Infraestrutura para o petebista Fernando Collor. Sim, esse mesmo. Tião e Ideli, bem-vindos ao clube dos petistas que "caíram", uns mais, outros menos, por motivos variados: Dirceu, Palocci, Genoino, Mercadante, Jorge Viana, Marina Silva, Marta, João Paulo Cunha, além de operadores como Delúbio Soares.

A diferença é que Tião e Ideli foram detonados pela "base aliada", hoje sinônimo de Sarney-Renan no Senado e de "grupo dos 8" na Câmara: Temer, Geddel (emprestado a um ministério), Jader Barbalho, Henrique Eduardo Alves, Fernando Diniz, Eliseu Padilha, Eunício Oliveira e Eduardo Cunha, a estrela em ascensão.

A verdade, nua e crua, é que o PT não manda mais nada, e o PMDB manda cada vez mais. E essa gangorra coincide com os interesses e expectativas de Lula. Para o presidente, que terá o apoio do PT, chova ou faça sol, apresente Dilma, José ou João para 2010, um petista magoado ou humilhado a mais ou a menos não faz diferença. Mas qualquer peemedebista descontente ou desatendido faz muita diferença.

E começa a contaminação em outros aliados, como ficou evidente na reestreia de Ciro Gomes na cena nacional. Ele marretar o ex-correligionário José Serra não é nenhuma novidade. Mas, quando marreta o governo e o apoio a Dilma, aí, sim, há uma novidade. Ciro fala por boa parte do PSB e repete o discurso e o rumo do PC do B e do PDT.

Todos somados, ainda não são tão abrasivos quanto um só Aécio para a candidatura Serra, mas mostram que a guerra de 2010 será sangrenta e pulverizada dos dois lados. Quando Mercadante chia da "aliança espúria" entre Renan e Collor, comete um grave erro. Esquece que o PT é tão parte quanto vítima dela. Como, aliás, é ele próprio.

A farinha cresceu, o saco é o mesmo

Clóvis Rossi
DEU NA FOLHA DE S. PAULO


SÃO PAULO - Cheguei, por uns dois segundos, a ficar com imensa peninha do senador Fernando Collor de Mello (PTB-AL) ao ler a defesa que o ministro das Relações Institucionais, José Múcio Monteiro, fez da eleição de Collor para presidir a Comissão de Infraestrutura do Senado: "Depois de todos os episódios que ele viveu e sofreu, passando muitos anos sem ter uma posição de destaque, acho que a eleição chega em boa hora".

Coitadinho, não? Algum desavisado pode até pensar que ficou "sem uma posição de destaque" por algum expurgo, perseguição da ditadura (que, aliás, ele apoiou até o fim) ou algo parecido.

Mas a peninha durou o tempo suficiente para lembrar que José Múcio é do mesmo time de Collor (o PTB), além de ter o mesmo DNA político, o velho coronelismo. É até usineiro, a categoria que foi a principal financiadora das aventuras de Collor.

Logo em seguida, me lembrei de que usineiro, agora, é "herói", segundo o presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Pode até haver heróis entre eles, não sei. Mas boa parte não passa de uma das mais reacionárias forças políticas e empresariais, ávida permanentemente pelas benesses do poder. Mas, se são "heróis" para o chefão, como seu ministro deixaria passar a ocasião de festejar a eleição de tão nobre correligionário? Aí vem o senador Aloizio Mercadante com a "aliança espúria" [com Renan Calheiros] que teria sido responsável pela eleição de Collor. Ué, não são ambos, como Mercadante, da base aliada?

Espúria foi a formação dessa base, nos termos que constam dos autos de processo em andamento no STF. Mas Mercadante calou-se a esse respeito. São, portanto, farinha do mesmo saco, como o PT adorava chamar os demais partidos antes de mergulhar -e lambuzar-se- nesse mesmo saco.

De Marx a Collor, uma trajetória

Chico de Gois e Gerson Camarotti
DEU EM O GLOBO

Com citações ao Manifesto Comunista, o presidente Lula defendeu a estatização dos bancos e disse que a crise revela o crepúsculo da ideologia neoliberal. Pouco depois, em entrevista, afirmou que o cargo dado a Collor no Senado não deve surpreender ninguém, pois fez parte de um acordo para eleger Sarney

Lula justifica "boa salada"

Presidente diz que eleição de Collor foi fruto de acordo com Sarney e critica o PT

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva justificou ontem a eleição de Fernando Collor (PTB-AL) para a presidência da Comissão de Infraestrutura do Senado como parte do acordo partidário feito para a eleição de José Sarney (PMDB-AP) presidente da Casa. Lula disse que não se surpreendeu com o resultado, que derrotou a petista Ideli Salvatti (SC). Sugeriu ainda que o PT não tem condições de dizer que, pela regra da proporcionalidade, essa comissão deveria ficar com os petistas, uma vez que o partido não considerou esse critério ao lançar Tião Viana (AC) para disputar a presidência do Senado com o PMDB - que teria o direito, pelo mesmo critério da proporcionalidade, pois é a maior bancada nas duas Casas do Congresso.

- O PT tinha direito (à comissão) se a proporcionalidade tivesse sido respeitada desde o começo. Não foi. Vivendo e aprendendo. E fazer disso uma boa salada - disse Lula, após a abertura do Seminário Internacional sobre o Desenvolvimento, realizada pelo Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social (CDES), sem considerar que ele próprio defendeu, no início, a candidatura de Viana, abandonando-a depois em favor de Sarney.

Perguntado se foi surpreendido com a volta do ex-adversário político a um posto de comando, Lula disse:

- Os votos que elegeram o Collor foram os votos que elegeram o Sarney. Não vejo isso com surpresa, não.

Collor foi eleito graças ao empenho do líder do PMDB, Renan Calheiros (AL), que retribuiu o apoio dele e de seu partido, o PTB, à candidatura Sarney. Lula preferiu não se manifestar sobre a disputa entre PMDB e PT. Renan trocou três senadores que votariam em Ideli por aliados fiéis, que escolheram Collor. O resultado foi 13 a 10 a favor do petebista. O líder petista, Aloizio Mercadante (SP), classificou de "espúria" a aliança entre o PMDB e o PTB de Collor, reclamando que, pela tradição da Casa, deveria ser obedecida a indicação do PT, que tem bancada maior do que a do PTB.

Poder no Senado preocupa a Planalto

As declarações só confirmaram as suspeitas petistas de que o Planalto avalizou a eleição de Collor. Setores do PT já estavam irritados desde a véspera, quando diziam que não houve esforços em favor de Ideli, que tantos serviços prestara ao governo como líder da bancada petista nos últimos anos. O ministro das Relações Institucionais, José Múcio, comemorou a eleição de Collor, a quem classificou de um homem "experiente".

Mesmo com a insatisfação de companheiros do PT, Lula tentou demonstrar ontem, na entrevista, que a disputa entre PT e PMDB não deve provocar fissuras para a base aliada e não atrapalhará a votação de projetos de interesse do governo na Casa. Mas, nos bastidores, há preocupação com o embate, que se estende há mais de um mês. As declarações de ontem foram uma tentativa de amenizar o clima, com recados para os dois lados: contestou o alegado direito do PT e evidenciou a aliança Collor-Sarney.

Ainda que resolva essa briga entre PMDB e PT, o Planalto não está tranquilo com a nova distribuição de poder no Senado. É considerado fator de risco deixar o comando da poderosa Comissão de Infraestrutura com Collor, aliado recente com baixo nível de confiabilidade. Também há receio com o comportamento bélico de Renan. Mas comprar briga contra a eleição de Collor poderia sair mais caro: estaria desautorizando Sarney, o grande aliado de Lula no Congresso.

Lula tem evitado conflitos diretos com o PMDB, mesmo que isso prejudique o PT. E deve manter esse comportamento - pelo menos até que assegure o apoio formal do PMDB a sua presidenciável, Dilma Rousseff.

Colaborou: Adriana Vasconcelos

A ótima avaliação de Lula

Alberto Carlos Almeida
DEU NO VALOR ECONÔMICO


Causaram espécie em pessoas que acompanham o quadro político nacional os resultados da última pesquisa CNT/Sensus. Feita no final de janeiro, a pesquisa detectou aumento da popularidade do presidente. A estranheza inicial deveu-se, tão-somente, ao fato de o resultado não corresponder às expectativas. Diante de um noticiário francamente negativo, no qual o tema principal é a crise econômica, esperava-se que Lula perdesse pontos na soma de sua avaliação "ótimo" e "bom". Ao contrário, Lula foi mais bem avaliado do que na pesquisa anterior. O que estava errado, as expectativas ou a pesquisa?

Certamente, as expectativas estavam erradas. A primeira fonte desse erro é que nós, brasileiros, ao contrário dos americanos, não temos estatísticas para tudo. Assim, muito dificilmente teremos condições de afirmar que para uma queda de X por cento no crescimento econômico tem-se uma redução de Y na avaliação positiva do governo. O nosso conhecimento vai até o conceitual, mas não avança no estatístico. Sabemos que uma crise aguda afeta negativamente a avaliação do governo. Não sabemos quanto nem quando.

O "quando" é tão fundamental quanto o "quanto". Ainda que tivéssemos condições de estimar o porcentual da redução da popularidade de Lula, que tende a ocorrer, não saberíamos dizer nada sobre o ritmo da queda. Muitos são os fenômenos políticos e econômicos que sofrem da chamada defasagem ("lag", em inglês). Para os estatísticos e econometristas, particularmente os especialistas em séries temporais ("time series"), é algo corrente incorporar em suas análises uma defasagem de um, dois ou três meses.

Assim, pergunta-se, qual é a defasagem da redução da popularidade presidencial em razão de uma parada repentina ("sudden stop") no crescimento econômico?

Além do mais, ainda que tivéssemos essas duas respostas, a da magnitude e a do ritmo da queda, provavelmente não poderíamos dizer nada sobre este caso específico, o caso de uma das mais agudas crises financeiras mundiais, algo mais que excepcional. Os modelos estatísticos funcionam entre determinados limites. Quando tais limites são ultrapassados, é preciso mudar os modelos. A crise atual, considerando-se apenas seus aspectos financeiros e econômicos, está fora de qualquer padrão de crise ocorrida no passado. Ademais, não se faz modelo com apenas um caso.

Para dificultar mais ainda nossa capacidade de previsão, a popularidade de Lula já está há algum tempo em níveis muito elevados. Há analistas que afirmam que o nível é tão alto que uma queda na atividade econômica, mesmo acentuada, muito dificilmente afetaria a avaliação do presidente. Essa afirmação é contrária à pseudoteoria da fadiga de material. Segundo ela, os governos sofrem de fadiga no segundo mandato. Por quê? Simplesmente porque estão no segundo mandato. É um argumento baseado em algo "natural" - é natural que quanto mais longo o mandato, maiores são as chances de fadiga. Isso não estaria acontecendo com Lula.

Haveria uma maneira de não cair na vala comum da chamada fadiga de material: por meio de um fenômeno e, para tais analistas, Lula é um fenômeno. Tenho insistido nesta coluna que o pré-capitalismo brasileiro, um fenômeno sistêmico que prejudica todos, leva-nos a acreditar em explicações e soluções mágicas.

A violência urbana teria uma solução mágica e ela pode ser encontrada na Colômbia. Daí as inúmeras comitivas que visitam os dois países tentando instituir no Brasil a mágica adotada por lá. A crise do transporte público brasileiro tem uma saída mágica, o que falta é vontade política para executá-la. Lula é um personagem mágico, por isso a sua força entre a população mais pobre. Ele é um fenômeno.

Nada disso, não há mágica. Não há fenômeno. O crime é reduzido, como vem mostrando sistematicamente o economista Aluisio Araújo, por meio de uma política pública consistente que investiga, julga e condena as pessoas envolvidas no crime. Aumente-se a população carcerária e o crime será reduzido no curto prazo. Não é necessário ir à Colômbia para que isso seja constatado. Basta que sejam analisados os dados existentes no Brasil. No longo prazo o crime é combatido por meio de políticas de renda e sociais que ampliem a classe média vis-à-vis ricos e pobres. Quanto maior o peso relativo da classe média, menor o crime.

O que não dizer, então, das soluções para os engarrafamentos? São lentas e custosas. Muitas também podem ser impopulares. Em qualquer uma, não há mágica.

A popularidade de Lula tem a ver com o desempenho de seu governo. Recordar é viver. Com Fernando Henrique aconteceu o mesmo. A popularidade do presidente tucano passou por picos e depressões durante os oito anos de sua gestão. Além disso, as principais razões para votar e apoiar FHC estavam todas relacionadas com o desempenho de seu governo.

Mais recentemente, quem não se lembra do mensalão? Pois bem, durante 2005 a popularidade do governo caiu de forma sistemática, em especial a partir de maio, quando veio à tona um suposto esquema de compra de votos no parlamento brasileiro. Passada a intensa cobertura da mídia, Lula voltou a ser bem aprovado. O momento da virada, se não me falha a memória, foi em janeiro de 2006. Naquele mês não havia mais CPI e José Dirceu já tinha sido cassado. A comunicação do governo reagiu com uma intensa propaganda a favor do Bolsa Família e do aumento do crédito pessoal, com ênfase na vedete chamada crédito consignado.

Uma coisa não passa despercebida nem no governo Lula nem em qualquer outro instalado em Brasília. A nossa cultura personaliza tudo. O Plano Real foi do Fernando Henrique. Collor foi quem mudou a agenda do Brasil. Lula cuidou dos pobres. E por aí vai. Na personalização não cabem raciocínios complexos. Em sua versão mais aguda, ela é típica de uma sociedade pouco desenvolvida e pouco escolarizada.

Não adianta explicar que o sucesso econômico do governo Lula se deveu a uma onda mundial de liquidez sem precedentes. Não adianta mostrar que ele deu continuidade a uma política econômica adotada no governo anterior. Não adianta mostrar que no período Fernando Henrique foram feitas muitas reformas que prepararam o terreno do crescimento. Não disso importa. Vale apenas o fato de que o crescimento ocorreu no mesmo período em que Lula ocupava o Palácio do Planalto. Então, conclui-se, foi Lula quem fez.

Esse traço cultural mais acentuado no subdesenvolvimento foi muito bem aproveitado pelo governo. A propaganda governamental sempre enfatizou o desempenho do presidente em suas funções. De fato, para o marketing do governo, foi Lula quem fez. A grande questão, agora, é saber se o feitiço vai virar contra o feiticeiro. Lula vai escapar do desgaste da crise? Ele, que tão bem buscou personalizar o sucesso do crescimento econômico, poderá, neste momento, atribuir o fracasso aos Estados Unidos?

Foram mais de quatro anos com o governo educando seus súditos a pensarem da seguinte forma: o governo é o responsável pelo aumento do bem-estar. Poderá, agora, convencer os eleitores de que uma redução em seu poder de compra não é responsabilidade do governo?

Excetuando-se os detentores do saber mágico, não há quem tenha essa resposta baseada em dados e fatos, em elementos empíricos. Há, porém, estudos que mostram que em alguns países o impacto das crises é maior do que em outros.

Por exemplo, o eleitorado italiano e o holandês são muito pouco sensíveis às crises econômicas. O inverso ocorre em países tão diferentes quanto Estados Unidos, Grã-Bretanha, Espanha e Irlanda (a Irlanda católica). Muitas vezes o eleitorado tem dificuldade de culpar o governo pela crise. Em geral isso acontece quando a aliança governamental é nebulosa. Quando é clara, quando fica claro para o eleitor quem comanda a economia, é também claro para ele quem é o responsável por eventuais crises.

Perder o emprego é uma experiência profundamente traumática. Em tempos de crise, mais ainda. Simplesmente porque as perspectivas de realocação no mercado de trabalho são sombrias. Será difícil para o presidente persuadir os desempregados de que os Estados Unidos foram os responsáveis por sua demissão. Mais ainda, será igualmente difícil mostrar para os desempregados que a volta ao trabalho depende das medidas de Barack Obama. Por isso, não será surpresa se a popularidade de Lula começar a cair em breve.

Desde criança ouço que Deus é brasileiro. Mais recentemente me disseram que, além de brasileiro, Ele é parente de Lula. Vamos ver se o Todo-Poderoso continuará zelando pelo seu parente, mas sem jamais esquecer que milagres não existem, nem mesmo para Deus.

Nota: tecnicamente um milagre ocorre quando há violação de uma lei da física. Como com o passar do tempo a ciência avança e novas coisas são descobertas, não sabemos hoje quais são todas as leis da física. Portanto, o que hoje é considerado um milagre, o é erradamente na medida em que no futuro serão descobertas novas leis da física que enquadram o suposto milagre em um acontecimento facilmente explicável.

Alberto Carlos Almeida, sociólogo e professor universitário, é autor de "A Cabeça do Brasileiro" (Record).

Campo em queda

Panorama Econômico :: Miriam Leitão
DEU EM O GLOBO

Este ano vai ser de queda na receita agrícola brasileira. A safra 2008/2009 de quase todos os grãos deve ser menor no país. A boa notícia pode vir do açúcar, que deve ficar com o preço quase estável lá fora. A soja, o carro-chefe, deve colher menos. A exportação de carne só cresce num cenário de recuperação. As boas notícias: a alta do dólar e a queda dos insumos.

A falta de crédito, a queda do preço das commodities e o aumento nos custos fizeram com que a plantação fosse menor para esta safra. Além disso, a seca que atingiu estados como Paraná e Mato Grosso do Sul prejudicou a safra de soja precoce e fez com que agricultores colhessem de 8 a 11 sacas por hectare, quando a média é colher 46 sacas. A Agroconsult estima uma safra total de grãos de 132,4 milhões toneladas em 2009, queda de 7,7% em relação à safra passada. A RC Consultores prevê 135,7 milhões de toneladas. Para a soja, a Agroconsult espera uma safra de 55,5 milhões de toneladas, 7,4% menos que a última safra. A RC diz que o volume de soja será de 57,8 milhões de toneladas, abaixo das 59,9 milhões de toneladas de 2008, e a queda no milho será ainda maior, de 58,7 milhões de toneladas em 2008 para 50,8 milhões de toneladas em 2009.

Se há queda no volume, há queda no valor das commodities. Para Fábio Meneghin, analista da Agroconsult, o bushel (a medida específica do produto) da soja deve ficar entre US$8 e US$8,50 lá fora. Já segundo Fábio Silveira, economista da RC, o preço da soja neste ano deve oscilar em US$9, queda de 23% para 2008. Já o milho deve cair 28%, ficando a US$3,80 o bushel, e o açúcar deve perder pouco, 2%, ficando a US$0,12 a libra.

- A receita agrícola vai ter uma variação negativa em relação a 2008. A situação só não vai ficar dramática porque os preços dos insumos estão caindo. Isso diminui o peso, mas não traz fartura para o setor - diz Silveira.

Ele diz que suas projeções levam em conta uma queda do PIB americano de 1,5%. Se a economia americana cair mais e se a China crescer menos do que o previsto, os preços caem ainda mais.

- Há espaço para os preços agrícolas caírem. Isso porque eles estão acima da média histórica, que para a soja é US$5,50, para o milho é de US$2,20 e para o açúcar é US$0,09.

Para a safra 2008/2009, a rentabilidade vai ser menor que na safra passada. Em Mato Grosso, a previsão da Agroconsult é de uma rentabilidade de R$150 por hectare, um valor baixo, já que no último ano ela ficou em R$480/ha. Em Goiás, que tem logística melhor, a rentabilidade esperada é de R$300/ha, mas ela ficou em R$513 na última safra. No Paraná estará a maior queda, segundo a consultoria, de R$770/ha no ano passado para R$150/ha nesta safra.

- Isso é resultado da quebra da safra da soja precoce, por causa da seca, o que deve reduzir a produção do Paraná em 22%. Além disso, o estado sofre com a alta dos custos da produção. Já em estados sem quebra de safra, a redução é por causa da alta nos custos - explica Meneghin.

Para a safra 2009/2010, são grandes as chances de a produção agrícola brasileira ficar estável ou ter um crescimento baixo. Isso porque, sem crédito, muitos produtores não terão condições de aumentar a área de plantio.

- Muito produtor de soja vendeu a preços mais altos. Quem conseguiu fechar contratos a US$10 o bushel, em fevereiro, deu-se melhor. Eles estão usando esse dinheiro para comprar insumos à vista, porque estão mais baratos - conta Meneghin.

Para Silveira, a situação atual deveria fazer com que o modelo agrícola brasileiro fosse redesenhado, para que em momentos de bonança os agricultores fizessem um colchão.

- O produtor tem o vício de depender do governo. E o governo fica refém do produtor e arca com o prejuízo se a produção não for vendida.

Na verdade, esse é um velho problema brasileiro. Não interessa quantos anos bons aconteçam na agricultura. Um ano ruim é o suficiente para que os produtores corram a Brasília pedindo ajuda. Aliás, eles renegociam a dívida até em ano bom.

No setor bovino, há incerteza sobre a demanda. Segundo Gabriela Tonini, da Scot Consultoria, a produção brasileira deve ser de aproximadamente 9,5 milhões de toneladas, bem próximo do ano passado, e cerca de 20% devem ser exportados.

- Muita coisa ainda está incerta no mercado de carne bovina, dependendo da situação econômica dos EUA e da Europa. A exportação para a União Europeia está crescendo, mas o volume ainda é pequeno.

Em janeiro, a exportação de carne bovina foi de 133 mil toneladas, queda de 34% para setembro de 2008, começo da crise. O preço também caiu. Em janeiro, ficou, em média, US$1.840 por tonelada, contra US$2.700 de setembro. Gabriela diz que, no mercado local, já houve queda de consumo e que o setor teme o desemprego.

- O setor está muito apreensivo. O mercado de boi gordo, na bolsa, tem hoje metade dos contratos que tinha no mesmo período do ano passado.

Os produtores já começaram a buscar a renegociação das dívidas. Mas a desvalorização do real torna o preço em dólar das commodities mais atrativo. De qualquer maneira, será ano de vacas magras, depois de anos de vacas gordas: preços e vendas recordes.

Sodoma e Gomorra

Luiz Carlos Mendonça de Barros
DEU NA FOLHA DE S. PAULO


A economia que sairá desta crise será diferente da de hoje, mas como e quando isso acontecerá é impossível prever

PASSEI A semana do Carnaval nos Estados Unidos com meu filho Rick. Esse período de descanso permitiu-me assumir o papel de observador da crise financeira que ocorre na maior economia do mundo. Minhas leituras deixaram de estar focadas em relatórios técnicos ou veículos especializados em economia, abrindo espaço para os jornais e as revistas semanais. Esse novo posto de observação me fez conhecer as reações dos não-especialistas na descrição e nas análises dos fatos ligados à marcha da insensatez que ocorreu na chamada Wall Street.

Em uma sociedade em que a grande maioria acredita na supremacia dos agentes econômicos privados sobre o governo, os fatos que estão sendo agora fartamente descritos causam um impacto terrível. O americano comum aceitava que uma pequena minoria -para ele uma elite- auferisse ganhos extraordinários como uma prova da eficiência do sistema capitalista. Mesmo a falta de caráter de algumas estrelas famosas do mercado financeiro era aceita como parte do jogo. Basta recordar o personagem principal do filme "Wall Street - Poder e Cobiça", que tanto sucesso fez há alguns anos.

Mas os fatos revelados pelos jornais e pelos canais de televisão nos Estados Unidos chocam e revoltam. E a razão principal da revolta do americano médio é a de ter o governo que resgatar, com trilhões de dólares do Tesouro, empresas privadas. Mais ainda, em uma sociedade em que qualquer tentativa do governo em interferir na vida dos cidadãos é considerada socialismo, o que se vê hoje é absolutamente inaceitável. Para um observador atento, esse clima de decepção e revolta está presente no dia-a-dia da imprensa americana. Os detalhes escabrosos dos ganhos com bônus e outros instrumentos de participação nos lucros dos bancos americanos são inaceitáveis. De forma ainda discreta, os americanos começam a entender que a origem dessa farra do boi está no centro de sua ideologia. O desmonte do aparato regulatório e fiscalizador do sistema financeiro foi feito no pressuposto dessa luta entre o lado bom -o setor privado- contra o mau, representado pelo Estado.

Mas a decepção americana vai mais longe. Grandes estrelas do sistema produtivo como a General Motors, a Ford e a GE também estão mostrando uma fragilidade não conhecida. Ainda agora, a empresa que audita e fiscaliza os números da GM vem a público dizer que esse gigante não tem condições de sobreviver. Mesmo a empresa de seguros do ícone do capitalismo americano Warren Buffett -a Berkshire Hathaway- tem hoje um risco de crédito superior ao do Vietnã.

Mas o ídolo caído pela irresponsabilidade de seus dirigentes que mais me impressiona é a AIG, gigante do setor de seguros. Companhia de mais de cem anos de existência, líder mundial inconteste no grupo das chamadas empresas seguradoras, a AIG é hoje um zumbi que não pode quebrar. Várias instituições financeiras dependem de sua existência para não falirem de vez. O setor de seguros sempre foi considerado o mais conservador e mais regulado do mercado financeiro. Pois essa empresa representa hoje o caso mais típico do que aconteceu nos Estados Unidos nestes últimos tempos.

A economia que sairá desta crise -e isso vai ocorrer com certeza, dada a índole do povo americano- será completamente diferente da que conhecemos hoje. Mas como e quando isso acontecerá ainda é impossível prever.

Luiz Carlos Mendonça De Barros , 66, engenheiro e economista, é economista-chefe da Quest Investimentos. Foi presidente do BNDES e ministro das Comunicações (governo Fernando Henrique Cardoso).